Duas Notas 

 

Gabriel Perissé
(Doutorando FEUSP)
perisse@uol.com.br

 

1. Glocalização

Alguém criou o neologismo “glocalização”, reunindo duas palavras que tantas vezes entram em conflito aberto: globalização e localização.

A idéia é inspiradora e mostra como a criação de um termo pode ajudar a pensar uma realidade complexa, paradoxal, e entrever saídas para grandes problemas.

O grande problema da globalização, como afirma Dani Rodrik, professor da Universidade de Harvard, é que concentrar nosso entusiasmo no comércio, na economia, na aquisição de tecnologia avançada, nos grandes negócios, no mercado internacional etc. faz com que os dirigentes dos governos de países pobres desviem atenção e recursos dos campos que realmente geram desenvolvimento humano como a educação, a saúde pública e a justiça social.

A globalização, disse o papa João Paulo II, deve ter um rosto humano, deve fomentar e não destruir a solidariedade entre os povos. Caso contrário, será apenas o novo nome para um novo colonialismo, em que os mais fortes continuarão subjugando os mais fracos.

Glocalização, porém, é quando uma empresa conhece suas responsabilidades sociais perante o país em cujas terras mergulha suas raízes.

Glocalização é rejeitar essa idéia de homogeneização cultural, não mais imposta pelas leis e pela força dos exércitos (como no colonialismo clássico), mas pelos expedientes sutis da adoração à música estrangeira, por exemplo. (Outro dia, um professor me contava que seus alunos de 18 anos de idade desconheciam quem era Paulinho da Viola mas sabiam de cor as músicas dos Backstreet Boys.)

Glocalização é resistir ao lugar-comum de que existe um caminho único para o progresso, um best way que destrua a variedade cultural, a criatividade de cada povo, a beleza específica de cada vocação nacional.

Glocalização é escrever “best way” sem complexo de inferioridade e achar o máximo que o povão já esteja falando “vou comer no serv-serv”, em vez de self-service.

Parafraseando Eça de Queiroz, glocalização é fazer questão de falar mal a língua estrangeira e bem o próprio idioma.

Glocalização é entender que a felicidade das pessoas está, em boa parte, na capacidade de usufruir da própria identidade cultural, da própria maneira de ver e dizer o mundo.

Glocalização é localizar onde terminam as influências positivas e onde começam as ingerências perversas.

Glocalização é localizar o global mas jamais deslocalizar o que temos de original.

Glocalização é saber localizar o universal no nacional, mas jamais desnacionalizar o nosso pessoal.

2. O pensamento visível

No capítulo trinta do quarto livro das aventuras de Harry Potter aparece um objeto mágico chamado Pensieve (em português essa palavra foi traduzida por Penseira), uma espécie de bacia de pedra na qual o poderoso bruxo Dumbledore escoa seus pensamentos e lembranças para examiná-los com vagar, identificando semelhanças, relações, contradições, contrastes. Desse modo, consegue tomar decisões acertadas sem sobrecarregar sua cabeça.

A invenção é simplesmente genial. Mesmo quando a onda de “Harrymania” passar, levarei esta invenção comigo. É muito sugestiva.

Sugestiva porque seria a solução para os problemas de muita gente. Boa parte de nossas perplexidades insolúveis, de nossos receios infundados, de nossas angústias intelectuais, de nossos preconceitos, de nossas cegueiras, de nossas confusões mentais deve-se a uma terrível falta de objetividade perante nossos próprios pensamentos.

Administrá-los é a saída, mas para isso seria preciso que nossos pensamentos saíssem de nós para que pudéssemos enxergá-los sem a influência perturbadora de mágoas, medos, vitimismos, ódios e culpas.

Pensar com certa distância de nós mesmos é a melhor maneira de nos aproximarmos da verdade. O problema é que nossas idéias andam de braços dados com sentimentos, sensações e imagens que acabam tornando muito difícil a clareza de raciocínio.

Não somos seres estritamente racionais, é lógico, e precisamos levar em conta, aceitar e valorizar tudo aquilo que em nós é impressão, emoção, intuição, paixão, e nos impulsiona a fazer e dizer coisas “sem pensar”. O velho ditado “quem casa não pensa; quem pensa não casa” sempre me pareceu a comprovação de uma saudável loucura, fruto da nossa livre subjetividade.

Por outro lado, há emoções que impedem o bom andamento de uma reflexão. Somos assaltados por uma saudade, por exemplo, e acabamos perdendo o rumo que a razão queria nos indicar. Estamos analisando prós e contras e de repente uma indignação (até mesmo justa) faz com que esqueçamos alguns prós ou exageremos alguns contras.

Contemplar com objetividade nossos pensamentos requer o exercício de despejá-los diante de nós. E pensei que esse mecanismo consiste justamente em escrever.

Quem escreve o que pensa vê melhor o que pensa.

Quem lê o que pensa movimenta o pensamento.

Se mantivéssemos na cabeça a despreocupação de pôr no papel o que se passa em nossa cabeça, teríamos a cabeça livre para montar o quebra-cabeça da vida... sem quebrar a nossa cabeça.