O TEATRO E A EDUCAÇÃO MEDIEVAL
- O COURTOIS D’ARRAS
(trad. e introdução L.J. Lauand)
O teatro e a cultura medieval
O teatro medieval - como a literatura e outras produções artísticas da época - comporta, tipicamente, um outro objetivo: o de instruir. Indissociável da Idade Média é, também, o elemento religioso: o teatro medieval surge - como que naturalmente - da liturgia, principalmente da Liturgia da Páscoa.
Assim, em algumas abadias beneditinas, a liturgia passa também a representar episódios da vida de Cristo, sobretudo os da ressurreição (as antífonas são já uma plataforma de lançamento para o teatro). Um texto inglês do séc. IX [1] descreve o acompanhamento da leitura litúrgica do Evangelho:
ORDO
(Enquanto se faz a terceira leitura, quatro irmãos mudam de veste. O primeiro, com trajes brancos, entra com ar de quem está preocupado com uma tarefa, penetra no sepulcro e senta-se em silêncio, segurando uma palma na mão. Depois, enquanto se recita o terceiro responsório, entram os outros três irmãos, revestidos com capas, trazendo nas mãos turíbulos com incenso e, lentamente, como quem procura algo, dirigem-se ao sepulcro. Com esta cena, representa-se o anjo sentado sobre o sepulcro e as mulheres que chegam com aromas para ungir o corpo de Jesus. Mal o irmão sentado vê aproximarem-se os outros três - com ar titubeante, de quem está procurando alguma coisa -, começa a cantar suavemente, a meia-voz:)
- Que buscais no sepulcro, ó cristãos?
(Ao que os três respondem, cantando em uníssono:)
- A Jesus Nazareno crucificado, ó habitante do Céu.
- Não está aqui, ressuscitou como tinha predito! Ide e anunciai que Ele superou a morte!
(Os três dirigem-se ao coro, cantando:)
- Aleluia, o Senhor ressuscitou, hoje o leão forte ressuscitou, o Cristo, Filho de Deus.
(Depois destas palavras, o irmão torna a se sentar e, como que chamando-os, entoa a antífona:)
- Ressuscitou do sepulcro o Senhor que, por nós, esteve na Cruz. Aleluia.
(Estendem o sudário sobre o altar. Terminada a antífona, o prior, para expressar a alegria pelo triunfo de nosso rei, ressuscitado depois de ter vencido a morte, incoa o Te Deum laudamus e todos os sinos tocam juntos.)
À "cena" do sepulcro, vão se juntando outras representações litúrgicas de teatro incipiente: os discípulos de Emaús, cenas de Natal etc. Pouco a pouco, o texto vai se emancipando e a literalidade da Escritura dá lugar a paráfrases, comentários líricos etc.
Um filho pródigo medieval - Courtois d'Arras
O Courtois d'Arras, peça de autor anônimo do século XIII, apóia-se na parábola do filho pródigo: seus personagens, sua seqüência narrativa e todos os elementos essenciais procedem da cena evangélica. A originalidade da peça está - como aponta Pauphillet [2] - num realismo avant la lettre, em projetar a narrativa evangélica para a época. O filho pródigo Courtois é um jovem da vila de Artois que, após abandonar o lar paterno, vai ser "depenado" numa taberna de Arras. O mesmo realismo faz o autor deter-se na cena da taberna, que ocupa metade da peça, explorando com agudeza a capacidade sedutora e a astúcia das mulheres. A peça, escrita em dialeto picardo do começo do século XIII, assemelha-se, em diversos aspectos, ao Jeu de Saint Nicolas de Jean Bodel, o que leva à hipótese de que sua autoria seja desse mesmo escritor. Embora de origem evangélica e de intenção certamente piedosa, a peça enquadra-se melhor como teatro profano.
COURTOIS D'ARRAS - Anônimo do século XIII
CENA I
O PAI
Vamos! Vamos! Que já é hora!
Já há tempo deviam estar fora
Nossas ovelhas, cabras e bois.
Não deixemos para depois:
O pasto está fresco de orvalho,
Acorda, vamos ao trabalho,
Meu filho, que já é dia
E está a cantar a cotovia.
O IRMÃO
Pai, mas que carga pesada!
Todo dia acordar de madrugada...
Um filho arcar com toda a canseira?
Nem um servo é tratado desta maneira!
Bem diferente desse meu irmão,
Que é bem aceito como folgazão.
Ele é mais novo, não acorda cedo.
Na verdade, não mexe um dedo.
Meu pai, com toda a veneração,
É hora de endireitar esse mandrião.
O que ganhamos, ele, na boa vida,
Gasta tudo em jogo e bebida...
O PAI
Querido filho, que quer que eu faça?
Ser duro com ele pode ser desgraça.
Ele não aprendeu nenhum ofício,
Despedi-lo é expô-lo ao vício.
Sempre espero que se arrependa
Antes de dar-lhe dura reprimenda.
Na verdade, não sei o que fazer.
Mas, mandá-lo embora, isso não pode ser.
COURTOIS
Se vocês querem saber
Uma coisa, eu vou dizer:
Eu é que não agüento mais,
Esta vidinha de dias iguais.
Nossos bens devemos repartir
Porque desta casa eu vou sair.
Bem sei que a riqueza aqui é o rebanho,
Mas para mim está de bom tamanho:
Que a minha parte me seja concedida
Em moedas, mesmo que diminuída.
Os bois, eu deixo para quem tem paciência,
Quero em dinheiro e trocado, de preferência.
O PAI
Você aqui está tão bem e tem sustento.
Abandona, querido filho, teu louco intento.
COURTOIS
O senhor não tem com que se preocupar,
Melhor estarei em outro lugar.
O PAI
Filho, você fala como um louco,
Mas, tenho dinheiro e não pouco:
Sessenta soldos que pude ajuntar
São todos seus, pode levar.
Mas, também, fica combinado:
O teu quinhão já está quitado!
COURTOIS
Minha parte para sempre está acertada,
Nunca hei de requerer mais nada.
Dê-me a linda bolsa sem demora
Para que eu possa, enfim, ir-me embora.
O PAI
Toma, filho, está bem conferido.
Que você seja por Deus protegido.
Pois, certamente, você não poderá contar
com ninguém para lhe ajudar,
Neste mundo esperto e traiçoeiro,
Se vier a perder este dinheiro.
COURTOIS
Perder o dinheiro, pois sim?
Eu sei bem cuidar de mim.
Conheço os jogos de azar
E sei como os dados rolar.
Fome ou sede nunca passarei
Porque desta bolsa bem usarei.
Este dinheiro há de se multiplicar
Como cem marcos no tesouro de Lenoir [3]
Ele não passa de um administrador
Que nem do dinheiro pode dispor.
Eu, porém, posso aplicar a bel-prazer
E da fortuna fazer o que bem entender.
Nesta bolsa estão os caminhos meus.
Adeus, meu bom pai, adeus!
O PAI
Vá, querido filhinho,
Que Deus esteja em teu caminho!
CENA II
O LEITOR
(Sem deixar que o acompanhem, sozinho,
Courtois, então, se põe a caminho.
Pensando, com a bolsa recheada,
Que nunca lhe há de faltar nada...)
COURTOIS
Quantos soldos! E são todos meus!
Nem dá para gastar tanto, meu Deus!
Para já, não seria nada mau
Um bom presunto defumado com sal
E, além do mais, um belo de um vinho.
Mas, que bom!, há uma taberna no caminho!
CENA III
O GARÇOM
Olha o vinho de Soissons!
Pode provar que é bom!
No jardim ou na mesa
É o melhor com certeza!
Bebida, aqui, é prá todo lado.
Bebe o doutor, bebe o soldado,
Bebe o médico, bebe o padeiro,
Mesmo quem não tiver dinheiro...
Aqui não se gasta nem um tostão
E disso minhas testemunhas são
Pourette e Manchevaire:
Cada qual toma o que quer
E como tudo é fiado
Basta deixar o valor assinado...
COURTOIS
Ó Deus, para sempre sejas louvado,
Por me terdes para aqui guiado,
Muito vê quem pelo mundo vai.
Como é tolo e ingênuo meu pai
Que se assusta em sua mente simplória
E não conhece este bem, esta glória:
Do bom e do melhor comer e beber,
Sem de um tostão se desfazer.
Basta marcar, nem precisa dinheiro,
Para ter os regalos de um mosteiro.
Ó senhor, os vinhos, que tal estão?
E quanto cobra pelo galão?
O ESTALAJADEIRO
Seis dinheiros, não é nada, não?
Pelo melhor vinho da região.
E temos, a vosso inteiro dispor,
Muitos outros serviços, meu senhor:
Um leito macio que é uma delícia,
Quente, alto, doce como carícia.
Sentir-vos-eis como em sólida espuma
De palha branca e suave pluma
Num quarto de belas cores pintado
No melhor estilo francês decorado.
Lençóis novos, uma manta gostosa,
E o travesseiro de pétalas de rosa.
Perfume para a boca e para o rosto
Tudo, enfim, que é de luxo e bom gosto.
COURTOIS
Meu Deus! Que luxo de hospedaria!
Para mim, isto nem em sonho existia!
Estalajadeiro, quero o da melhor safra!
O ESTALAJADEIRO
Lequet! Traz aí uma garrafa!
CENA IV
O LEITOR
(Enquanto é providenciado
o vinho que ele quer,
postam-se a seu lado
Pourette e Manchevaire.)
POURETTE
Bebe, garoto, cai na festança,
Que Deus abençoe seu olhar de criança
Que já não será mais tão inocente.
Vai, garoto, vai em frente...
Esvaziem a taça seus lábios de mel
Que ainda tem muito vinho no tonel...
Vai, vai bebendo meu jovem rapaz
Ao final, de nossa turma serás.
COURTOIS
Disto, sim, eu gostaria:
Desfrutar de vossa companhia.
POURETTE
Se é assim, senta, meu bem,
E diz para mim de onde você vem?
COURTOIS
Eu venho de Artois.
POURETTE
E qual seu nome, filho?
COURTOIS
É, querida amiga, Courtois,
Quase que dá trocadilho! [4]
POURETTE
Que você é fino, isso é evidente,
Bonito, gentil, inteligente...
E eu, que vivo pedindo a São Marcelo,
Que me dê um amigo assim tão belo...
Por nenhum conde, duque ou rei
Fiz o que por você farei:
Tudo o que você quiser.
Não é assim, Madame Manchevaire?
MANCHEVAIRE
Claro que sim, ama e senhora,
Podeis lhe pagar nossa conta de agora
E dar-lhe montarias e veste fina
Mas que ele não caia na jogatina.
Eis aí algo que não suportais:
O jogo, isto não perdoais.
Mas, o que agora direi, não levareis a mal:
Madame Pourette e Courtois: um belo casal.
COURTOIS
Ó minha cara Manchevaire,
Que bobagem você diz, mulher?
Imagina supor, que coisa mais tonta,
Que eu não possa pagar a conta.
Vê esta bolsa presa por um cordão?
Ela não está vazia, não!
Vê se não se intromete!
MANCHEVAIRE
Ó Courtois, a Madame Pourette,
Eu a conheço e não estou enganada,
Ela está loucamente apaixonada
Por você, seu felizardo:
Que foi pelo amor contemplado,
De uma dama rica e formosa
Muito astuta e graciosa
E que é todinha para você...
COURTOIS
Serve mais vinho, Lequet!
Bebamos nós três nesta ocasião,
Que bem merece comemoração,
Eu, a Manchevaire e a Pouretana
Que, depois, eu vou morrer com a grana.
POURETTE
Vai bebendo, querido Courtois,
Que nós tomamos mais devagar.
E se há um conselho que eu lhe dê
Não confie no ladrão do Lequet
Vai, Courtois, vai tomando.
COURTOIS
E vocês, só ficam olhando?
POURETTE
Que você tome todo este vinho
Como prova do imenso carinho
Desta sua amiga e criada
Que só procura, encantada,
Amar e servir de coração.
COURTOIS
Eu bebo com amor e gratidão!
POURETTE
Dá-me uma prova desse amor
Que mal nasceu e já está em flor.
MANCHEVAIRE
Madame, que escutam os ouvidos meus?
Que é o que pedis, por Deus?
POURETTE
Cala-te, boba, eu sei o que faço.
Por que ele não me dá um abraço?
Manchevaire, não tenho eu razão?
Por que ele não me beija com paixão?
COURTOIS
Senhora, por quem sois!
Já estão a olhar para nós dois.
MANCHEVAIRE
É, está certo o rapaz.
É melhor beber um pouco mais.
COURTOIS
Que o vinho seja bem aproveitado!
POURETTE
Courtois, não seja tão acanhado.
À vontade você deve ficar:
Esta estalagem é teu lar.
Se você quiser passear agora
Há um belo pátio lá fora.
Nós aqui vamos te esperar.
COURTOIS
É, vou tomar um pouco de ar...
CENA V
POURETTE
Caipira idiota, tapado,
Quero vê-lo bem embriagado.
E aí vou fazer esse bicho do mato
Pagar boa lebre e comer mau gato.
Vou abocanhar a bolsa de dinheiro
Que o trouxa amarrou ao traseiro.
A Pourette, aqui, vai é metê a mão...
Mas, está aqui nosso anfitrião.
É isso aí, meu chefe, vamos chegando!
O ESTALAJADEIRO
E então, mulherada, que andam tramando?
Alguém vai perder, alguém vai ganhar?
POURETTE
Temos aqui, pronto para depenar,
(E não será difícil de fato...)
Um tolo apaixonado, um pato
Com uma bolsa muito recheada...
O ESTALAJADEIRO
...Da qual não vai sobrar nada.
Ah, essas damas... Bravo! Bravo!
POURETTE
É isso aí, até o último centavo.
É fácil, tá no papo, tá na goela
Prá quem tem meus anos de janela.
Logo que na bolsa eu passe a mão
Pagarei o que lhe devo com prontidão.
E enquanto eu dou um sumiço.
Você completa o serviço
E morde do bobo outro tanto.
Tira-lhe, sem piedade, a roupa e o manto.
A cota, você a troca por uma em farrapos
E quando estiver vestido com trapos,
Você o põe para fora a toque de caixa.
O ESTALAJADEIRO
Pshh... Ele tá voltando, voz baixa!
CENA VI
COURTOIS
Que belo pátio, que lindo jardim!
Nunca tinha visto um assim.
Todo tipo de plantas, nenhuma falha.
O ESTALAJADEIRO
Lequet, traz a toalha,
As bacias e água quente.
LEQUET
Sim senhor, imediatamente!
Bacias limpas, aroma sem igual
E a água na temperatura ideal.
COURTOIS
Será que devo aceitar,
Deste modo me banhar?
Água quente e perfume...
Bem..., se do lugar é o costume,
Não serei eu a negar.
Esse banho irá me deleitar
Como eu já adivinho.
POURETTE
Manchevaire, traz mais vinho.
Depois de um banho, Courtois amado,
É preciso beber, me faz esse agrado.
Toma, toma com decisão!
COURTOIS
Eu gosto de molhar no vinho o pão.
É gostoso, é bom!
POURETTE
Não é lá de bom tom!
Mas, se você gosta, meu bem,
Nós faremos assim também.
COURTOIS
Eu é que devo seus conselhos seguir!
POURETTE
Sim, há um que você deve ouvir.
Porque eu, se você licença nos der,
Vou sair um pouco com Manchevaire
Cuidar de umas coisinhas primeiro,
Para depois trazer mais dinheiro.
E uma preocupação em mim aflora:
O medo de que enquanto eu estiver fora
- E isto eu não poderia suportar -
Você, meu amor, comece a jogar.
Ai! Este temor me aniquila.
COURTOIS
Quanto a isto, pode ficar tranqüila.
Eu garanto que não vou jogar.
POURETTE
Não é que eu não queira acreditar,
Mas você sabe como é a paixão
E que o melhor é evitar a ocasião.
Pois estes teus dedos, tão delicados,
Parecem hábeis para os dados.
E você com tanto dinheiro... Ai que temor!
COURTOIS
Bom, então me faz um favor:
Leva esta bolsa, guarda-a para mim
E eu fico protegido, assim,
Não entro no jogo nem que eu queira.
POURETTE
Lequet, uma coisa vamos combinar
Um ao outro deve afiançar.
Nós temos que sair um pouquinho
E deixar nosso amigo sozinho.
Mas nós voltamos, já, já.
E nosso querido Courtois,
Que está em nossa companhia,
Fica aqui como garantia
De toda a nossa despesa.
Ele não sairá desta mesa
Fica aqui como refém.
LEQUET
Deste modo, está muito bem.
Aceito a garantia, pode ir sossegada...
COURTOIS
Eu, enquanto espero minha amada,
Mandarei dois belos frangos assar.
Estarão prontinhos quando ela voltar.
Ah, como isto é bom!
Garçom, garçom!
CENA VII
LEQUET
Senhor, senhor, tenho uma notícia!
Pourette, com esperteza e malícia,
Conseguiu muito dinheiro, finalmente,
Do caipira tolo que, impaciente,
Continua lá, sentado, a esperar
Pela pombinha que não vai voltar...
Porque não é nada tonta.
O ESTALAJADEIRO
Então ele que pague a conta.
E como aqui a ninguém se poupa,
Pagará em espécie, com sua roupa.
Como é que é, tá sozinho, Courtois?
Poure e Manche onde foram parar?
Passaram sebo nas canelas?
COURTOIS
Foram cuidar de negócios delas,
E para não haver nenhuma porfia
Fiquei eu aqui como garantia.
Pourette volta logo, disse ela.
O ESTALAJADEIRO
E você caiu na esparrela?
Você é louco de ficar como penhor
E aceitar daquela ladra ser fiador.
Ela é tão astuta, que é capaz de enganar
Os mais espertos do Roman de Renart [5] .
Mas isso não me diz respeito
Só me interessa o meu direito.
Vamos acertar a continha nossa?
COURTOIS
Receio que eu não possa.
Mas elas vão voltar, eu garanto.
Em todo caso, aceite o meu manto.
É muito valioso como você nota.
ESTALAJADEIRO
Courtois, vou tomar também sua cota!
Só o manto é insuficiente, meu irmão.
COURTOIS
E eu, como é que fico? Na mão?
Precisa ser assim, precisa?
ESTALAJADEIRO
Sim. E passa a calça e a camisa
Que ainda há muito que acertar.
COURTOIS
Ai, meu Deus! Ele vai me deixar
Sem nada de verdade.
ESTALAJADEIRO
E com isso não me paga nem metade,
Dê-se por muito feliz!
COURTOIS
É o que ele ainda me diz!
Não sei não, mas acho que fui enganado.
Eu tinha um saco de dinheiro recheado
Que me foi dado ainda hoje cedo
E Pourette, que do jogo tem medo,
Ia guardar para mim e... some de repente.
ESTALAJADEIRO
E, no dia em que a galinha criar dente,
Ela vai voltar... Não se amofine,
Talvez você a encontre em Bietune...
Se você correr de verdade.
COURTOIS
Correr no vento e na tempestade
Atrás de ilusão? Triste consolo.
Não, já fui bastante tolo...
Resta-me aceitar o castigo
Por não ouvir o conselho amigo
De meu pai que não deixou de avisar...
ESTALAJADEIRO
Courtois, tudo que eu posso te dar
É uma sobrecota velha e surrada
Que eu tenho para ser emprestada
A quem, no jogo, tendo tudo perdido
Possa, pelo menos, não ficar despido.
Lequet, traz aí o farrapo!
Embora não passe de um trapo,
É melhor do que o que você vai encontrar
Quando o mundo tiver que enfrentar.
COURTOIS
Como muda a sorte num momento,
Da ventura se passa ao sofrimento...
Que farei agora, sem dinheiro?
Adeus, meu bom estalajadeiro.
Adeus, a miséria está a me esperar!
ESTALAJADEIRO
Que Deus te ajude, Courtois...
Nas curtas cenas VIII a XII, Courtois lamenta, em monólogo, a miséria em que se encontra (VIII); conversa com um proprietário que o contrata para cuidar de porcos (IX); lamenta, em novo monólogo, que, nesse emprego, não lhe dão de comer e - desesperado após experimentar a comida dos porcos e descobrir que é intragável - resolve retornar ao lar paterno (X); é recebido com festas pelo pai (XI), que procura aplacar o ressentimento do irmão: a última fala do pai - uma referência explícita ao Evangelho - lembra que a alegria pela conversão de um pecador é maior do que a que se dá por noventa e nove justos que não necessitam de penitência (XII). E, após dizer essas palavras, o pai entoa o Te Deum e a peça se encerra.
[1] . Cit. por GUGLIELMI, N. El teatro medieval, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1980, pp. 12-13.
[2] . Jeux et sapience..., p. 110. Para a tradução, valemo-nos do original do Courtois d'Arras, nessa obra apresentado.
[3] . Gerard Lenoir, de Arras (morreu em 1228), é tomado como tipo do administrador financeiro.
[4] . Courtois, cortois, significa cortês, gentil.
[5] . Como se disséssmos: "Ela é tão astuta e cheia de arte / que é capaz de enganar o próprio Pedro Malazarte".