Literatura e Anestesia

 

Gabriel Perissé
Mestre em Literatura Brasileira (USP)
Doutorando em Educação (USP)

 

Ortega y Gasset, considerando a necessidade de transcendermos nossas próprias convicções, concebia o horizonte de uma pessoa aberta para novos enfoques como “um órgão vivo”, como um horizonte que “emigra, dilata-se, ondula elástico”, [1] movimentos semelhantes aos da respiração. Pensar a palavra estética, a palavra arte, a palavra beleza, a palavra literatura, envolvidas num processo de transformação que os dicionários e manuais não acompanham, é repensar nossas próprias convicções, e respirar mais fundo. Oxigenar-se.

T.S.Eliot: “Assim como uma doutrina só precisa ser definida após o aparecimento de alguma heresia, também uma palavra não necessita desse cuidado até que tenha sido mal-empregada” [2] . E, de fato, há momentos em que as palavras se sentem mal-empregadas... ou quem sabe fosse mais adequado dizer: desempregadas... Talvez não se trate nem mesmo de perguntar, socraticamente, o que é estética, o que é beleza, o que é arte, o que é literatura, mas de perguntar como essas palavras podem ser usadas hoje de um modo que sejam realmente produtivas para a compreensão do que nos rodeia. Teríamos, então, de definir uma “política” de novos empregos para velhas palavras, levando em conta, não as heresias, mas simplesmente o aparecimento de inusitadas oportunidades de emprego, que exigem, por sua vez, palavras com novas “habilidades”, palavras que movimentem nossos horizontes vitais. Sem descartar, no entanto, o desempoeiramento, a reapropriação, a revitalização de sentidos verbais desgastados.

Os projetos utópicos que um dia alimentaram a imaginação e a visão de mundo de boa parcela da humanidade parecem anulados. Se existem valores emergentes como os sustentados pelo onipresente discurso ecologicamente correto (e o decorrente consumo e o comportamento ecologicamente corretos), não se percebe a vigência de grandes narrativas que mobilizem o homem contemporâneo em busca de um estado de perfeição, de uma humanidade realmente humana. Vários autores já citaram aquela frase do historiador norte-americano Neil Smith — “The Enlightenment is dead, Marxism is dead, the working class movement is dead and the author does not feel very well either” — que parodia e desdobra o grito nietzschiano.

Grandes utopias tivemos no passado. Hoje, não possuímos mais uma República de Platão que configure uma visão totalizante de vida em sociedade. Não reconhecemos no A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, aquela meta existencial para esta e para a outra vida que, a seu tempo, norteou o homem ocidental. Dante, nA Divina Comédia, revela um universo organizado segundo parâmetros de justiça, castigo e premiação que não são mais os dominantes. A Utopia do renascentista cristão Thomas More (na passagem do século XV para o XVI), lugar nenhum em que a pobreza estaria eliminada, em que os jovens seriam bem orientados, em que a população se reuniria periodicamente para pedir a Deus o “happy progress of all their affairs”, também esse lugar hoje não nos diz muito. As utopias seiscentistas do frade dominicano Tommasso Campanella [3] e de Francis Bacon [4] visualizavam um mundo melhor (também restrito a um “espaço” quase inacessível, porque ilhado), acreditando em nossa inata bondade. Mas tal crença — que Rousseau, o grande pré-romântico do século XVIII, tinha numa humanidade, somente no seu estado primitivo, porém, uma vez que, segundo a sua utopia regressiva, “tous les progrès ultérieurs ont été en apparence autant de pas vers la perfection de l'individu, et en effet vers la décrépitude de l'espèce [5] —, tal crença parece banida do planeta (e literalmente bombardeada) pela capacidade humana (igualmente inata?) de auto-destruir-se.

Depois da Segunda Guerra, Adorno formulará a grande frase do desencanto (“não há poesia depois de Auschwitz!”). Em 1888, contudo, ainda era possível alimentar esperanças de um mundo perfeito, como o que é imaginado no livro Looking Backward, de Edward Bellamy, que idealizava uma nação norte-americana, no ano 2000, baseada na solidariedade, na racionalidade, e por sua vez inserida num mundo organizado, unido e pacífico, em que a ânsia de poder e de dinheiro teria sido abolida, em que não haveria nenhuma ânsia consumista ou de auto-afirmação despótica por parte dos homens ou das nações. Um dos personagens, cuja voz é utilizada pelo autor para desenhar o novo mundo, explica: “Não temos partidos nem políticos, e quanto à demagogia e à corrupção são apenas palavras com significado histórico” [6] . E a produção artística, musical e literária, neste período de intensa liberdade e absoluta redenção da humanidade por si mesma, é descrita como uma explosão de criatividade sem igual.

No final da Primeira Guerra Mundial, a feminista Charlotte Gilman publicou Herland, em que imagina uma sociedade totalmente feminina, mais artística, mais sensata, mais humana, [7] belas imagens que não impediram novas formas de exploração da mulher, bem mais sutis (ou nem tão sutis...). Depois, em 1933, James Hilton oferece também uma concepção generosa de uma vida orientada pela bondade e pela sabedoria em seu Horizonte Perdido, que pelo visto continua perdido em algum vale do Himalaia. E ainda podemos citar Gandhi, ele mesmo uma filosofia, um personagem, uma escola, uma metáfora, um mito e, afinal, um mártir da sociedade sem-violência e de uma utopia espiritual. [8] E até aquele mundo futuro em que as dóceis máquinas fariam tudo por nós e nós, finalmente, poderíamos dedicar-nos a ser, simplesmente (utopia ressuscitada recentemente pelo sociólogo italiano Domenico de Masi), seres humanos — este belo mundo não resiste à constatação de um outro, real, que, não obstante tecnologicamente avançado, continua vítima de suas barbáries.

Os grandes sonhos foram (continuam sendo) perturbados por não menores pesadelos e as utopias correspondentes substituídas por distopias, em que o fracasso da humanidade é considerado conseqüência necessária do autoritarismo, sintoma inequívoco de que a razão enlouqueceu. O terrível 1984 (1949) de George Orwell marcou o nosso imaginário ao longo de toda a segunda metade do século XX, sem falar na figura grotesca do inseto em que Kafka metamorfoseou o homem sem horizontes, vítima indefesa do cotidiano absurdo (A metamorfose foi escrita em 1912 e publicada três anos depois, em plena guerra), e nos dois personagens que esperam confusa e obcecadamente por Godot (God) na peça de Beckett, de 1954.

Dream is over? John Lennon, outra figura mítica da modernidade, assassinado em 1980, em sua música God declara, entre outras profissões de não-fé: I don't believe in Bible, I don't believe in Hitler, I don't believe in Jesus, I don't believe in Kennedy, I don't believe in kings, I don't believe in Elvis, I don't believe in Beatles. No entanto, e apesar de tudo, Imagine continua a ser uma das canções mais ouvidas em todo o mundo, mundo em que ainda vemos fronteiras, guerra, opressão. E o reverendo Martin Luther King (assassinado em 1968, vinte anos depois de Gandhi), em seu discurso “I have a Dream”, de agosto de 1963, enxergava um tempo em que jovens negros andariam de mãos dadas com jovens brancos, como verdadeiros irmãos, cena ainda em construção e sempre ameaçada, embora haja um consenso (ao menos em nível teórico-discursivo) cada vez maior sobre a desumanidade das discriminações e racismos. [9]

Pergunta: O que diz, ou melhor — diante de tudo isso, o que faz o artista contemporâneo e, mais especificamente, o que faz o escritor contemporâneo, o escritor pós-tudo, ou ainda: o que dele é legítimo esperar?

Os manifestos vanguardistas que se sucederam a partir do final do século XIX tinham um caráter combativo, algo muito próximo de um discurso político em que não faltavam expurgos do passado, apelos a uma nova visão das coisas e como que promessas de “dias melhores”. No manifesto decadente de Anatole Baju (1886), a afirmação de que “o homem moderno é um insensível” está contextualizada numa proposta em que a arte supera a prática política e os convencionalismos de todo tipo. O manifesto simbolista escrito por Jean Moréas (também publicado em 1886), declara a poesia simbolista “inimiga do ensino, da declamação, da falsa sensibilidade, da descrição objetiva”, a serviço da Idéia. Jules Romains, em 1905, lança o manifesto unanimista, proclamando os escritores a trabalharem, nos planos lírico e épico, em busca das emoções unânimes do homem contemporâneo. O franco-italiano Marinetti (que parecia adorar escrever manifestos, tendo redigido mais de trinta, sobre literatura, música, escultura, moral etc.) cria o futurismo, que acabou exercendo mais influência graças aos manifestos do que pelas obras que inspirou: “Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono, nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o soco (1909)”. O cubofuturismo de Maiakovski também despede o passado (Puskin, Dostoievski, Tolstoi...) e ordena que os direitos dos poetas sejam respeitados, denominando-os introdutores da palavra autônoma, auto-evoluída, moderna. [10] E ainda é preciso citar o surrealismo, cuja acidentada história enquanto movimento [11] talvez seja resultado de sua proposta mesma, em que um individualismo revolucionário orientado pela liberdade a qualquer custo deve, por contágio, transformar o pensamento, a cultura, e influenciar a vida, chegando, no caso de alguns dos seus participantes, à adesão ao comunismo.

Os manifestos do grupo DADÁ radicalizam o próprio papel do manifesto, redigindo-os sem que aquele que os redija queira alguma coisa. Pelo menos é o que está escrito... Mas, sim, há uma intenção manifesta: chocar, despertar, remexer, e propor “obras fortes, direitas, precisas e para sempre incompreendidas”, uma arte que retire o homem moderno dos eixos seguros do que depois se chamou logocentrismo (alvo dos ataques de Jacques Derrida a partir da década de 60) e das certezas burguesas. Mas este acesso a uma percepção renovada da arte só será possível em virtude de um consciente trabalho destrutivo. Destruir uma indiferença bem-comportada, esteja ela baseada na arqueologia, nos profetas, na memória ou no próprio futuro, todas essas instâncias abolidas pelo grito dadaísta. Este destruir é abrir caminhos, criar possibilidades, horizontes. E a coerência Dadá chega ao ponto de não prolongar sua própria existência, não se institucionalizar, não se legalizar. Dadá matará Dadá em Paris, em 1923 — um “final voluntário”, como disse Tzara, um abandono de tudo, um final lógico. Não à toa Marcel Duchamp encontrou no dadaísmo inspiração para sua concepção de antiartista, de antiobra e de antiarte, que são, afinal, outra forma de ser artista, de produzir obras renovadoras, de tratar a arte como resultado de experimentação contínua, ousada, como provocadora de novos modos de ver e sentir.

Duchamp, a propósito, explicando o processo de escolha dos ready-mades — absoluta aceitação de que se perdeu a aura da obra e do artista —, esclarece que a escolha “nunca era ditada por um deleite estético (délectation esthétique). A escolha era baseada numa reação de indiferença visual com uma ausência total de bom ou mau gosto... uma completa anestesia (anesthésie complète)” [12] . Escolha que implicava uma atitude anti-estética, simulando, criticando, ironizando e cutucando a incapacidade mesma de alguém que, na posição de espectador da arte, estivesse já insensível para o que há (ou deveria haver) de inovador na arte. Escolha que, em suma, queria despertar o espectador insensibilizado, utilizando a “dor” visual provocada pelo deslocamento de um objeto não-artístico do seu lugar “natural” para o lugar tradicional da obra de arte.

A auto-destruição da arte, o silêncio da própria palavra de ordem, a aceitação ou, falando mais precisamente, a ação voltada para uma aberta destituição da arte do seu lugar proeminente, mas destituição calculada, realizada como um gesto estético para que a arte, mesmo “morta”, não morra — esse programa acaba por enfrentar, mais cedo ou mais tarde (e hoje cada vez mais cedo), o processo do costume, que vai da inicial reação negativa da crítica mais conservadora, à aprovação da crítica mais corajosa num segundo momento, chegando ao aplauso mais ou menos perspicaz de cada vez maior número de espectadores e, perigosamente, a uma situação de convivência (e conivência) generalizada e apática. Uma obra controvertida como a do artista argentino Lucio Fontana (1899-1968), por exemplo, fundador do movimento espacialista, que postulava a ruptura com a pintura de cavalete, incorporando à tela pedras e pedaços de vidro e, mais antiesticamente ainda, criando os buchi, telas perfuradas e cortadas, tornou-se com o tempo uma referência histórica, assimilada, divulgada, categorizada, arquivada. Como dizia Chesterton, “new roads: new ruts” — novos caminhos tornam-se novas rotinas. E, com a rotina, a insensibilidade, um estado anestésico que, em termos práticos, redunda numa aceitação passiva, num acolhimento sem reflexão, numa indiferença bem-comportada (de novo!) perante o os estímulos produzidos pelo objeto artístico (por mais vanguardista que seja), estímulos que (é o desejável) façam um apelo à nossa consciência crítica, à nossa consciência ética, que nos exijam, “além da simples receptividade emotiva, um esforço de penetração intelectual” [13] . A arte que não mais interfere e, especificamente, a literatura que não diz mais nada, que não mobiliza o indivíduo e a sociedade, fica reduzida à condição de um jogo, talvez brilhante, talvez até mesmo sofisticado (ou, em outros casos, talvez adequada aos padrões comerciais, gerando lucro e uma ilusória sensação de vida artístico-literária), mas, em última análise, jogo ou produto inconseqüente do ponto de vista estético.

Estética, no sentido grego de aiesthesis, é sensibilidade, diz respeito a um estado susceptível de percepção e de reação ao que se nos apresenta. Reações de espanto, de surpresa, de ternura, de revolta, de admiração são sinais de que a obra sensibilizou, despertou, comoveu. Uma arte que “se preze” (que não se menospreze...) manifesta-se combativamente, demonstra a ânsia do artista de mudar o mundo, de provocar nos outros uma reação que possa levar à criação de situações existenciais inusitadas. Uma literatura combativa, neste sentido, quererá provocar no leitor uma reação a palavras com as quais porventura já se acostumara. Um poema pode recuperar o “ferrão” de uma palavra e desencadear um novo comportamento verbal, por sua vez responsável por novas condutas no dia-a-dia mais comezinho.

Tal esperança no poder revelador, transformador e mobilizador da arte — sempre tentando aqui destacar a literatura —, tal esperança no poder da palavra literária geralmente corresponde a uma esperança vital no poder auto-renovador da própria humanidade. Escrever como forma de resistir, de renascer, de resgatar. Eduardo Galeano, por exemplo: “A gente supõe que a literatura transmite conhecimento e atua sobre a linguagem e a conduta de quem a recebe; que ajuda a nos conhecermos para nos salvarmos juntos... A gente escreve, em realidade, para a pessoa com cuja sorte ou má sorte nós nos sentimos identificados, os maldormidos, os rebeldes e os humilhados desta terra, e a maioria deles não sabe ler.” [14] Marcuse, em seu livro A dimensão estética, recusa-se a aceitar o fim. Espera da autêntica arte a construção de outra possível realidade, “apesar de e contra Auschwitz” [15] , ou seja: é possível, sim, fazer poesia depois da catástrofe, da estrofe final de um outro “poema”, composto pelo otimismo das Luzes, que quase se apagaram... Numa outra vertente da mesma esperança, o papa João Paulo II (também poeta e ator de teatro) escreveu uma carta a “todos aqueles que apaixonadamente procuram novas ‘epifanias’ da beleza para oferecê-las ao mundo como criação artística” [16] . Trata-se de um documento em que a filosofia estética de fundo vê o artista como aquela pessoa cujas energias da mente e do coração estão acordadas e acordam as energias cognitivas e afetivas da humanidade. Um artista desse molde, para citar um escritor católico que acredita no verbo humano inspirado pela força divina (ainda que divergente em muitos outros pontos do pensamento de João Paulo II), é o dominicano Frei Betto, que em sua crônica Lista de Natal, repudia o “Papai Noel das promoções comerciais”, recusa-se a ser “o coveiro de utopias libertárias”, e escreve em tom lírico: “alimentado como um pássaro, sairei na noite feliz guiado pela estrela dos magos; dançarei aleluias entre as galáxias da Via Láctea e, pela manhã, em cada raio de sol injetarei poesia para que todos acordem inebriados como se fossem borboletas livres do casulo.” [17]

Ferreira Gullar, nas últimas páginas do seu livro Argumentação contra a morte da arte, apresenta algumas reflexões sobre o fim dos manifestos vanguardistas, sobre o silêncio das vozes que conclamavam a fazer da arte um contradiscurso, um gesto de libertação, uma participação crítica e muitas vezes incômoda na vivência do tempo presente e na moldagem do futuro: “Que terá acontecido? Teremos chegado definitivamente ao fim dos movimentos artísticos e, de agora em diante, caberá a cada artista buscar solitariamente o seu caminho? Não há mais caminho comum? Mas, nas condições da vida contemporânea, isso não significa a rendição ao mercado de arte, a submissão do artista à condição de solitário produtor de mercadorias?” [18] Embora concentrando sua atenção nas artes plásticas, suas palavras podem estender-se aos demais domínios estéticos: o artista, o escritor... “depois de tanto buscar, rasgar, decompor, recompor, juntar, misturar, montar... cansou-se” [19] . Esforço que não foi inútil, pois ampliou-se a nossa capacidade sensorial. Uma obsessão pelo novo que não foi estéril, pois tensionou a nossa consciência estética, questionou a nossa percepção do real. Mas agora vivemos um período de remanso, do qual o próprio Gullar é um exemplo, com o seu livro de poemas Muitas vozes publicado em 1999 pela José Olympio. [20]

O esgotamento estético parece corresponder a uma descontração existencial, a um afrouxamento ideológico, a um relaxamento emocional e intelectual (assumindo aqui as denotações positivas e negativas dessas palavras), a uma désaffection, termo que Gilles Lipovetsky utiliza várias vezes em seu L’ère du vide, [21] tudo isso redundando na perda do sentimento de estranheza, numa ausência de perplexidade, no desaparecimento do ímpeto revolucionário estético, pelo menos como o compreendíamos duas décadas atrás. Cessam as rupturas, inviabiliza-se o escândalo. Não há utopias, nem sonhos, nem manifestos. À desaceleração humanista, digamos assim, corresponde, porém, uma aceleração tecnológica e científica (destituída, no entanto, de qualquer celebração profana). Surge uma arte que se articula dentro dos parâmetros e recursos da biotecnologia, da eletrônica, da robótica. Começam a chegar ao conhecimento do público [22] projetos recentes como, por exemplo, o que resultou na criação de um coelho que, sob o efeito de uma luz determinada, adquire um tom verde fluorescente. Quem o “gestou” foi um brasileiro radicado nos EUA, Eduardo Kac, e a obra de arte, o coelho, “nasceu” em abril de 2000. Houve também uma experiência estético-eletrônica no México, denominada Alzado Vectorial, que, segundo os próprios organizadores, “fué una obra de arte interactivo diseñada para transformar el Zócalo de la Ciudad de México. Utilizando un interfaz de realidad virtual este sitio web le permitía a usted diseñar una escultura de luz con 18 cañones antiaéreos localizados alrededor de la plaza. A cada participante se le hizo una página web para archivar su diseño con fotos de tres cámaras digitales. La pieza se desconectó el 7 de enero del 2000, después de recibir cientos de miles de visitas de 89 países y de todos los estados de la república. [23] Quem visita o site pode acessar os desenhos produzidos, ou mesmo tentar encontrar um desenho próximo ao que ele mesmo faria se tivesse participado da obra de arte que já “foi”, mas permanece “eternamente” na memória digital. Contudo, estas e outras performances poderão despertar o espectador da sua letargia por não mais de cinco minutos, depois dos quais ele dirá, como quem acabou de mascar um chiclete ou assistir a mais um emocionante programa de Tv: “é, legal... interessante...”?

Até as performances, que num primeiro momento e com ousadia estética continuaram a dessacralizar a arte e a despertar o público, tirando-o da posição cômoda de observador passivo, estimulando o espontâneo, o natural, com a idéia de “resgatar a característica ritual da arte, tirando-a de ‘espaços mortos’, como museus, galerias, teatros, e colocando-a numa posição ‘viva’, modificadora” [24] — até as performances tornaram-se, de fato, algo de domínio público, atingindo a realização de suas propostas anti-elitistas. Mas encontrando também, numa crescente banalização, o seu enquadramento como um “produto” a mais no horizonte artístico. E isso a tal ponto que uma performance do artista Michel Groisman transforma-se em notícia, não por abalar os conceitos da arte, mas por incluir-se como um entretenimento de verão em plena praia de Ipanema [25] — nada tão espetacular que mereça palavras mais bombásticas do que um elogioso “legal”, ou um quase reflexivo “interessante”, ou um quase crítico “meio novo”.

A televisão, que não é simplesmente ópio do povo, mas seu café da manhã, seu almoço e seu jantar, devora aquele que a devora, invertendo, no caso brasileiro, o ideário antropofágico de Oswald de Andrade. Como o “lugar” de experiências estéticas da grande maioria, em que ficção e fato, notícia e imaginação, arte e realidade se conjugam e se equalizam, a televisão, no entanto, não mobiliza o telespectador, não faz dele um elaborador criativo. Ao contrário, ele se torna um “antropófago parasitário e paralisado, um antropófago que nada cria. Pois as imagens não lhe pertencem, nem lhe pertencerão, nem mesmo quando lhe atravessam o corpo. É ele quem pertence àquilo que se sucede como cachoeira multicolorida e faiscante diante dos seus olhos.” [26] A televisão não galvaniza: neutraliza. Ou por outra: neutraliza por excesso de um certo tipo de estímulo, oferecendo mortes ao vivo, pancadaria, todo um clima de “baixaria” de que fazem parte apresentadores deseducados, erotismo despersonalizante, religiosidade puramente emocional, informações desconexas, rápidas, descartáveis, sobre ciência, esporte, política etc. etc. — um espetáculo que, parecendo convidar para o show da vida, convida à acomodação.

Se a dissolução dos discursos entusiasmantes, exigentes, combativos — que conduziam, ou pretendiam conduzir a um estado de alerta contínuo, a um estado de consciência crítica, voltada para os problemas da saga humana, ou da psiquê humana —, se essa dissolução abre caminho para as experimentações fugazes, velozes, menos preocupadas com verdades e explicações do que com a eficácia imediata, com o resultado externo, experimentações hoje devidamente arquivadas (e potencialmente esquecidas) na memória digital, acessíveis a quem quiser vivenciá-las de modo particular, com independência das limitações físico-temporais — a essa dissolução corresponde, em outro sentido, uma postura de ceticismo que, no seu extremo, foi muito bem encarnada, e formulada, por Carlos Drummond de Andrade, alguns meses antes de falecer, na que provavelmente foi a sua última grande entrevista: “Eu sou uma pessoa inteiramente pessimista, cética. Não acredito em nenhum valor de ordem política, filosófica, social ou religiosa. Acho a vida uma experiência que tem de ser vivida, mas que se esgota e termina, acabou, não tem nada” [27] . As crenças liqüefeitas (observe-se que Drummond sequer cita a ciência ou a técnica), a desubstancialização das coisas e das experiências, a decepção com o que houve na vida de ilusión — no sentido quase intraduzível dessa palavra espanhola, em que se conjugam doses de esperança, de paixão, de inquietude, de entusiasmo —, a decepção desqualifica os valores, os ideais, as adesões, os engajamentos. Chega-se a um estágio de indiferença, a um estado de auto-anestesiamento para evitar sofrimentos causados por novas decepções após (afinal, inúteis) investimentos intelectuais, ideológicos, estéticos, afetivos, verbais. A propósito, notava Paulo Francis, com relação a Drummond, que o poeta não utilizou o seu imenso prestígio, consolidado desde a década de 50, para interferir no debate cultural e político brasileiro, limitando-se a cumprir seu (genial) caminho poético, de modo individual, solitário, esquivando-se de compromissos como o que assumiu, fugazmente, com o Partido Comunista na década de 40, e sem sequer fazer concessão à tradicional vida literária da Academia Brasileira de Letras, a que Bandeira e outros poetas e escritores seus amigos não se furtaram.

A Máquina do mundo é poema-chave da obra drummondiana. [28] Um poema possuidor daquela difícil beleza que caracteriza as obras definitivas, cujo tom metafísico (embora anti-metafísico) assegura-lhe um lugar no cânon poético clássico da língua portuguesa. Nele, há um “ser desenganado”, que já desistira de romper a máquina do mundo, “etérea e elemental”, como a descreveu Camões no canto X dos Lusíadas. A súbita epifania não mais aguardada (ou nunca desejada) — pois se esquivava e chorava desconsolado quem tentara abrir à força a máquina do mundo — acaba causando o retraimento final do “eu” desiludido. O ex-investigador está agora com “as pupilas gastas na inspeção / contínua e dolorosa do deserto”, e sua mente se encontra “exausta de mentar” a realidade. Entorpecido, aquele que, de tanto “os ter usado”, já perdera “sentidos e intuições”, e mais: “nem desejaria recobrá-los” — esse homem não mais moderno, não mais confiante no poder da razão, não mais confiante no seu poder para apreender a “total explicação da vida”, o “nexo primeiro e singular”, não mais disposto a entregar-se a uma pesquisa ardente”, escreve as estrofes finais:

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima - esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

José Guilherme Merquior, ao analisar este poema [29] , enaltece o cansaço dos olhos e a recusa ao convite feito pela máquina do mundo como sinais de aceitação plena da condição humana, do homem moderno que não mais espera, como Dante, a visão mística, a visão beatífica, a visão do Todo. Merquior propõe que se descubra, “por trás do cerrado pessimismo de Drummond, um não menos compacto humanismo” [30] , e interpreta as “mãos pensas”, não como as que fracassaram, mas como as que mantêm sua dignidade enquanto símbolo do conhecimento especificamente humano, profano, empírico, tátil. Penso, no entanto, que essas mãos pensas um dia realmente foram tensas, tatearam o caminho, e se Drummond não esperava revelações que viessem do alto, por que deveria depois sentir-se tão decepcionado, “avaliando o que perdera”? Rejeitar o dom tardio só intensifica as trevas não dissipadas pelo conhecimento humano, profano, empírico, tátil. A conclusão niilista, ou melhor, a conclusão neutral de que “tudo e nada nada são”, como escreve Drummond em outro poema, faz do poeta o arauto do abrandamento daquele suposto entusiasmo que nos fazia andar mais rapidamente pelo caminho, ainda que pedregoso. Agora o poeta segue, “vagaroso”. Sequer se detém para contemplar o vazio, o absurdo, o intrigante de uma pedra no meio do caminho, acontecimento inesquecível na vida de suas “retinas tão fatigadas”, já fatigadas no início do seu trajeto poético. Naquele momento, porém, uma pedra era suficiente para gerar a perplexidade, e agora toda uma máquina do mundo a entregar-se parece pouco apetecível à sua “incuriosidade”. A “face neutra” do poeta é, etimologicamente falando, ne uterque, isto é, nem uma coisa nem outra, indiferença.

A face neutra é o retrato que substitui a face perplexa e que antecipa o rosto pós-moderno levemente sorridente, levemente interessado, que agora está diante de um objeto artístico no museu, agora diante de uma vitrine no shopping, agora diante de um homem caído na calçada, agora diante de um vulcão que explode na tela do cinema, agora diante da hipervelocidade das informações, imagens, sensações que se sucedem e se esboroam na própria sucessão, sem deixar vestígios... Face neutra, para a qual, por exemplo, nem a direita nem a esquerda, nem o certo nem o errado, nem a verdade nem o erro são temas que vale a pena discutir profundamente por mais de dez minutos. Face neutra, visão neutral que dispensa a rebeldia, as reações enérgicas, as posições “rígidas”, aceitando o escorregadio, o indeterminado, o flexível, o híbrido, o múltiplo, o descartável como condição contemporânea, como componente “natural” da realidade. Já ingressamos no pós-existencialismo, e por isso não sentiremos mais a náusea sartreana que, mal ou bem, era uma reação à existência em sua “obscenidade”, nem experimentaremos, na vertente cristã (lembrando que para muitos ingressamos no pós-cristianismo), a indignação moral de ver les hommes contre l’humain, como num título de Gabriel Marcel. No máximo, passaremos por algumas (ou muitas) crises que, conforme viu Umberto Eco, terminam por ser bem-vindas, pois vendem bem como componente “dramático” da sociedade do espetáculo: “Nas últimas décadas assistimos à venda (nas bancas, nas livrarias, a domicílio ou pelo correio) da crise da religião, do marxismo, da representação, do signo, da filosofia, da ética, do freudismo, da presença e do sujeito (deixo de lado outras crises das quais não entendo profissionalmente, apesar de sofrê-las, como as da moeda, dos aluguéis, da família, das instituições e do petróleo).” [31] São tantas crises, e ao mesmo tão descartáveis, que nem vale a pena sofrê-las com tanto ardor e ênfase... Mesmo porque também os “resgates” do que estava em crise são matéria que vende bem, ou pelo menos rendem temas para pesquisas acadêmicas, de modo que nas revistas e jornais, nos telejornais e nos (raros) programas de Tv com alguma consistência intelectual, e nos trabalhos de mestrado e doutorado volta e meia são resgatados o sentimento religioso, a ética, o lazer, as raízes da cultura popular, um poeta do século XVII ou um prosador do início do XX, a cidadania, a cultura da amamentação, a história de uma cidade, a memória nacional, ou até, para usar uma linguagem inutilmente sofisticada, “as simbolizações que correspondem às visões do imaginário das classes populares”, como se lê no resumo de uma dissertação de mestrado sobre o cinema brasileiro na década de 50. Resgates mais ou menos inócuos, com os quais, porém, forja-se uma cultura superficialmente política, superficialmente religiosa, superficialmente letrada, superficialmente literária, contexto propício, porque light, para o surgimento de um fenômeno editorial como o de Paulo Coelho, cujo sucesso reflete o baixo nível de exigência estética de muitos leitores no Brasil e (como demonstra o número de exemplares vendidos das traduções em inglês, francês, espanhol, japonês etc.) em todo o mundo.

Haroldo de Campos, erudito e poeta conceituado, não se encontra, porém, à margem do esgotamento dos processos criativos. Se está à margem, sim, da comercialização banalizante, sua arrojada produção poética, ensaística e de tradução, passados os anos de maior evidência por causa do concretismo, ocupa agora um lugar a que tem acesso apenas uma “imensa minoria”, para usar um paradoxo de Octavio Paz, poeta e pensador tão admirado por Haroldo. O seu último livro de poesia, A Máquina do Mundo Repensada [32] , por exemplo, publicado em agosto de 2000, recebeu uma crítica favorável de Alcir Pécora, publicada na Folha de São Paulo no mesmo mês, e uma bem menos de Paulo Franchetti, no O Estado de São Paulo, no mês de setembro. E, pelo que se nota, não despertará debates ou polêmicas. Obra do ponto de vista gráfico realizada com muito bom gosto e esmero, quase que destinada a bibliófilos (a tiragem inicial foi de 1.500 exemplares, extremamente modesta em comparação com às de 100.000 exemplares das atuais primeiras edições dos livros de Paulo Coelho), do ponto de vista literário pressupõe um leitor refinado, disposto a repensar as referências de Dante, Camões e Drummond, [33] e as contribuições da ciência ou, mais precisamente, da cosmologia e da física modernas.

O diálogo entre Haroldo e Drummond, que é o que nos interessa aqui, encontra em duas palavras sua possível pertinência: acídia e nexo. Quando Haroldo escreve:

[...] e eu nesse quase – (que a tormenta
da dúvida angustia) – terço acidioso
milênio a me esfingir: que me alimenta

a mesma — de saturno o acrimonioso
descendendo — estrela ázimo-esverdeada
a acídia: lume baço em céu nuvioso (estrofes 6 e 7)

põe em evidência um estado de ânimo, ou de desânimo... uma vez que acídia, no seu sentido original, não significa simplesmente preguiça, mas justamente ausência de repouso, uma fuga (por vezes desesperada) daquele comprometimento radical com Deus, ou com um ideal político, ou social, ou intelectual, ou estético, fuga que se percebe como tristeza de fundo, como lassidão, como abatimento existencial, perfeitamente compatíveis com (e mascarados por) várias formas de ativismo. Parece-me que as mãos pensas algo têm a ver com esta acídia. Por maior que seja ou tenha sido o grau de atividade artística ou científica, o homem marcado pela akedía (em grego significa literalmente indiferença) não se sente chamado, não se sente vocacionado a trilhar nenhum caminho de autotranscendência. Sua própria face indiferente (a face neutra) o mantém a salvo de qualquer possível chamado ou vocação. Nada mais faz diferença... porque está tudo desessencializado (destituído do esse, do ser), rebaixado ao horizontalismo banalizante, em que toda e qualquer coisa se torna, no final das contas, mercadoria descartável. Neste contexto, como pensar o nexo, aquele nexo primeiro que a máquina do mundo quis ofertar ao caminhante itabirano? No poema de Haroldo trata-se do Big Bang, a grande explosão ocorrida há 12 ou 15 bilhões de anos que estaria na origem do universo auto-criado, universo em contínua expansão sem necessidade de um Deus Criador e Providente. (E Haroldo alude também ao Big Crunch, o grande colapso que redundaria num “encolhimento” para que, bem mais tarde, outro Big Bang acontecesse, e assim indefinidamente.) A propósito, a existência desse Deus inviabilizaria a agnose, pois haveria, como intuiu Guimarães Rosa, um “quem” das coisas, uma alteridade absoluta, uma presença real identificada com a verdade e a beleza, e haveria, em suma, a possibilidade do encontro, por via filosófica, ou mística, ou artística. Ou, em outras palavras, se existe uma presença viva, livre, efetiva e significativa no interior das formas; se existe uma palavra no interior da realidade, sustentando-a, esse logos foi o que Dante procurou e encontrou na visão beatífica; foi o que Drummond procurara, não encontrou e depois, encontrando, rejeitou; e é o que Haroldo, repensando-o, faz desencadear nas três últimas estrofes (150-152), mais a coda, uma série de perguntas e, no verso derradeiro, um loop verbal, coroado, digamos assim, pela morte. Em latim, nex significa morte, mas morte violenta, em oposição à mors, entendida como morte natural:

[...]

sigo o caminho? busco-me na busca?

finjo uma hipótese entre o não e o sim?
remiro-me no espelho do perplexo?
recolho-me por dentro? vou de mim

para fora de mim tacteando o nexo?
observo o paradoxo do outrossim
e do outronão discuto o anjo e o sexo?

O nexo o nexo o nexo o nexo o nex

A morte brusca, provocada, a interrupção brusca do poema, truncando a palavra que remetia a um girar ad infinitum, morte transformando a esperança de um nexo explicativo em constatação da ruína, essa morte é interrupção da poesia que, uma vez mais, ousou ultrapassar a imanência e agora, num tempo outro, num tempo pós-tudo, desemboca no nada. E o que dizer do leitor que acabou de fechar o livro? Terá ficado insensível aos maneirismos, aos malabarismos sintáticos, às rimas requintadas, e, depois de tudo, à afetada ou sincera demissão poética? A Divina Comédia conclui com a contemplação do amor depois da morte. O poema de Haroldo conclui com a intervenção da morte depois da contemplação não-religiosa do universo. Dante se entrega ao silêncio do êxtase. Haroldo, ao silêncio do vertiginoso nada. Um perde os sentidos, mergulhando no Sentido. O outro perde os sentidos, mergulhando no agnosticismo. Um incorpora o indizível como vitória da Palavra sobre o poeta. O outro admite a derrota da palavra do poeta como decorrência do não-diálogo com o Verbo que desabitou o Universo.

Arnaldo Antunes, herdeiro das experiências poéticas drummondiana e concretista, mas ao mesmo tempo livre de qualquer filiação, [34] pode tornar-se, ao final deste trabalho, um começo de resposta para as perguntas: como deve comportar-se o escritor hoje, num momento em que a sociedade de consumo consome a própria produção literária, entregando-a como produto a mais neste imenso e múltiplo (ainda que desvitaminado) cardápio, imensidão e variedade cansativas que levam à letargia em quem produz e em quem consome? Como encarar esteticamente, filosoficamente, eticamente, um cenário em que, como profetizou Oscar Wilde, as pessoas saberiam o preço de tudo mas não conheceriam o valor de nada? Como trabalhar a questão “o que é arte?”, se é comum ouvir a resposta: “qualquer coisa”, resposta que, “logicamente”, leva à dedução de que “tudo” pode ser arte... dedução que, também “logicamente”, nos ajuda a concluir que “nada” é arte? Onde encontrar uma literatura, no caso, que não seja apenas gozo passageiro (quando muito), mas um tiro, uma verdadeira força de rompimento de modos de pensar... ou de não-pensar; de modos de sentir... ou de não-sentir?

Socorro é um poema-música de Arnaldo Antunes, em parceria com Alice Ruiz, do cd Um som:

Socorro, não estou sentindo nada
Nem medo, nem calor, nem fogo
Não vai dar mais pra chorar
Nem pra rir

Socorro, alguma alma, mesmo que penada
Me empreste suas penas
Já não sinto amor nem dor
Já não sinto nada

Socorro, alguém me dê um coração
Que esse já não bate nem apanha
Por favor, uma emoção pequena, qualquer coisa
Qualquer coisa que se sinta
Tem tantos sentimentos, deve ter algum que sirva

Socorro, alguma rua que me dê sentido
Em qualquer cruzamento, acostamento, encruzilhada
Socorro, eu já não sinto nada

 

E este poema, irônico mas suave, suave mas direto, faz pensar. É um pedido de socorro. Um pedido de socorro de alguém que já não sente. Mergulhado, como um náufrago, num mercado exuberante de sentimentos, brinca: “deve ter algum que sirva”. Sua incapacidade para o riso, para o choro, para o medo, para o amor e para a dor são o resultado do vazio. Sua incapacidade, nossa incapacidade. Depois de termos aberto as portas para todas as sensações, nos sentimos insensíveis. O excesso de estímulos desestimulou nossa sensibilidade. Quanto mais entregues à torrente contínua de emoções, imagens, menos capazes somos de senti-las. É preciso “resgatar”... Até a dor é boa, sob esta ótica. Quem não sente dor já está morto. O excesso de demandas desmanchou nossos desejos. Na ânsia de sentirmo-nos felizes... experimentamos e compramos tudo o que está pendurado nos cabides da vida, até mesmo um pouco de poesia. E tudo o que está nos cabides cabe no buraco sem fundo da nossa sede de infinito... O excesso de música nos impede de ouvir a melodia. O excesso de cores nos impede de perceber os matizes. O excesso de informações nos impede de saber o que está acontecendo. Até o excesso de arte (diluída e disseminada na publicidade, por exemplo) desarticula nossa capacidade de usufruir da arte.

A anestesia, no sentido de perda da sensibilidade estética, pode ser “curada”? A dor da vida, companheira indissociável das alegrias e muitas vezes destas decorrente — pois só sente tristeza quem deseja a felicidade ou já experimentou alguma alegria —, é ingrediente necessário da arte, da literatura. Talvez o atual momento — em que é cada vez maior o número de pessoas que, apesar dos pesares, continuam ingressando na vida cultural —, talvez este seja o momento de reencontrar a arte, a literatura, não como simples entretenimento ou até como jogo sofisticado, “inteligente”, “sutil”, de imagens, sons, palavras etc. Reencontrar uma criação e recepção estéticas que preencham o vazio da reflexão, da compreensão e da auto-compreensão, vazio causado por inúmeras vicissitudes de um tempo “patético e aidético [...], narciso & esquizo”, como num poema de Affonso Romano de Sant’Anna [35] — de um tempo que presenciou terríveis tensões, agravadas pela consciência dessas próprias tensões. Agora, driblar esta consciência já cansada de analisar problemas insolúveis (dado que as utopias mais ambiciosas parecem ter fracassado), apaziguar nossa sede e fome de sentido com distrações artísticas ou pseudo-artísticas mais ou menos interessantes pode redundar, como já ocorre, na adesão a fundamentalismos religiosos e políticos, ou a ideologias kitsch, ou a comportamentos de evasão vinculados às drogas, às bebidas alcoólicas ou a novos “narcóticos” como os ofertados pela internet e a televisão. Na ausência do necessário, ficaremos satisfeitos com o supérfluo em doses cavalares. Mais ainda: anestesiados por esta agradável sensação de que nada é tão decisivo ou permanente, poderemos um dia ser surpreendidos pela interrupção dos efeitos letárgicos ou, pior, pelo estado de coma — overdose.

 


[1] A desumanização da arte, 2a ed., São Paulo, Cortez, 1999, pág. 46.

[2] T.S.Eliot. Notas para uma definição de cultura, São Paulo, Perspectiva, 1988, pág. 23.

[3] Em La Città del Sole (escrito em 1623) o autor imagina uma república perfeita, governada, tanto do ponto de vista espiritual como temporal, por “un Principe Sacerdote [...], che s'appella Sole, e in lingua nostra si dice Metafisico”, assessorado por “tre Principi collaterali: Pon, Sin, Mor, che vuol dir: Potestà, Sapienza e Amore”.

[4] Em The New Atlantis, Bacon imagina uma happy land, um lugar feliz e florescente que poderia piorar, sim, se não se protegesse dos estrangeiros, mas dificilmente se tornaria melhor do que já era.

[5] Esse trecho encontra-se no Discours sur l'origine et les fondements de l'inegalité parmi les hommes.

[6] Edward Bellamy. Daqui a cem anos - revendo o futuro, Rio de Janeiro, Record, s/d., pág. 53.

[7] Here was a religion which gave to the searching mind a rational basis in life, the concept of an immense Loving Power working steadily out through them, toward good. It gave to the "soul" that sense of contact with the inmost force, of perception of theutter most purpose, which we always crave. It gave to the "heart" the blessed  feeling of being loved, loved and UNDERSTOOD. It gave clear, simple, rational directions as to how we should live — and why. And for ritual it gave first those triumphant group demonstrations, when with a union of all the arts, the revivifying combination of great multitudes moved rhythmically with march and dance, song and music, among their own noblest products and the open beauty of their groves and hills. Second, it gave these numerous little centers of wisdom where the least wise could go to the most wise and be helped.” (ftp://uiarchive.cso.uiuc.edu/pub/etext/gutenberg/ etext92/hrlnd10.txt)

[8] “Desenvolver o sentido espiritual do ser é formar o caráter e permitir a cada um trabalhar para o conhecimento de Deus e a realização de si mesmo. E eu considerava isso um dos elementos essenciais à formação dos jovens, e que toda a formação era vã, talvez mesmo nociva, se não caminhasse de mãos dadas com a cultura do espírito.” (em: Mohandas Karamchand Gandhi. Minha vida e minhas experiências com a verdade, Rio de Janeiro, Edições O Cruzeiro, 1971, pág. 330.)

[9] Há um provérbio árabe que diz: “O gato não caça ratos por amor a Allah”. Hoje, por exemplo, no mundo corporativo, nota-se um início de reviravolta no modo de pensar a diversidade étnica, etária, social etc., mas que não se deve a nenhum impulso ético-filosófico e sim ao puro pragmatismo: “‘Uma equipe formada só por homens, jovens, brancos, freqüentadores das mesmas universidades, nas mesmas cidades, pode fazer um bom produto’, diz Nelson Savioli, diretor de recursos humanos da Gessy Lever. ‘Mas uma equipe múltipla fará um produto excelente e, provavelmente, com menor custo. E fará isso porque carrega muito mais informação’.” (Revista Exame, edição 722, n° 18 - 6/setembro/2000, pág. 156.)

[10] As informações e citações dos manifestos foram retiradas do livro de Gilberto Mendonça Teles: Vanguarda européia e modernismo brasileiro, 16a ed., Petrópolis, Vozes, 2000.

[11] Maurice Nadeau a relata em: História do surrealismo, São Paulo, Perspectiva, 1985.

[12] Texto de Duchamp, publicado em Duchamp du Signe, Paris, Flammarion, 1975, pág. 191.

[13] Benedito Nunes. Introdução à filosofia da arte, 3a ed., São Paulo, Ática, 1991, 125.

[14] Em: Por que escrevo? (org. José Domingos de Brito), São Paulo, Escrituras, vol. 1, 1999, pág. 89.

[15] A dimensão estética, Lisboa, Edições 70, 1986, pág. 63.

[16] Carta do Papa João Paulo II aos artistas, São Paulo, Paulinas, 1999, pág. 5.

[17] Em Correio da Cidadania, ed. 224, semana de 16 a 23/12/2000, jornal dirigido por Plínio Arruda Sampaio. O texto integral pode ser encontrado em: http://www.correiocidadania.com.br/ed224/geral.htm

[18] Argumentação contra a morte da arte, 4a ed., Rio de Janeiro, Revan, pág. 126.

[19] Idem, pág. 134.

[20] Este livro veio depois de doze anos de silêncio do poeta. E os admiradores do antigo Gullar hão de estranhar no novo Gullar (com 50 de anos de janela poética) a perda daquela impureza agressiva e daquele ódio amoroso que animavam seus antigos versos. Não temos mais aquele seu experimentalismo ousado e aquele seu ardor ideológico. Não temos mais aquela sua poesia exacerbada, dura, e de uma ternura incontrolável. Não temos mais aquela intolerância a nos cutucar. Aquela sua inquietação. Não temos mais aquele nível de radicalidade formal que expressava uma indignação moral. A maior parte do livro recai em versos de fácil realização. Muitas de suas páginas parecem nascer de uma seleção sem dor e sem angústia, duas marcas de toda criação à flor da pele. (Resumo de uma resenha que escrevi por ocasião do lançamento deste livro, e que pode ser lida integralmente no seguinte endereço eletrônico: http://www.frontpress.com.br/eescritores/resenha0014.html)

[21] Paris, Gallimard, 1983.

[22] Ver Caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, 14.01.01: Cultura em mutação – arte emergente

[24] Renato Cohen. Performance como linguagem, São Paulo, Perspectiva, 1988, pág. 38.

[25] A matéria Põe o seu dedo no meu nariz? (Revista da Folha, ano  9, nº 450, 24.12.00) descreve o evento, sem que o uso de palavras como “espanto” ou “estranha” possa realmente convencer de que algo espantoso ou estranho está acontecendo: “Quem nas tardes de sábado e domingo passar pelo Posto 9, em Ipanema, vai ter motivo de espanto. Sobre uma lona azul de 100 metros quadrados, estendida na areia, grupos de banhistas, sentados em círculo, encenam estranha performance: ‘põe seu dedo no meu nariz’ ou ‘me empresta seu cotovelo’ são frases nada absurdas naquele quadrado de lona. Eles estão apenas se divertindo com a nova moda do verão, o jogo do polvo, criado pelo performático Michel Groisman.” E o mais curioso é que o performático, sim, parece se espantar com a “estranha” aceitação do público: “‘Para minha surpresa, as pessoas recebem muito bem’ [...], assegura Michel Groisman.”

[26] Eugênio Bucci, em Antropofagia patriarcal, publicado em livro organizado por este mesmo autor: A tv aos 50 – criticando a televisão brasileira no seu cinqüentenário, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, pág. 129.

[27] Em: Claros enigmas, entrevista a Luiz Fernando Emediato para o Caderno 2 de O Estado de S. Paulo, 19.10.86.

[28] Em: Nova reunião. 2ªed., Rio de Janeiro, José Olympio, v. 1, 1985, págs. 300-2.

[29] O ensaio se intitula “A Máquina do Mundo” de Drummond e encontra-se em: Razão do poema, 2a ed., Rio de Janeiro, Topbooks, 1996, págs. 100-113.

[30] Idem, pág. 113.

[31] Em: Viagem na irrealidade cotidiana, 5a ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, pág. 149.

[32] Publicado pela Ateliê Editorial.

[33] O poema tem 457 versos, de corte clássico, com o emprego da terza rima, estrutura presente na Divina Comédia e também em alguns poemas de Gregório de Matos (para citar outra referência, e preferência, de Haroldo), mas versos construídos com extrema liberdade e até algumas violências métricas e em nível prosódico, radicalizando a própria utilização dos tercetos do A máquina do mundo de Drummond.

[34] Heloísa Buarque de Hollanda, numa entrevista a Ítalo Moriconi, destaca o que se pode definir como traços da pós-modernidade neste poeta: “Arnaldo Antunes ironiza aquela brincadeira, ele tem uma coisa concreta, talvez seja o que tem mais, mas ele tem uma liberdade com aquilo, ele usa como um acervo. É um acervo que ele tem no bolso. E muitas vezes ele usa aquele acervo mais para titã do que para concreto. É um traço novo na cena poética brasileira essa direção híbrida, em que você lança mão do acervo sem compromissos históricos ou ideológicos. Antigamente você tinha que se filiar a um grupo.” 

[35] O poema chama-se Epitáfio para o século XX, e pode ser lido em Epitáfio para o século XX e outros poemas, Rio de Janeiro, Ediouro, 1977, págs. 69-72.