A incrível (porém verdadeira)
história do primeiro bicho
geográfico inglês
Amadeu RibeiroOne must be serious about something if one wants to have any amusement in life.
Oscar Wilde
H.R.H. The Prince Philip Duke of Edinburgh KG KT OM GBE, que, para os efeitos da história que passamos a narrar, será chamado simplesmente de Philip, levava uma vida entediada. Nunca havia trabalhado. Her Majesty the Queen, a rainha, sendo patrona de uma instituição de finalidade desconhecida, chamada “The English-Speaking-Union”, havia feito a gentileza de nomear Philip seu presidente.
Isso foi o que pensou Philip ao ser indicado para o cargo. Afinal de contas, não ficava bem para um homem de estatura tão nobre não ter nenhuma ocupação de projeção social. E por isso estava grato à rainha pela nomeação. Todas as pessoas importantes da corte haviam recebido uma. Philip agora se sentia mais calmo por ter a sua. Lady Diana tivera as crianças pobres do mundo e Madre Teresa, Prince Charles tinha a causa ecológica, e Philip agora tinha a English-Speaking-Union, seja lá o que isso representasse.
A cerimônia de recebimento do cargo ocorreria em dois meses. Até lá, Philip se prepararia para o evento. A preparação consistia em escolher uma pessoa que lhe escrevesse o discurso de posse, a seleção da roupa adequada, os cuidados especiais com a pele e, sobretudo, as pequenas férias que gostaria de tirar antes de começar uma nova fase em sua vida.
Iria para as Ilhas Virgens. Acompanhado de Sir Alfred Douglas, seu melhor amigo e, dizem, amante. Ninguém na corte seria capaz de provar que Philip fosse homossexual. E nem era preciso, pois o que vale para a corte e o povo, como todos sabem, é a sombra que o objeto faz no chão, e não o objeto propriamente. Philip, por sua vez, não se importava muito com o que dissessem ou publicassem a seu respeito. Ser um homem sem ofício já era vergonha suficiente, de modo que maior desmoralização não poderia vir.
A viagem durou duas semanas. Duas semanas maravilhosas para Philip e Sir Douglas, que retornaram radiantes para a fria Inglaterra. No dia seguinte a seu retorno, Philip se levantou, banhou-se, vestiu-se e foi tomar café-da-manhã. Tudo isso tomava aproximadamente quatorze quartos de hora do período matutino. Uma vez confortavel-mente sentado, Philip deixou que lhe trouxessem os complementos do café-da-manhã - chá, suco e torradas - e começou a comer. Foi quando sentiu uma pontada no traseiro. Achou que pudesse ser uma agulha esquecida na poltrona, mas, ao se levantar, não encontrou nenhuma agulha ou qualquer outra espécie de objeto pontiagudo.
Sentou-se novamente. Ao invés de uma nova pontada, passou a sentir uma ligeira coceira no mesmo lugar. Deixou que alguns segundos corressem para ver se a coceira passava, ou ao menos para detectar que tipo de coceira estava sentindo.
A coceira aumentou rapida e assustadoramente. Philip passou a sentir uma vontade incontrolável, alucinada, desesperada, de coçar-se. Evidentemente que não poderia enfiar a mão embaixo das calças na frente de todos. Por isso se dirigiu ao banheiro.
Coçou, coçou e coçou. Até achar que tudo havia passado. Ergueu as calças e voltou à mesa, mas nem bem havia chegado a ela e a mesma coceira voltou, desta vez localizada um pouco mais acima.
Subiu rapidamente aos seus aposentos, trancou a porta, baixou novamente as calças e procurou localizar a origem da coceira, para tanto contorcendo o corpo diante do espelho. Difícil. A coceira vinha de um lugar quase impossível de ser visualizado por seus próprios olhos. Pôde perceber, no entanto, que uma espécie de nódulo pequenino se formara no local de onde vinha aquela esquisita sensação. Pior que isso: ou estava enganadíssimo, ou o nódulo estava lentamente se movendo dentro de seu próprio corpo. O que estava acontecendo?
Philip ficou desesperado. Sua reação involuntária foi sentar-se para pensar, porém ao fazê-lo sentiu uma dor incômoda demais e preferiu ficar de pé. O que fazer? Ligou para Alfred, mas Alfred não estava em casa. O jeito era chamar um médico. Mas qual médico?
Após muito pensar, viu que não tinha escolha: não possuía um médico de sua confiança, um médico que seguramente não teria a tentação de comentar, ainda que somente com outros médicos, aquilo que ele, Philip, tinha. Seja lá o que fosse isso que ele tinha.
Mandou chamar o dermatologista da corte que estivesse disponível. Chegou-lhe Sir Edward Miles, homem distinto e inspirador de confiança. Porém inculto em seu ofício, o que Philip não sabia e não tinha condição de avaliar.
Depois de muitos rodeios, Philip contou a Sir Miles o que estava se passando. Situação embaraçosa para ambos, mas não havia o que ser feito: Philip precisava ser examinado.
O que então se seguiu foi apenas o começo de uma longa e dura jornada para Philip. Por mais culto que Sir Miles fosse, não teria a mínima possibilidade de identificar o objeto de seu exame. Só foi capaz de perceber aquilo que qualquer homem comum perceberia: My dear Prince Philip, it is... how should I put it... moving!
O desespero de Philip aumentou. Mandou chamar outros médicos, mesmo sabendo que isso aumentava a possibilidade de que o fato vazasse. Era preciso descobrir o que tinha a todo custo. Afinal, a cerimônia de posse na English-Speaking-Union ocorreria em três dias. Seriam seis horas entre cerimônia e jantar! Como agüentar seis horas sentado, se naquele instante não conseguia se sentar nem por um segundo?
Outros médicos chegaram. Como é típico entre homens de mesma estatura profissional, cinco minutos foram suficientes para que a vontade de se exibir e se mostrar melhor dominasse o corpo e a mente de todos eles. Meia hora havia se passado, e nem sequer a metodologia dos trabalhos havia sido definida.
Foi quando um deles disse, pasmo: Look, it is... how should I say it... moving! Fez-se silêncio. Nenhum deles jamais vira aquilo: algum ser estava se movendo no traseiro de Prince Philip, embaixo de sua pele! Ninguém nunca vira coisa igual. A primeira reação, de silêncio, foi seguida de minutos em que todos os médicos presentes se esforçaram para mostrar feições de que estavam avaliando com maior segurança o que seria aquilo que, mais cedo ou mais tarde, seria identificado e expulso do corpo do príncipe.
Alguns palpites vieram, porém não correspondentes à convicção que há pouco os médicos haviam estampado no rosto. Após longa discussão, durante a qual aquela bolota continuou a se mover e Philip continuou a se contorcer para coçá-la, os médicos decidiram à maioria que o melhor seria que Philip fosse ao hospital para ser radiografado. Seria necessário um exame mais acurado do problema, embora os médicos assegurassem que estava tudo sob controle.
À falta de alternativa, Philip concordou. No caminho para o hospital, eis o único pensamento que lhe tomava a cabeça: ninguém poderia saber o que estava se passando, e o assunto precisava ser resolvido com urgência, em tempo para a cerimônia de posse da presidência da English-Speaking-Union.
Feitas as radiografias, Philip chamou os médicos para uma conversa em particular, alertando-lhes explicitamente para os inconvenientes que precisavam ser superados. Os médicos se apressaram em garantir duas coisas ao príncipe: sua discrição absoluta e uma solução a tempo.
Enquanto isso, os membros do cerimonial de Philip pensavam numa estratégia alternativa para a posse da presidência da English-Speaking-Union. O príncipe precisava sentar a todo custo. Não havia alternativa. Ficar de pé levantaria suspeitas de monta sobre sua saúde; além disso, todos os demais presentes se veriam obrigados a ficar de pé também, em respeito ao príncipe. Imaginem o escândalo que representaria uma cerimônia com aproximadamente 450 pessoas de pé durante seis horas! E o que fazer com o jantar? Se o príncipe não sentasse, ninguém sentaria e tudo acabaria num grande desastre.
No dia seguinte, restando a Philip menos de 48 horas, os médicos, após uma noite sem dormir, finalmente identificaram o ser que andava dentro do corpo do príncipe: um ser típico de regiões tropicais e subtropicais, comumente denominado “bicho geográfico”. Tratava-se do primeiro caso registrado na Inglaterra, quiçá na Europa.
Tudo se explicou: as férias com Alfred. Não havia dúvida que o bicho geográfico havia sido contraído nas férias com Alfred nas Ilhas Virgens. Philip perguntou se aquilo poderia ser contraído na praia, e os médicos confirmaram, com grande autoridade, que a praia era o habitat preferido do bicho geográfico. Todos, aliás, faziam agora um certo ar de professores na matéria.
Uma vez identificado o problema, Philip perguntou o que seria feito para resolvê-lo. O ar professoral dos médicos foi novamente substituído pelo ar de indagação mental a respeito da melhor entre as diversas soluções possíveis. O fato, entretanto, é que não havia nenhuma.
O desespero de Philip voltou. O que fazer? Seu primeiro trabalho na vida, arruinado justo em seu primeiro e mais importante momento! Os médicos foram alertados para o fato de que, se o bicho geográfico não fosse expulso do corpo de Philip até a cerimônia de posse, todos eles seriam sumariamente demitidos.
A ameaça, é claro, apenas dificultou o pensamento e a concentração dos médicos. Tudo foi tentado: de um simples espremer dolorido ao ácido que corroeu a pele de Philip e mesmo assim não foi capaz de matar o bicho geográfico. Ele continuava lá, caminhando e se aproximando, aliás, de uma parte das nádegas de Philip que dificultava muitíssimo a visão e o trabalho dos médicos, dado que Philip era ali bastante peludo.
Tarde da noite, os médicos pouca ou nenhuma esperança guardavam que o problema pudesse ser resolvido. Haviam pensado até mesmo em proceder cirurgicamente à retirada do bicho geográfico, porém alguns entraves impediam que essa alternativa fosse implementada: em primeiro lugar, Philip era alérgico a anestesias. Seria arriscado submetê-lo a uma cirurgia, e sem anestesia a dor seria insuportável. Em segundo lugar, àquela altura o bicho geográfico havia alcançado um lugar dificílimo de operar: seria necessário aguardar até que ele retornasse a um ponto suficientemente adequado para a cirurgia. Isso poderia levar horas, ou até mesmo dias. Não havia tempo para esperar. Por fim, a publicidade gerada em torno do assunto seria enorme e extremamente indesejada.
Por essas e outras razões, descartou-se temporariamente a hipótese da intervenção cirúrgica. Às dez horas daquela noite, um dos médicos levantou a possibilidade de se consultar um especialista. Mas onde achar um, se se tratava do primeiro caso registrado em toda a história da Inglaterra? A resposta era óbvia: teria que ser um médico de um dos países de maior incidência do bicho geográfico. Voltaram todos aos livros. A resposta veio rapidamente: Indonésia, África do Sul e Brasil, eis os países com o maior número de ocorrências de bicho geográfico até então. Imediatamente os médicos ingleses saíram à procura de dermatologistas desses países.
A busca foi dificílima. Somente no dia seguinte conseguiu-se localizar um médico dermatologista brasileiro, chamado José Carlos Regazzini Magalhães. Dr. Magalhães não trabalhava como médico há anos. Mantinha, na verdade, uma clínica de beleza em Londres, freqüentada pela alta sociedade local. Todos esses fatos foram prudentemente omitidos de Philip.
Levado às pressas à residência do príncipe, Dr. Magalhães mal teve tempo de se preparar para a consulta. Até chegar ao local, o dermatologista brasileiro não disse uma palavra. Ali chegando, prontamente foi levado aos aposentos do príncipe, que o aguardava ansioso. Dr. Magalhães pediu que fosse deixado a sós com o paciente. Os médicos ingleses relutantemente aceitaram.
Passadas algumas horas sem que se ouvisse o menor ruído, a porta se abriu. Dr. Magalhães deixou o quarto de Philip com a cara satisfeita de missão cumprida. Ao ser perguntado sobre o que tinha feito para retirar o bicho geográfico do corpo do príncipe, assim respondeu:
“Pediram-me que viesse aqui para resolver uma emergência. Amanhã o príncipe precisa se sentar durante seis horas e não o conseguiria fazer com um bicho geográfico andando por onde estava em seu corpo. Tirar não o tirei. Mas resolvi o problema mudando-o de lugar. O bicho agora está no pé do príncipe.”
Os médicos ingleses se entreolharam, completamente abismados. Examinaram o pé de Philip e puderam constatar que Dr. Magalhães dizia a verdade: ali estava o bicho geográfico, caminhando e se aproximando do dedão do príncipe. Inacreditável. Como era possível aquilo? Dr. Magalhães se recusou a responder à pergunta, de modo que nunca ninguém soube a resposta.
O fato é que, com o pequeno auxílio do dermatologista brasileiro, o problema foi provisoriamente resolvido. Philip pôde se sentar durante toda cerimônia, ainda que com o pé coçando horrores, e se tornar presidente da English-Speaking-Union.
Consta que Philip chegou a ficar triste quando, meses mais tarde, foi submetido a uma cirurgia delicada em Londres para extração do bicho geográfico: havia criado certa estima por ele. A estima vinha do fato de que o bicho lhe proporcionava a maior ocupação do dia: coçar o pé.