A Outra
Heleni Gimenes
Conceição só descobriu que era Eleonora quando entrou para o grupo escolar.
Como todos nós, ela tinha duas avós e os pais sabiam que ambas queriam ver seu nome perpetuado naquela menininha bonitinha e coradinha.
Para fazer o gosto das duas, não tiveram dúvida: registraram com o nome da avó paterna, mas fizeram um trato com a família: ela só seria chamada pelo nome da avó materna.
Até a entrada para a escola tudo foi tranqüilo. Os problemas começaram a surgir quando os professores não aceitaram os argumentos dos pais de Conceição, de que seria melhor para ela que continuassem a chamá-la pelo nome que estava acostumada.
Para desespero de Conceição, Eleonora começou a freqüentar as aulas.
Os pais, para acalmá-la, deram uma explicação maravilhosa:
— Quando estiver na escola, você vira outra pessoa, passa a ser a Eleonora e quando chega em casa é a Conceição novamente, tudo como se fosse uma brincadeira.
Explicação clara, coerente e que sossegou o choro de Conceição por ter que conviver com essa tal de Eleonora, uma verdadeira estranha.
Até hoje, com 34 anos, adora essa brincadeira de ser duas em uma.
Há coisas que só a Conceição faz, mas em contrapartida existem perguntas para as quais só Eleonora tem a resposta.
Conceição é do tipo família: leva a tia para as compras, playcenter com os sobrinhos. Eleonora é mais “despachada”, tem sempre uma resposta pronta, doa a quem doer. Levar desaforos para casa nem pensar, afinal de contas Conceição não tem nada a ver com as situações em que ela, Eleonora, se coloca.
A escolha sobre que profissão seguir foi um pouco difícil. Conceição queria fazer advocacia, vinha de uma família de advogados famosos. Os avós, o pai e os tios se saíram muito bem na profissão. Eleonora queria artes cênicas.
A decisão final foi advocacia com especialização criminal, pois assim Eleonora teria oportunidade de mostrar ao mundo seus dotes teatrais.
Os namoros eram sempre muito conturbados. Conceição achava alguns namorados que Eleonora escolhia, saidinhos demais para seu gosto. Eleonora por sua vez, considerava os escolhidos por Conceição uns verdadeiros “panacas”.
A duração média de cada relacionamento era de uma semana no máximo.
Depois de muita dor e sofrimento, ora por parte de uma, ora por parte de outra, apareceu Rogério, o homem que conseguiu encantar a todos os gostos. Reunia o que ambas esperavam de um homem.
Quando depois de um tempo ficou sabendo da história dos nomes, se preocupou um pouco, mas como o amor era enorme, contornaram a situação com uma saída simples — ele só a chamaria por um apelido carinhoso.
Passaram um final de semana tentando chegar a alguma conclusão. Depois de descobrirem que combinações como “Noração”, “Elecon”, “Conora”, “Cenora”, “Eleição” não são nada poéticas, ele decidiu que ela seria, simplesmente, e para sempre, “meu amor”.
O casamento teve a pompa que Conceição queria e a lua-de-mel foi bem ao gosto de Eleonora. Saíram sem destino certo, parando onde a urgência de se amar gritasse mais alto.
Daqui há um mês vai nascer o filho, que a ultra-sonografia declarou ser um homem.
Rogério diz estar com um problema nas mãos, pois percebe que tanto seu pai, o Dagoberto, como seu sogro, o Antônio, gostariam que o neto tivesse seus nomes.
Ele fica preocupado, perturbado e com muito medo quando comenta o fato com o seu amor, e ela lhe devolve um sorriso tranqüilo e enigmático, de quem já sabe a resposta...
Julieta procura Romeu
Heleni Gimenes
Ela queria viver um grande romance, arrebatador, um conto de fadas moderno. Desde sempre sonhava em ser a heroína de uma história de amor que, de tão bela e profunda, seria adaptada para o cinema.
O tempo passava, e isso não acontecia. Ela tinha a explicação, existia um obstáculo intransponível: Seu nome.
— “Hermelinda corria feliz pelo bosque ao encontro de seu amado.”
Alguém consegue visualizar a cena de ”Hermelinda“ correndo pelos bosques ao encontro de seu amor? Ela também achava que não, a menos que a corrida fosse de algum boi bravo.
Sentia que o máximo que “Hermelinda” poderia ser numa história de amor era a cozinheira da mocinha.
— “Hermelinda preparou um delicioso bolo de fubá para que Ernesto e Rosiane tomassem chá depois de uma tarde de amor.”
O tempo foi passando e Hermelinda se acostumando a ter seu príncipe encantado só nos sonhos, quando ele, num ímpeto de paixão, a puxava de encontro ao peito e, depois de um beijo arrebatador, dizia:
— Nomes? Não existem nomes, existe somente eu, você, a lua e nosso amor.
Depois dessas fantasiosas e loucas noites de amor, suas esperanças eram renovadas.
E foi assim, ano após ano, mas o homem que a levaria para as páginas de um romance não aparecia.
Cansada, e já prestes a se aposentar, não só como professora mas da vida também, resolveu jogar sua última cartada.
O dinheiro juntado durante anos foi aplicado num cruzeiro marítimo. Impossível não encontrar, sob as estrelas e ao som da água batendo levemente no casco do navio, a sua metade.
Foram dias de sol queimando sem dó nem piedade a pele branca e alva de Hermelinda. Foram noites de um esforço sobre humano para não dormir sobre as máquinas caça níqueis do cassino. O pé não estava acostumado a se equilibrar em saltos tão altos e finos. Isso sem contar o rosto esverdeado de tanto vomitar e com olheiras profundas
Na última manhã do cruzeiro, encontramos Hermelinda cansada, com sono, enjoada e principalmente irritada porque suas últimas esperanças foram embora junto com seus últimos reais gastos num drinque que engoliu sentada sozinha no bar .
Estava tentando lembrar quem dissera que fazer um cruzeiro era uma forma romântica de conhecer alguém. Dez dias em alto mar na companhia de casais, casais, e para variar, algumas crianças que infernizaram sua viagem chamando-a de “tia”:
— Ih, tia, vomitando de novo?
Sentada no deck do navio, levantou-se bruscamente para não cair em tentação e voar no pescoço de alguns daqueles anjinhos. Saiu quase que correndo e não viu que o garçom vinha equilibrando uma bandeja de copos. O encontro e o tropeção foram inevitáveis.
No chão, envergonhada e rodeada de cacos de vidros, sentiu que duas mãos fortes e vigorosas a levantavam.
Olhos nos olhos, coração no coração, naquela hora eles podiam jurar que em algum lugar violinos estavam sendo tocados. Não conseguiam se soltar.
— Desculpe, estava distraído e não vi a senhora, dona...
— Hermelinda, mas eu é que tenho que me desculpar, na realidade estava quase correndo e não vi o senhor, seu...
— Genésio, a seu dispor...
Pedaços de Histórias
Heleni Gimenes
“Preguiça é o convite de uma espreguiçadeira à sombra de uma árvore num dia de verão.”
“Será que os bancos desconfortáveis e duros das igrejas já fazem parte da expiação dos nossos pecados?”
“Solidão é uma única rede no meio de um quarto onde antes se aconchegavam duas.”
“Hei, rede, acorde! Não deixe que eu abandone seu colo em busca de outros colos que me seduzem prometendo amor.”
“Abro devagar a porta de um mundo secreto com os olhos assustados e curiosos: retratos em cima da cômoda, um quadro do Sagrado Coração pendurado na parede sobre a cama, o perfume de naftalina dos lençóis, o terço e a Bíblia esquecidos numa cadeira de palhinha. Meu Deus! Acabei de invadir a intimidade dos meus avós.”
“O pijama dobrado sobre uma cadeira espera pacientemente que seu dono o vista. Ele não se rebela. Assim são algumas mulheres que esperam pacientemente por seus homens que só voltam para casa quando o sono chega.”
“Hei, rede, por favor, me enrede.”
“Ele foi embora, e eu fiquei parada ao pé da porta sem saber se corria atrás dele. O sol foi desaparecendo aos poucos do céu, e eu, devagar e sem emoção, voltei para o nosso quarto, deitei na nossa rede e liguei o radinho de pilha.”
“Ternos e gravatas se embalando numa rede? Que coisa mais fora de propósito!”
“Saudade de uma infância que não foi minha: meu avô, no final da tarde, deitado numa rede, lembrando de casos e contando histórias que também não sei se eram dele.”
“Aquela cadeira de balanço esquecida num canto do porão é a única que não se esquece das histórias contadas nos finais de dias chuvosos.”
“Na parede, um quadro do Divino, o reboco caído mostrando, sem vergonha, o barro e o tijolo. No teto, dois bicos de luz e só uma lâmpada amarelada pra fazer sombras nas paredes, ou seriam bolor e umidade essas manchas? O cheiro de abandono nas cortinas desbotadas e no tapete puído. No sofá rasgado, um homem espera, só espera, nada mais.”