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 Contos de Paula Faraone 

 

 

À Noite

 

 

Entardeceu.

Saiu cauteloso. Pé ante pé.

Havia ainda movimento. Pessoas passavam apressadas.

Esgueirou-se pelas sombras rápido, para não ser visto. Entrou num beco. Tão mais escuro! Escondeu-se nuns caixotes no canto esperando que a noite finalmente abraçasse a rua.

Ficou lá, atento, um tempo infinito…

Por fim o breu. Saiu então dos caixotes e ganhou a rua. Agora, confiante e mais seguro, andava perto do meio-fio com seu passo ligeiro.

Parou um pouco, para tomar a direção correta.

Passou pela porta e foi direto para o fundo da casa. Lá estava a razão por que se arriscara pelas ruas.

Subiu em uns tijolos ali do lado. Subiu por estranhos caminhos. Chegou finalmente à altura da janela. Arremessou-se no ar num vôo incerto. A custo agarrou-se à janela. Aos poucos, com enorme esforço, conseguiu se equilibrar. Felizmente a janela não estava toda fechada.

Entrou.

Estava lá. Estava mesmo tudo lá.

Pegou ali mesmo tudo o que pôde.

A lua estava alta; tinha tempo agora.

Fartou-se de seu desejo.

Agora era preciso voltar, antes que amanhecesse.

Pegou mais um grande pedaço com os dentes.

Saiu correndo por um buraco que encontrou no fundo do armazém quando escutou um barulho.

Deparou com a luz do dia.

Entrou num boeiro e voltou para casa.

 

 

O MAR

 

Quando acordou estava disposto. Lavou o rosto, escolheu bem uma roupa, bonita e confortável, separou muitas coisas para levar.

Não se despediu de ninguém. Não beijou ninguém.

Ele ia ver o mar. Não importava se os outros diziam que não havia mar do lado de lá… ele sabia. Ele iria lavar o corpo de todo o sofrimento na água infinita.

Partiu.

Percorreu uma enorme distância em um dia.

Dormiu ali mesmo, na areia.

No dia seguinte olhou aquele deserto e gritou vivas à vitória certeira de sua jornada.

Partiu.

Dormiu.

Partiu.

Dormiu.

Partiu… e se fosse verdade? E se ele não tivesse fim?

Dormiu.

Partiu, devagar.

Mal dormiu.

Partiu com fome, com sede.

Dormiu com frio.

Partiu.

A roupa já gasta rasgou no joelho quando caiu.

Dormiu com medo.

Partiu já pensando em ficar.

O sol ficava mais quente a cada dia.

A esperança ficava mais fria.

Dormiu.

Sonhou com a lavoura, a casa pobre e o beijo que não deu.

Partiu porque já não havia alternativa e dormiu porque já não suportava mais.

Acordou mas não partiu. A comida acabou, a água acabou e a esperança congelou, derreteu e sumiu na areia.

Era, afinal, o fim; o seu fim.

Decidiu morrer no alto, perto do céu. Queria morrer no topo da duna mais alta contemplando sua estupidez: o deserto por todos os lados.

Partiu.

Subiu com os pés pesados.

Chegou lá em cima com o queixo no peito.

Olhou para trás. Suspirou.

Olhou para frente… Ficou sem ar, com o coração calado até!

Era ele!

Sentiu o cheiro da água salgada…

Ficou tonto. Não podia se mover.

Anoiteceu.

Amanheceu.

Ele lá, de pé, vendo o mar do alto da duna.

Respirou fundo. Sorriu. Decidiu descer.

Com os olhos fixos em seu sonho, começou a descer.

Tropeçou.

Caiu.

Rolou duna abaixo.

Esticou o mais que pôde o braço.

Sentiu a areia úmida na ponta dos dedos e um respingo da onda que, exaurida, fez sua sua última evolução logo ali… tão perto!

Morreu a um palmo do mar.

 

 

A BEATA

 

Que era beata, todo mundo sabia. Ia à igreja com mantilha e tudo. Era solteira. Quando os pais morreram, as irmãs a deixaram na casa. Acho que era para ficar longe dela. Vivia dando sermão. As irmãs nunca vinham. Ninguém falava com ela porque ela vinha logo falando dos pecados, principalmente do sexo.

Que ela tinha um gosto muito especial por garotos – lá pelos 14, 15 anos – todo mundo sabia também. As mães ficavam loucas. Chamavam-na de devassa e outras coisas na rua. A garotada gostava. Ela era bonitona, não cobrava e não namorava. O único problema é que ela escolhia quem e quando. Os que tinham barba estavam automaticamente descartados. Ela fazia os garotos irem à casa dela e pedia para tirarem a roupa no banheiro. Olhava e dizia: “Quarta, às 15h. Não se atrase!”.

Fechava a porta com o sinal da cruz e mandava o garoto embora chamando-o de capeta.

Os garotos todos sabiam do que ela gostava. Não gostava de pêlos, mas adorava o cabelo mais comprido, não muito, mas não rente. Não fazia diferença a cor da pele, mas ela queria lábios rosados e carnudos. Teve até um, o Tonico, que depilou tudo quanto foi pêlo. Ele diz que valeu a pena. Sempre que alguém falava dela ele dizia: “Aquilo nem mulher é!! Se o diabo visse o que eu fiz naquele dia, fazia o sinal da cruz!!”. Depois sorria meio de lado e não falava mais nada.

Os pais achavam que ela era uma coitada, “doidinha”. Brigavam com as mães quando elas falavam aquelas coisas. “Ela não sabe o que faz. Você não vê, mulher, que a pobre não bate bem?” As mães resmungavam, mas não adiantava. No fundo os pais queriam poder ir também. Mas ela só gostava dos bem novinhos.

Como todo mundo sabia de tudo, ninguém entendeu.

Um dia ela apareceu com um homem mais velho, mais de 30, de braço dado. Era um homem bem vestido, de rosto redondo e óculos.

Ela deixou de ir tanto à igreja e começou a usar umas roupas sensuais que deixavam as mães definitivamente despeitadas.

“Pobre homem! Se soubesse que tipo de vagabunda ele arranjou!”

E os garotos voltaram para as meninas da rua. Frustrados, muito.

O casal foi a grande novidade do bairro. Depois passou. O povo foi esquecendo. Só umas poucas velhotas comentavam quando os dois passavam.

Ficaram juntos cinco anos.

Um belo dia, logo cedo, ela colocou as malas dele na porta e botou ele para correr.

A razão ninguém sabia. Falava-se muita coisa, muitas maldades, mas ninguém sabia.

Uns quatro meses depois ele ainda ligava para ela. A vizinha escutava ela atendendo o telefone e falando que não era para ele voltar. Desligava e chorava o dia todo.

O povo foi ficando com pena dela.

Aí teve aquela tarde que ele apareceu com as flores. Um monte! Ela deixou ele entrar. O pessoal já foi apostando: “Hoje isso se acerta!” “Ele engordou, né?” “É… e como!” “Tá gordo mesmo!” “Deixa que logo, logo ela emagrece ele!”

O Tonico é que ganhou a aposta: “Ele só sai de manhã para comprar pão!”.

Enfim, tudo voltou ao normal. Ela reformou uma parte da casa, vivia cheia de sacolas, toda tagarela e simpática. Ele só engordava.

A mulherada começou a falar: “Estranha essa barriga…”

Naquela noite, quando ele entrou na ambulância da maternidade todo mundo entendeu. Até hoje falam que foi coração. Só o Tonico não fala nada.