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 Três Contos de Carlos Gomes 

 

 

A vingança pertence ao SENHOR

 

No púlpito, o padre encerra a missa dizendo: “...a vingança pertence ao SENHOR”. Zé Preá ouve as palavras do padre e fica pensativo, segura o chapéu com as duas mãos, vai até a sacristia.

“Bença”, seu Padre, “tava” escutando o sermão e gostaria de dá um dedinho de prosa com o SENHOR.

Pois não, meu filho, pode falar.

O SENHOR tá?

Claro que estou!

Me desculpe, seu padre, mas é com o SENHOR que eu quero falar.

Então fale.

Mas... o senhor é o SENHOR?

É óbvio que eu sou.

“Oiá”! Que até hoje eu não sabia que o senhor era o SENHOR.

Já irritado, pois estava com pressa, tinha outra missa pra rezar a seis léguas dali, o padre diz:

Meu senhor, o que é que o senhor quer falar comigo?

Perdão, seu padre, mas eu não sou o SENHOR, o senhor é que é o SENHOR, e devo dizer que foi o senhor que falou que era o SENHOR, e eu vim aqui só pra falar com o SENHOR, sem sabe que o senhor era o SENHOR.

Perdendo completamente a calma, o padre diz:

Merda! (o padre olha para o alto e diz:) Perdão, SENHOR, perdi a calma.

Ué! Seu padre, eu tô aqui em baixo, por que o senhor “oiá pra riba”?

Com as mãos erguidas para o céu ele grita:

Dai-me, SENHOR, paciência para cumprir o meu dever quando for difícil.

Muito me admira, seu padre, o senhor, hem?! É tão letrado mas também é bem do atrapalhado!    

Já próximo às raias da loucura, o padre tenta ainda conversar.

Pelo amor de DEUS, o que o senhor quer?

Ora, seu padre,  já disse, falar com o SENHOR.

Ele cobre o rosto com as mãos, tenta afastar os pensamentos de raiva e vingança, sua voz treme de ódio:

Pela última vez, por favor me diga, o senhor veio falar com quem, e o quê?

“Descurpe” perguntar, o senhor sofre dos nervos?

Nãããããããoooooo.

Ora! Então por que qualquer coisa já se irrita?

Estou calmo, saco!

Eu só vim aqui pra falar com o SENHOR, pra poder dizer que se a vingança pertence ao SENHOR, então o SENHOR deve tomar cuidado com as suas coisas, pois esqueceu uma vingança no meu coração. 

 

 

O relógio de água

 

O ônibus sacudia pela estrada esburacada, deixando para trás a seca e as desilusões. Ciço pensava na vida. Estava indo para São Paulo, em busca do seu sonho, queria ser policial. Imaginava-se vestido de farda.  As pessoas o olhariam com respeito, os bandidos o temeriam porque, se fosse necessário, usaria a arma e na pontaria ninguém era melhor do que ele. Depois de dois dias e meio de viagem estava entrando em São Paulo – “Vigi Maria! Como é grande essa cidade”, – ficaria por enquanto na casa de uns conhecidos, no Capão Redondo. A casa pequena estava em construção, mas o que importava era que tinha sido acolhido com muito carinho por Raimundo e sua família.

No dia seguinte saiu logo cedo, precisava tirar os documentos. Quando voltou no final da tarde, Maria do Rosário, mulher do Raimundo, disse: - “Quero te apresentar a minha irmã, Maria Claudia”. Sua cabeça rodou, as pernas tremeram, a mão transpirava, sua voz sumiu, a única coisa que conseguia pensar era: - “Valha-me, minha Nossa Senhora! Se existe uma moça mais bonita tá no céu”. Até o nome era bonito, nome de artista, Maria Claudia, não se cansava de dizer: “Maria Claudia”.

Era um tipo brejeiro, morena, de cabelos longos e negros como a noite, e o sorriso encantador, lábios vermelhos, dentes brancos e um corpo lindo como uma flor. No coração a gente não manda, era paixão, daquelas de arrepiar os cabelos do braço, da boca ficar seca, e os olhos marejarem de alegria. Moça tímida, muito prendada, e quase não saía de casa. Ciço não era moço de esperar pela sorte: se estava caído pela moça, tinha mais é que pedi-la  em namoro. E foi o que fez. Mal começou o namoro já foi falando em planos de casamento.

De posse de todos os documentos, foi fazer a inscrição na  polícia. Veio a decepção: não tinha o grau de instrução necessário. Ficou um pouco triste, mas não se acabrunhou, e disse para sua amada: “Sonhos foram feitos para se ir atrás, aqueles que desistem é porque não tinham sonhos de verdade”.

Maria Claudia era de fato apaixonada por Ciço, mas, diferente dele, acreditava muito na sorte e na ajuda de Santo Expedito. Sua convicção  era tanta,  que no dia dezenove de abril, dia do seu santo protetor, comprou um destes carnês que sorteiam uma casa. Tinha certeza que seria uma das ganhadoras. Não contou nada ao Ciço, pois queria lhe fazer uma grande surpresa, e poderiam casar-se mais depressa.

Ciço arranjou um emprego numa empresa de transportes de valores. À noite fazia o supletivo. Apreciava muito o trabalho. Agora, o que mais gostava era descer do carro forte com a arma em punho, olhando para todos os lados, pra ver se não tinha nenhum bandido. Aceitava sempre fazer  transporte aos domingos, pois, além de renderem horas extras, havia a coleta no shopping center. A primeira vez que entrou naquele shopping, o queixo caiu: - “Meu padim Ciço! Que lugar bunito da gota”. O chão brilhava, muitas luzes, escadas rolantes, lojas de todos os tamanhos, vendiam de tudo que se possa imaginar, comida nem se fala, tinha pra todos os gostos. Como era possível reunir tanta beleza em um só lugar? Santo Deus! O relógio de água azul era a coisa mais linda que seus olhos viram. As pessoas pareciam tão felizes e contentes.

Maria Claudia morria de curiosidade de conhecer shopping center de tanto que o Ciço falava. Que aliás, tinha  prometido que um dia os dois iam passear no tal shopping e até comer nas mesas da praça de alimentação.

No último domingo, Ciço entrou no shopping, como sempre feliz da vida. Em frente ao relógio teve uma visão, ficou branco feito uma vela, parou, seu coração gelou, seus olhos cegaram de ódio, seu braço levantou automaticamente, fez pontaria e seu dedo apertou o gatilho. Foram dois tiros certeiros. O primeiro atingiu o rapaz na cabeça, o segundo acertou o coração de Maria Claudia, que segurava o carnê  premiado na televisão.

Daquele momento em diante nunca mais ninguém ouviu uma única palavra da boca de Ciço.

A notícia não saiu em nenhum jornal ou revista, pois no shopping do relógio bonito não existem tragédias.

 

Ninguém vai prestar atenção em você

 

Querem saber por que estou dormindo aqui, no sofá da sala? Por causa de uma festa, ou melhor, do que antecedeu a ela.

Tudo começou quando meu chefe nos convidou para uma reunião em sua casa. Fiquei feliz, avisei a Maria Rita que iríamos à casa do “Big Boss”. Inicialmente a reação dela foi:

- Que maravilha! E quando será? A festa será a rigor ou informal? Que tipo de roupa devo usar? Quem vai? A que horas será?

Não sabia nenhuma das respostas, o que já irritou minha mulher. Procurei sair com uma  daquelas desculpas bem masculinas:

- Sabe o que é, amor, o chefão falou comigo no corredor, meio depressa assim... sem muitas informações, ficou de falar com calma depois.

- Como assim meio depressa? Então não é certeza?

- Não, tá  certo, fomos convidados, é que depois ele dará os detalhes.

Pensava comigo: “Amanhã preciso conversar com o chefe pra saber esses pormenores”. À noite, munido das informações, falei:

- Benzinho, conversei com a Dona Eudozia, esposa do Dr. Antero, e ela disse ser uma reunião de amigos. Só a diretoria e as gerências, e é sábado agora, com roupa simples (de bater mesmo).

- Dagoberto, desde quando a “bruxa velha” usa roupa de bater? Acorda, Dagoberto, a roupa simplezinha dela é “Versace ”.

- Querida, então... usa aquele vestido azul, do casamento da sua prima, você tava lindona.

- Como lindona, Dagoberto? Eu parecia uma butijão de gás com capa de plástico.

Neste momento entramos naquela parte do casamento pela qual todo homem já passou, e se não passou um dia passará. A mulher abre a porta do armário e diz:

- Não tenho nada pra vestir.

Ai de você se cair na besteira de dizer que o armário esta abarrotado de roupa! É morte certa.

Segunda parte (o calvário): durante horas ela experimentará todas as roupas e nenhuma servirá. Os motivos estão além da sua pobre imaginação. Lógico que você será massacrado, porque fatalmente dará algumas respostas erradas:

- O que você achou deste?

Não importa que tipo de resposta você dê, será sempre a errada. Você ainda corre o risco de ser chamado de idiota, pois provavelmente não sabe por que roupa é tão importante para uma mulher. 

- Dagoberto, uma mulher se preocupa tanto com a sua aparência porque sabe que as outras mulheres estão lá somente para olhar os vestidos umas das outras.

Eu tentei ser simpático e acabei virando “um sem-quarto”, pois cometi um erro fatal. Disse:

- Não se preocupe, querida, pra mim você está sempre bonita e fica bem com qualquer coisa. Além do mais, ninguém vai prestar atenção em você.