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Um Par de Crônicas

 

Maria Cristina Castilho de Andrade

 

(A autora exerce em Jundiaí trabalho pastoral carcerário e com mulheres de rua. É autora do livro Nos Varais do mundo / Submundo, São Paulo, Loyola, 2001)

 

Flor de Laranjeira

Escreveu uma carta para um amigo e me fez portadora dela. Pediu-me que a lesse antes a fim de conhecê-lo melhor. Não havia envelope e muito menos endereço do destinatário. O amigo e ele fazem parte dos que possuem a rua sem ter endereço; dos que percorrem as cidades sem visualizar uma porta com entrada para o seu mundo, aquele onde há fotos, aromas, quadros, gavetas, enfeites pessoais... São, na perspectiva de muitos, silhuetas desprezíveis nos jardins, calçadas, marquises. Cheiram, comumente, o álcool da fuga e, no olhar, têm areia cinza e molhada das praias no entardecer do inverno. Carregam, nas pernas, que se dobram em intervalos pequenos, toneladas de desencantos pelo presente, passado e futuro. Destinatário de residência efêmera. Remetente de cadeia passageira. Existência nômade.

Há pessoas cujas lembranças, quase todas elas, são tristes. Não saberia dizer se as fizeram assim ou se foram empurradas por sua história. Creio sempre mais que os acontecimentos, de alguma forma, dão empurrões e forçam. No ponto alto do espiral dos redemoinhos, comumente, caem, quebram a coragem e prosseguem, na solidão, dobradas. Remetente e destinatário, apesar da história magoada, dos acidentes e quebras, da solidão, das marquises frias, encontram momento de saudade.

A carta diz da estima entre os dois e de quando um deles, o que está preso, em madrugada deserta, colocou com ternura, no jardim da praça, sementes de laranja, após preparar a terra com as mãos. Regava todas as noites, quando o jardineiro distanciava-se. Uma apenas rompeu a terra e fez-se laranjeira. Regá-la era seu momento de festa. “Daquela praça tenho muitas lembranças. Gostaria de estar lá agora. Seria muito mais feliz do que aqui preso. Se estivesse lá, já teria aguado aquela pequena planta que plantei (...) Os pássaros já estariam alimentados...” Continua e diz da amada, da bebedeira que tomou para esquecê-la. Escreve, ainda, sobre uma outra que chegou no silêncio e ofereceu-lhe carinho e a oportunidade de ser outra vez feliz.

Na despedida, há saudações e vontade de reencontro; há, além disso, a proposta, para que a amada torne-se, pelo menos, amiga e que o destinatário seja portador de abraços para os conhecidos  e de goles de água para sua laranjeira.

Como portadora da carta, vi, nos olhos dos dois, flores brancas com orvalho e frutos doces repletos de  sumo e meu coração fez-se grávido do abraço de Deus - que reconstrói- para todos os seus filhos.

Circunferência

O acontecimento está próximo. Encontra-se sendo preparada  para estrear-se, ou melhor, ser estreada. Há anos, determinaram a data. O ambiente tornou-se cotidiano. Veio bebê para ele. Os que passam, observam-na sem muita curiosidade. Viverá a realidade de muitas outras. A mulher de vestido florido, seios fartos, cabelo preso num coque e dentes dourados, sorri em gargalhadas quando fala dela. Os olhos oblíquos faíscam. Em breve, colocará o anúncio sobre a debutante da  noite. Os freqüentadores habituais da casa já sabem, viram-na crescer e, de certa forma, aguardavam-na. A divulgação é para os esporádicos ou turistas. No bar, o consumo de bebidas aumentará. Empolgação pelo jogo. O “dono do curinga” baterá palmas para si mesmo e sairá carregando o “troféu”. Os perdedores continuarão no local, comemorando as fantasias do preâmbulo.

A menina irá completar dez anos. Nasceu em Salvador, nas proximidades do pelourinho. O seu choro, na noite da chegada, confundiu-se com gemidos escravos que permaneceram, através dos séculos, para sempre, no ar.

O pai não veio vê-la. O pai não sabe dela. Pagou uma mulher na madrugada ébria e pensou-a terra árida. Apagou-a ao fechar a carteira. A nenê cresceu sozinha de pai no desespero da mãe. Os traços orientais, contudo, não permitiram que dissessem que era filha do acaso. Misturou, na face, a mãe e o pai. É assim que sorri.

A avó, sem impacto, disse que a mandassem para o sertão, diante da possibilidade do abandono. O sangue da neta efervescia no seu. Não tinha segredo: aprenderia a andar e a falar, brincaria com boneca de pano e diria, como as três filhas - a mãe e as tias da menina - que desejava conhecer o mar. As três, quando ficaram moças de doze anos, foram e ficaram, misturadas ao cheiro acre do cais. Uma delas morreu no barco que virou próximo ao navio. As outras duas retornam, esporadicamente, os olhos, todavia, não têm oceano ou farol do porto, apenas contêm poça esverdeada de água interrompida.

A avó trouxe, sem sustos, a neta para o círculo que vivia, o mesmo círculo das três filhas. Ao chegar, causou surpresa pela origem e determinaram-lhe, na resignação da mãe e da avó, o destino a partir dos dez anos.

Comenta-se que a casa de shows será pintada para a estréia da menina. A roupa ficará a cargo da dona. Terá lantejoulas, cavas profundas e sapato de salto alto. Os olhos rasgados serão acentuados por sombra dourada e traços de lápis preto. A boca vermelha fará movimentos previamente ensaiados com o propósito de levar a platéia ao delírio. O pregoeiro tem prática no leilão de virgens e do lance maior terá dez por cento.

A menina está sendo preparada, também, para não pedir, na hora em que entrar no quarto, o cobertorzinho com que costuma dormir abraçada.