Home | Novidades | Revistas | Nossos Livros | Links Amigos Tom Jobim e a Poesia Árabe [1]
Aida R. Hanania
(Profa. Titular DLO-FFLCHUSP)Jean Lauand
(Prof. Titular EDF-FEUSP)
jeanlaua@usp.br
Inexplicavelmente, a genialidade de Tom Jobim continua sempre mais reconhecida no exterior do que entre nós, brasileiros, que, afinal, estaríamos em melhores condições de apreciar a beleza de suas canções, por exemplo no que se refere à concatenação melodia/letra.
Nesse sentido, muito aquém do que exigiria a magnitude do fato foi a divulgação, entre nós, de sua recente consagração como compositor nos EUA ao ingressar no Hall of Fame, ao lado de outros imortais como Gershwin ou Porter. Afinal, ele é o autor estrangeiro mais tocado nos EUA [2] ; diversas de suas canções ultrapassaram um milhão de execuções e foram interpretadas por Ella Fitzgerald, Sinatra, Nat King Cole, Sarah Vaughn e outros.
O brilho de suas composições musicais não deve ofuscar o talento do poeta. Neste capítulo, analisaremos um aspecto da mais original de suas canções, Águas de Março, que, no certeiro juízo do renomado crítico americano Leonard Feather, é uma das dez melhores canções de todos os tempos.
Grande e grandiosa, inquietante, Águas de Março soa aos nossos ouvidos, sempre de novo, como diz sua letra, como "um mistério profundo". Parte desse mistério reside, talvez, no fato de a poesia de Águas de Março nos arrancar de nossos padrões usuais de pensamento ocidental e nos conduzir às formas de pensamento do Oriente, "lugar" por excelência do mistério.
Heidegger fala de um enclausuramento do ser humano, onde não só a linguagem está a serviço do pensamento, mas também ocorre o contrário. Pense-se, por exemplo, na linguagem-pensamento árabe onde, em vez dos longos e complicados discursos ocidentais, encontramos um rápido e cortante suceder de flashes, em frases nominais provenientes de uma imaginação fulgurante com a irresistível força da imagem concreta.
Assim, uma cena, digamos, como a de abater um pássaro, seria, no limite, descrita por um ocidental nestes termos: "Estava um pássaro a voar no céu, quando eu o vi. Ora, ao vê-lo, interessei-me por ele e, portanto, dado que dispunha de uma atiradeira, muni-me de uma pedra, mirei-o, disparei a atiradeira a fim de atingi-lo; de fato atingi-o e, portanto, ele caiu, o que me possibilitou apanhá-lo com a mão". Já o árabe, tende a apresentar essa mesma cena do modo como o faz Tom Jobim em "Águas de Março": "Passarinho na mão, pedra de atiradeira". Os enlaces lógicos ficam subentendidos por detrás da sucessão de imagens. E o mesmo ocorre, por exemplo, com este outro verso da mesma canção: "carro enguiçado, lama, lama" (em clave ocidental: "O carro enguiçou devido à avaria provocada por excesso de lama"...).
Naturalmente, a presença constante do verbo ser na letra de Águas de Março não invalida a semelhança com o caráter oriental do pensamento (onde se empregam frases nominais e não o "é"), pois trata-se da forma fraca, descartável, desse verbo.
Aliás, a orientalização[3] chega ao extremo quando no final da canção, interpretada por Tom e Elis (Elis com riso mal contido), o verbo ser é suprimido e se diz simplesmente:
Pau, pedra, fim caminho
Resto, toco, pouco sozinho
Caco, vidro, vida, sol
Noite, morte, laço, anzol
Assim, não é surpreendente que encontremos na literatura árabe composições muito próximas do estilo da nossa Águas de março.
A título de exemplo e comparação, voltemo-nos para um dos primeiros monumentos da literatura árabe, escrito há cerca de 1500 anos. Trata-se de uma composição do orador e poeta Quss Ibn-Sa'idah em que, após uma descrição da grandiosidade do mundo, convida os de sua tribo a refletir sobre a transitória e efêmera condição humana (sujeita à sucessão de contingências: pau, pedra, fim do caminho, carro enguiçado, tijolo chegando, noite, morte...).
Uma tradução quase literal dessa composição (e razoavelmente ajustada à melodia [4] de Águas de Março), na qual procuramos preservar o "sistema operacional" de pensamento e expressão árabe, soaria assim:
Noite escura, um dia de paz
O céu, um assombro, espaços siderais
Estrelas brilhando, mares a se agitar
Montes assentados, terra a atapetar
O que vive, morrendo; o que morre, findando
Vai vir, virá, o a-passar, passará
No céu, sinais; na terra, lição
Causa, porquê, explicação
Gente vai[5] e não volta, qual a razão?
Sono profundo?, satisfação?
Onde nossos primeiros? onde pais e avós?
Onde o grande poder dos fortes faraós?
Naturalmente, há, em rigor, muito mais uso de frases nominais do que a tradução comportaria. O árabe, ao invés de dizer, por exemplo, "Eu estou saindo ..." diz "Eu `sainte'..." (Ana dhahib); "Você já experimentou suco de goiaba?", "Você experimentante...?" Assim, em vez de "estrelas brilhando" ou "mares que se agitam", na verdade o que se diz é "estrelas protagonistas do ato de brilhar" (nujúmun tazhar) e "mares protagonistas do ato de se agitar" (bihhárun tazkhar) etc...
O texto original de Ibn-Sa'idah, com ligeiras reduções e adaptações, também pode ser cantado com a melodia de Águas de Março:
La-y-lun daj ua naharun saj
Ua sama`un dhatu abraj
Ua nujúmun tazhar Ua jibalun mursáh
Ua bihharun tazkhar Ua ardun mudháh
Ma bal an-n-asi yadhhabúna
Ma bal, ma bal hum la yarj'aúna?
Ínna fy assama`i lakhabara
Ua ínna fy-lardi la'ibara
Ayna-l-aaba`u? aaráddu faqámu?
Ayna-lfara'inatu? túriku fanámu?
Man 'aasha maat ua man maat faat
Ua kulun ma hwa aatin aat
Se acrescentarmos ao poema árabe os "é" e "são" (ou se os suprimirmos de Águas de Março) torna-se evidente o caráter oriental das formas poéticas de Tom.
Águas de março, misteriosa canção, Oriente-Ocidente em estreita união.
Videtur-Letras 3 http://www.hottopos.com/ Editores: Instituto de Filosofía de Cuba / Mandruvá/ Escola de Escritores / EDF-FEUSP / CEAr-USP La Habana - São Paulo 2001
[1]. Gabriel Perissé, editor de VL-3, pediu-nos que reapresentássemos este artigo e a nota seguinte como uma homenagem aos 10 anos do Hall of Fame de Tom Jobim. Este texto - originalmente publicado no Jornal da Tarde em 17-8-91 - homenageia também a editora do Centro de Estudos Árabes da USP, pois abriu o primeiro volume da Coleção Oriente & Ocidente. A atualidade de "Águas de Março" é atestada pela indicação como a melhor canção brasileira em recente pesquisa da Folha de São Paulo.
[2]. Exceção feita a Lennon-McCartney ("Aí não vale, diz jocosamente Tom, eles cantam em inglês"). As informações deste parágrafo e as do seguinte procedem da entrevista de Tom Jobim à Revista do CD, maio 1991.
[3]. Orientalização que se realiza também pela evocação de semitismos, como nos versos: "É a chuva chovendo...", "É o vento ventando...".
[4]. Com a melodia correspondente aos seguintes versos:
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida é o sol
É a noite, é a morte, é um laço é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matita pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É um mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumieira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira