A briga entre a porta e a janela

 

Rosiane Oliveira

 

Todas duas são muito importantes. Elas podem ser feitas de madeira de lei, daquelas bem duras que o cupim não come. Elas moram bem pertinho uma da outra e são velhas amigas. Dona Porta e Jane, a janela, são muito magrelas quando olhadas de lado. Aliás, elas foram proibidas por Deus de serem gordas, caso contrário teriam de mudar de profissão. Mas um dia, quando a casa estava toda bem fechada, elas se esqueceram da antiga amizade e armaram o maior bate-boca, quer dizer, o maior bate-porta-janela, para saber qual das duas era a mais importante e útil.

— Sua porta achatada e sem graça, a única coisa que você sabe fazer o dia todo é ir pra lá e pra cá, abrindo e fechando. E se não tiver a chave, então, já era, quem tá fora não entra e quem tá dentro não sai. Já eu não, tenho vidro, sou articulada, sou graciosa e enfeito belas mansões. Sem mim não haveria as floreiras da janela e sou eu quem mostro o mundo para todo mundo, gabou-se Jane, a janela.

— Mas acontece, dona janela, disse a porta que era muito mais equilibrada, que sou eu quem abro caminho para a vida... Além do mais, não incomodo a ninguém. Se querem sair, abrem-me, se não, me deixam quietinha. E tem mais, desabafou já meio irritada por causa do jeito escancarado com que a janela a olhava, o ladrão quando quer entrar, passa por onde, hein, hein? Ou você não sabe que a janela é porta de ladrão?

Naquele dia seria decidido o futuro de todas as portas e janelas do mundo... E se a briga continuasse, poderia ser que as portas e as janelas deixassem de existir. Já imaginaram uma casa sem porta e sem janela?

Quando dona Porta e Jane, a janela, estavam quase saindo no tapa, o senhor Mister Quadro, que ficava na parede esquerda da sala, bem no meio das duas, começou o seu discurso, embora não gostasse muito de dizer com palavras, mas com sua paisagem:

— Meninas, não há mais ou menos importante: vocês duas são vitais para o bom andamento de uma casa. Pensem bem, sugeriu, todos que chegam a esta casa passam horas me admirando e imaginando que inspiração o senhor Monet teve para me fazer, mas vocês sabiam que ele, para me dar vida, ficou olhando a paisagem pela janela? Mas para eu estar em um lugar onde todos
pudessem me admirar, ele me passou por uma porta e me deixou aqui. Estão vendo? Vocês duas são úteis.

Depois das palavras do senhor Mister Quadro, acabou a discussão de fechar o tempo. As duas se olharam no fundo dos olhos e abriram um sorriso:

— Ora, ora, que bobagem, somos nós duas importantes, disse dona Porta. Afinal de contas, quem é que num simples movimento de ir e vir pode significar tanto para o mundo? E você então, amiga Janela, que de tão iluminada clareia a vida de todos nós quando se abre para um horizonte
ensolarado.

Depois desse dia, dona Porta e Jane, a janela, nunca mais voltaram a brigar. Cada uma reconheceu que tinha valor e só não se abraçaram para não deixar buracos na parede.

 

 

Quando alguém descobre o seu valor...

 

Rosiane Oliveira

 

Estressilda era uma panela de pressão muito estressada. Reclamava de tudo, se chateava com as mínimas coisas e só não explodia porque agüentava muita pressão. Se feijão cozinhava, gritava. Se era lavada, chorava. Achava aquele esfrega-esfrega do Bombril muito hostil.

— Mas, ô vidinha chata e sem graça! Não consigo entender porque sou uma panela de pressão. Há tantas formas de vida mais interessantes na terra, por que eu tinha que ser logo uma panela? Imagine se eu fosse uma batedeira de bolo, daquelas com mil botões, bacias para todos os tipos de bolo, cinco velocidades... Isso sim é que é felicidade. É... mas é só um sonho. Minha realidade é essa vida enjoada de fazer buchada, rabada, quando muito uma feijoada. Minha rotina é armário, pia, fogão. Fogão, pia armário. Nada hilário.

Depois de anos de reclamação, Estressilda teve uma idéia que julgava sensacional, fenomenal, sem igual:

— Vou fazer numerologia! Isso mesmo, vou mudar o meu nome e só assim vou conseguir trazer energias positivas e bons fluidos para a minha vida. Finalmente encontrei a solução. Que sensação!

Mesmo com nome trocado — agora ela se chamava Estressilda da Silva Clock —, ela continuava com a mesma tristeza, a mesma estranheza. Depois de muito observar a vida agitada de dona Frigideira Frita Free, Estressilda decidiu que seria igual. Passaria por uma mudança radical.

— Hum, nossa, ela é tão livre. Será por isso que o sobrenome dela é Frita Free? perguntava a si mesma. Ela é tão elegante e sempre tão moreninha por causa do bronzeador óleo quente. Vou mudar, já está decidido. Vai ser divertido.

Achatou em cima, amassou do lado e se transformou em uma sofisticada frigideira. Nada adiantou. O coração não mudou. Certo dia, porém, a dona da casa onde Estressilda morava resolveu promover um jantar de confraternização para uma grande amiga que passou muitos anos nos Estados Unidos e agora voltara ao Brasil. Foi um dia de muita agitação e Estressilda sempre muito requisitada. O prato principal a ser servido seria uma feijoada, já que nos Estados Unidos ninguém conhecia tal iguaria. E ninguém melhor do que uma boa e velha panela de pressão para preparar esse prato típico da nossa nação.

— Hum! Está delicioso, elogiava o guloso.

— Jamais comi tão saboroso feijão, admirava-se o comilão. Me dá mais uma porção!

— É, está realmente suculento, admitia o rabugento.

Quando Estressilda ouviu da cozinha os elogios, feliz, tratou de se ajeitar com alguns enfeites, pois sabia que tinha uma participação muito grande naquela noite de banquete. Desse dia em diante, jamais voltou a se queixar da vida ou de ser uma panela. Aprendeu que podia fazer os outros felizes com sua utilidade. Sem futilidade.

  

Paródia

 

Rosiane Oliveira

 

— É, Julinho, já estou cansada de te falar sobre suas peraltices. Menino, menino, quantas vezes vou ter que te dizer que não se deve judiar dos animais. Eles têm dor, sabia? Onde já se viu, atirar o pau no gato? Coitadinho do chaninho, não conseguiu nem correr. Ficou lá, estatelado, com os olhos arregalados e berrando sem parar. Se pelo menos tivesse morrido, talvez seria melhor, sofreria menos, mas não, só berrava, berrava. Êta, Julinho desajeitado. Qualquer hora dessas... Nem sei, nem é bom nem falar. Êta, Menino descarado! E a dona Francisca, viu tudo e não fez nada. Só soube mesmo se admirar dos  berros do pobre do gato. Hum, dona Chica, tem nem um pingo de juízo também,  não tomou atitude com o Julinho, nem mesmo vendo a judiação.Êta menino!

Êta dona Chica!

Êta berro!

E ele, o Julinho, quando crescer, o que mais vai aprontar? Vai dar um anel de vidro para a namorada, e acabar com todo o amor da pobre coitada? Não sei onde esse menino vai dar. E contar mentiras, então, é com ele mesmo. Dia desses, reuniu a garotada toda da rua lá em casa para dizer que tinha uma barata, bem pequenininha, que morava numa casa de vidraça.

— Uau, Julinho, uma barata numa casa de vidraça. Pô, manero, deixa a gente vê! Diziam em coro.

— Xi, agora vai ser difícil, porque a chaminé da cozinha da dona baratinha encheu de fumaça toda a casa dela.

— Assim, virava o rosto e ria safado.

Mas não se contentava com as invenções não. Um dia chegou em casa aos gritos de euforia, dizendo para a mãe, a pobre da dona Eulália, que viu uma carrocinha pegar três cachorros de uma só vez. Magina, carrocinha, nós não conhecia nem bicicleta direito. Êta, menino peralta. Um dia, queria de todo jeito convencer a professora que foi a mãe dele que coseu o tal do chapeuzinho vermelho daquela menina da história do Lobo Mau. Cê vê bem!!! E para contar histórias então, não tinha igual. Julinho sabia todas de trás pra frente e de frente pra trás. De trás pra frente então era o jeito que mais sabia. Na história de Branca de Neve e os Sete anãos, por exemplo, dizia que ao invés de um beijo do príncipe, a princesa ganhou foi uma taça de sorvete de creme com cobertura de chocolate, para se livrar da feitiçaria que da bruxa.

— “E então, a princesa, ao sentir o maravilhoso cheiro do sorvete, pulou em pé, vivinha”. Dizia com ar solene o moleque.

— Meu filho, meu filhinho, isso lá é jeito de contar a história para seus colegas? Perguntava a paciente dona Eulália.

— Ah, mãe, essa história de beijo de príncipe encantado é muito chata.

— É muito o quê, menino?

— Nada não mãezinha, deixa pra lá.

E os meninos ficavam assim, de boca aberta ouvindo as lorotas do Julinho. Jurava que quando crescesse ia até o outro mundo, aprender as histórias de Sherazade para depois contar para os amigos. Às vezes eu até pensava que ele ia mesmo voar em um tapete voador, como vivia prometendo pra ele mesmo. Parecia acreditar que um dia poderia viver sem se preocupar com os problemas da vida... Nem passava por sua cabeça que um dia ia ter que pensar no futuro. Mas o futuro chegou. Julinho, quer dizer, o doutor Júlio, já tinha deixado pra trás as peraltices de menino travesso. Agora era o doutor Júlio, advogado famoso da capital. A gente não pode nem pensar em chamar ele de Julinho.

— Isso lá é jeito de falar com um advogado de respeito como eu, Benedita? Dizia quando eu deixava escapulir um Julinho.

Ele defende qualquer causa, para ele não tem nenhuma impossível. Virou homem sério e de respeito. Nem parecia mais o menino contador de histórias para a meninada da rua, do colégio, da vida... Agora não suportava as invenções de histórias. Vivia dizendo: “Gosto de tudo na ordem”. Era a frase predileta dele. Bem, pra dizer a verdade, continuava a contar histórias, só que pra um jurado todo sério, usando terno e gravata. Usava um anelzão no dedo que parecia mais um emblema. A pasta onde guardava os tais processos tinha até segredo. Segredo que nunca quis me contar foi o porquê do rompimento do namoro com a dona Silvia. Moça boa tava ali. Fazia uma conta da gente que só vendo. Mas ele só sabia dizer que a moça era muito criança, que gostava de passar na beira da praia e fazer pic-nic no jardim. Vê se isso é motivo para terminar o namoro? Ainda mais para ele que aprontava tantas quando era menino. Êta, Julinho, não tem jeito não, só consigo chamar ele assim, continuou o mesmo na minha cabeça. Nas minhas lembrança era o mesmin de sempre. Mas já não era o contador de histórias, o menino inventador de moda daquele tempo.

Êta, Julinho que deixou saudades.

 

Prolixo

 

— João?! Aquele alto magro sempre mau humorado com feições de coronel que vive esculachando a mulher por não encontrar suas botas 7 léguas número 41 forma grande debaixo da cama mais para o lado da cabeceira do que do pé e que ontem mesmo se zangou com um vizinho que estacionou bem em frente à garagem de sua casa e depois não quis mais ir com D. Maria ao supermercado pois estava bronqueado?

— Ah sim!, acabou de sair.