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Deise Assumpção
FORMAS DIVINAS
Nasci com um altar entranhado
tão ao âmago amasiado
clamando por um deus entronado
que impossível extraí-lo
sem reduzir-me a fiapos
(a que me sujeitaria
se não pressentisse entre eles
o mesmo altar indelével
perpassando-os incólume)
que impossível extraí-lo
sem a mim mesma extirpar-me
(a que me sujeitaria
se não o adivinhasse
a espreitar-me em meu nada
clamando que o preenchesse)Vivi errante escrava
amalgamando na carne
a esfinge da divindade
que sossegasse o altarDepois que o velho de barbas
revelou-se insuficiente
por sua máscara banal
esculpi em triângulo o ídolo
antegozando a vitória feliz:
a menor pluralidade
a delimitar a unidade
em que dois não coincidentes
se tocam gerando o terceiro
compondo um único todoMas era muito anguloso
para assentar-se ao altarDisparei então a imagem
condizente com um deus:
o que é eterno, é claro,
não tem princípio nem fim
é a reta, infinita,
tangenciando intocável
cada pedaço de espaço
cada instante de serMas a reta fugidia
não se enquadrava no altarExtasiei-me encantada
ao vislumbrar pois a síntese
arrasadora da esfera:
multiplicidade infinita de faces
a compor uma única face
pelo desvio tão mínimo
de cada ponto da reta
sem quebrá-la em nenhum ângulo
maneja-a curvando-a macia
num único todo centrado
e pode expandir-se infinita
sem perder unidade e forma
sem descentrar-se de si
tangenciar o intocávelMas a esfera engolia
ao altar, a mim, a DeusEntão cansada estirei-me
na ara fria do altar
e sonhei-me ovelha ofertada
em espirais de fumaça no ar26/11/2000
EM VIA
Venho do amanhã junto ao horizonte
sem saber se era antes
Enquanto ele é a fugir do hoje
e sempre me acena nova aurora
caminho no agora e adio a vida
até não mais poder ter o depois
pois que o amanhã se faz o hoje
e me engole o horizonteE talvez quando o hoje se faz ontem
me cinja e abrace o momento
e haja tempo de estar sempre
a inteirar o amor truncado
e haja jeito de tecer eternamente
o meu gesto antepassado
e haja a forma de eu ser a gota
enquanto mesmo me dissolva no oceano23/01/2001
ASSALTO
No cristal impermeável
do espelho do meu quarto,
olhei brincos e batom,
tom de vestido e sapatos,
cheiro de gotas de almíscar,
dobras da seda da gola.No espelho transparente
do vidro do meu carro,
colou-se um prato de fome,
sobrenome de menino
registrado em cartório
de latrocínio de nomes,
em expediente encerrado.E eu me vi,
e tive medo.26/01/2001
CONTEMPORIZANDO
O tempo me vestia com mangas compridas
que engalfinhavam as mãos
e pernas largas.
E eu ficava esperando demorada
o passeio de bicicleta
e o macarrão de domingo.
E eu pensava que podia guardar
no bolso do pijama de flanela
o pequeno fósforo de artifício já aceso.O tempo me despe das leituras que nunca fiz,
dos poemas que não escrevi,
dos orgasmos que adiei.
Esconde-se em limpar armários
e arrancar ervas daninhas
numa indolência que leva a semana de roldão
à prestação.O pêndulo é o mesmo da casa antiga
e eu já nem sei se na eternidade
terei de volta o amor,
ou o que fugiu nos amando,
ou o que ficou nos perdendo.31/01/2001
MATÉRIA-PRIMA
Para erigir uma obra
real e isenta de mim,
viajei países, pessoas,
e tempos, livros e técnicas.Recolhi os pedaços de mundo,
inteiros vazios de mim,
na memória justa, exata
de competente computador.Do irregular tique-taque
das sinapses eletrônicas
em prazo sem devaneio
já descerrou-se-me a tela.E lá no fundo da imagem
meu olho a piscar-me eu vi.05/03/2001
HUMANITAS
Fito
a cor do pulo do gato
o som do feitio da fêmea
o toque da fruta na língua
o sabor da terra vermelha
o cheiro da água que rola
a dor esticada no asfalto
a piada na boca do bêbado
Sei e
SouCifro
o que fito
e decifro a cifra
do fito do outro
em salmos
cardápios
genomas
Cogito
ExistoE
insone
eu sonho
a posse
da senha
que condensa
o ser no existir
e insídia
pressinto-a
na morte
Insisto
E vivo18/02/2001
SEQÜELA
Sempre
a adaga alopática
na goela
do socoRugas
de lágrimas torcidas
no travesseiroToda manhã
de cara
passada a ferroE o verso
infecto
de melodia
em esforço homeopático02/04/2001