O Delicado Sabor da Vingança
Carlos Gomes
Ninguém sabe ao certo quando tudo começou, mas o que se conta é que são inimigos cordiais desde a juventude.
De um lado, o dono do cartório de notas, Dr. Alberico Simões, tabelião juramentado na capital. Sujeito de poucos amigos, metido a sabe-tudo, franzino, de baixa estatura, expressão sisuda, sempre vestido com terno preto, camisa de linho branca com colarinho engomado, chapéu côco e o inseparável guarda-chuva, que era de pouca utilidade naquelas paragens tão secas.
Do outro lado, Francisco Heráclito, mais conhecido como Chicoeráquio, caboclo curtido pelo sol do sertão, homem simples mas de grande sabedoria, bom de prosa e contador de causo, o único vendedor de terras da região.
Na cidade se dizia que era possível acertar o relógio pelo Dr. Alberico, pois todo santo dia, às sete horas em ponto, abria o cartório. Ele só tinha três prazeres na vida: a missa aos domingos, doce de caju e os dias da vingança, que eram quando Chicoeráquio tinha que vir ao cartório para registrar terras.
Chicoeráquio sabia que o dia seguinte seria especialmente ruim: iria ao cartório, e como não gostava de ficar em fila tinha que chegar na hora que abrisse. Mas sabia que Dr. Alberico chegaria depois das sete e meia só pra vê-lo esperando.
Dito e feito, já passava das sete e quarenta quando o Dr. Alberico passou por ele com aquele sorriso de vitória, fez uma leve mesura com a cabeça.
Como sempre fazia nestes dias, muito lentamente começou a abrir o cartório: primeiro a porta de madeira, depois uma a uma as dezenove janelas da casa. Após arrumar vagarosamente a mesa, pegou todos os lápis e foi apontá-los em local de onde poderia ficar olhando o seu desafeto se morder de ódio, ali em pé, esperando para ser atendido.
Pelo seu lado, Chicoeráquio aparentava a calma das onças que esperam a sua presa: não movia um músculo, podia esperar horas sem dizer uma única palavra.
Dr. Alberico se deliciava com sua vingança e lentamente apontava o quinto lápis, quando, no momento em que levantou os olhos para ver a cara do inimigo, a gilete atingiu seu dedo.
— “Ai !” – Gritou, levando, o dedo à boca.
Chicoeráquio falou com a calma dos caboclos:
—“É a mardita da pressa, doutor”.
Um Grande Favor
Carlos Gomes
Na verdade, ninguém conhecia José Raimundo de Souza, mas todos os condôminos do Saint Paul Office Tower sabiam quem era o simpático Risadinha. Poucas pessoas tinham tanto orgulho de exercer uma função como ele. Era o porteiro da manhã, no maior edifício do centro financeiro de São Paulo.
Aos seus parentes, que tinham ficado no sertão, fazia questão de enviar fotos todo garboso, de uniforme azul, na porta do prédio. Nas cartas, gostava de contar quem o tinha cumprimentado, quando passavam pela portaria: Silvio Santos, guru, Leandro, Daniel, Fausto e até a Tiraniza; políticos, não gostava de citar, mas fazia questão de lembrar que um desses atores de cinema estrangeiro até apertou a sua mão.
E aquele dia 23 de dezembro seria uma data muito especial. Assim que terminasse o expediente, iria à rua 24 de Maio pagar a última prestação do seu terreno. Apesar de ficar um pouco distante, em São Miguel, era um terreno de vinte metros de frente por quarenta de fundo. Construiria duas casas: uma pra ele e outra pra mãe e irmãos, que mandaria buscar no Nordeste.
Estava tão distraído com seus pensamentos que quase perdeu a hora de saltar na estação Sé. Caminhava feliz por entre as barracas dos camelôs, nem se importava com a sujeira das ruas, gostava mais de olhar os prédios. Em cima do viaduto do Chá, parou para olhar a cidade. Como gostava desta São Paulo de Piratinga! Achava tudo uma beleza.
De repente, sentiu que alguém o olhava. Era uma moça loira, sem dúvida a mulher mais bonita que já vira, de olhos azuis como o mar, lembrava um anjo, vinha andando apressada, parecia assustada, olhando para todos os lados como que procurando alguém. Ela chegou bem perto e olhou dentro dos seus olhos, e disse:
— Moço, o senhor parece uma pessoa decente, por favor me ajude, por favor eu lhe imploro.
Ela se ajoelhou à sua frente, pôs as mãos no coração e levou-as até ele como quem segura algo, e disse:
— Moço do sorriso bonito, guarde o meu coração, ele nunca amou.
Levantou-se, deu-lhe um beijo na face, e saiu correndo para o outro lado da rua.
Quase foi atropelada. Na mesma velocidade em que vinha saltou por sobre a mureta do viaduto, voando para a morte.
Rapidamente se formou uma pequena multidão a olhar para baixo, contemplando o corpo estendido no asfalto.
Do outro lado, José Raimundo de Souza estava catatônico, com as mãos em concha segurando um coração que nunca amou.
Quanto é Esse Tudo?
Carlos Gomes
O sol nascendo, eu sentado na areia contemplando o mar. Passara a noite ali pensando na vida. E como ela andava ruim por estes tempos.
Primeiro, a mulher amada foi embora levando tudo o que tínhamos. Até a TV vinte e nove polegadas, que ganhei de presente da minha mãe . Lógico que antes disso acontecer, meu cunhado limpou minha poupança, com um negócio da China: uma fábrica de rapadura diet.
A operadora de títulos em que trabalhava foi fechada pelo Banco Central. Meu carro foi levado ontem à noite e os bandidos me largaram aqui na praia. Agora vejamos; eu estava indo morar de favor na casa da minha mãe, tudo o que me restou estava naquele carro.
Fiquei a noite toda aqui na areia sem chegar a conclusão alguma. Só me resta levantar, pois já estou atrapalhando os atletas madrugadores.
A sensação de solidão que sinto, estando aqui sentado nesta cozinha, tomando este café aguado com pão amanhecido e margarina sem gosto, é terrível. E ainda por cima com minha mãe tagarelando o quanto acha minha ex mulher uma chata, antipática e falsa. Graças a Deus a campainha tocou. Ela sai e na volta diz:
— É telegrama pra você, é de Mato Grosso.
Penso, telegrama de Mato Grosso? Não me lembro de conhecer ninguém lá. E num segundo me lembro: - lógico é do Wiberto.
Minha cabeça dispara como um raio e vem a lembrança do único amigo que tive na vida. Não, o Wiba é muito mais que amigo, é irmão, é o tipo de amigo que só se tem um. Éramos, como se diz na gíria carne e unha. Somos amigos desde a infância.
Há seis anos atrás se mudou para o Mato Grosso, dizendo que ia fazer fortuna. Nestes anos acabamos tendo pouco contato e sempre por carta. Que alegria receber este telegrama!
Minhas mãos tremem, rasgo o envelope, meus olhos percorrem com velocidade o texto. É como se tivesse levado um soco no estômago.
— Merda !!!
— Que foi meu filho?
— O Wiberto morreu ontem à noite.
Sinto o corpo pesar, me jogo na cadeira e as lágrimas brotam. Minha mãe tenta me consolar. É muita dor! O telegrama pedia para ir urgente até lá, pois foi um pedido dele antes de morrer. Depois de convencer minha mãe a me emprestar o dinheiro da passagem de avião, embarco com destino a Mato Grosso.
O calor estava insuportável, o ar seco parecia irrespirável fui direto para o velório. Havia poucas pessoas. Cheguei perto, vi aquele mesmo semblante tranquilo. Chorei, chorei, as lágrimas não paravam de sair, acredito ter ficado ali ao seu lado chorando por horas. Eu já estava lá com minha dor não sei a quanto tempo, quando um sujeito que não sei quem era chegou perto e falou:
— Pô meu ! Ele devia ser muito teu amigo, deixou tudo pra você!
Aquelas palavras me atordoaram. O sujeito insistia:
— Você é um cara de muita sorte, ele deixou tudo, tudo, pra você!
Deus, o que está acontecendo comigo? Os meus olhos continuavam chorando, mas os meus lábios insistiam em um sorriso pelo canto da boca, que não conseguia segurar.
A cabeça só querendo saber: Quanto é esse tudo?