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 Entrevista: Rute e Fatiminha 

(Rute e Fatiminha são entrevistadas por Maria Cristina Castilho de Andrade, na sessão de 18-04-02: “Mulheres de rua", do Seminário Internacional Cristianismo - Filosofia, Educação e Arte – II. Edição: Hermengildo Marianetti Neto)

 

Maria Cristina: As duas são muito especiais. Elas estiveram conosco no Dia Internacional da Mulher, na Câmara Municipal de Jundiaí, e elas têm a coragem de escancarar a vida delas para construir um mundo mais solidário. Rute, com quantos anos você saiu de casa e foi para a prostituição?

Rute: Com 10 anos.

MC: E por que você saiu de casa, Rute?

R: Porque eu fui estuprada pelo meu pai, e a minha família nunca deu apoio para mim.

MC: Rute, quando seu pai a estuprou pela primeira vez, você estava com quantos anos?

R: Eu estava com 10 anos.

MC: E sua mãe havia morrido havia quanto tempo?

R: Ela tinha morrido há pouco tempo.

MC: Fazia pouco tempo. E você contou para alguém? Para quem você contou primeiro?

R: Contei para minhas irmãs.

MC: E aí?

R: Elas não acreditavam em mim, né? Não deram uma força para mim, nada. Então eu peguei e saí para a rua.

MC: E quando você saiu para a rua, quem te levou para a prostituição?

R: Ah, quem me levou foi meu pai mesmo, porque, se ele não fizesse isso comigo, eu garanto que eu não tinha ido, né?

MC: Certo. Agora, pense um pouquinho, Rute: você era uma criança; como era o seu Natal?

R: Ah, o meu Natal era muito ruim, né? Eu vivia no bar, bebendo ... droga não era muito, não, mas eu bebia muito.

MC: E você bebia por quê?

R: Ah, eu era sozinha na rua, né? E tinha que beber, né? Pra agüentar.

MC: Viu, Rute, me diz o seguinte: E como é que era essa questão de brinquedos, de boneca?

R: Eu nunca tive brinquedo. Nem tive infância, né? Porque, com 10 anos, uma criança ... nem infância teve, né?

MC: Vamos ouvir a Fatiminha agora, depois a gente volta com a Rute. Fátima, e você foi para a prostituição com quantos anos?

Fatiminha: Eu fui com 12 anos.

MC: Então, conta um pouco pra gente, Fatiminha, quando morreram seus pais, por que que você veio aqui para o Estado de São Paulo, de onde você veio ...

F: Bom, eu não sou do Estado de São Paulo, sou de Mato Grosso do Sul e lá eu sempre fui criada em sítio, fazenda, assim, trabalhando para os outros. Meus pais faleceram, eu tinha 8 anos de idade. Meu tio, irmão de minha finada mãe me trouxe pra Jundiaí aos 8 anos. Mas sempre minha tia tacava na minha cara que não era obrigada a sustentar vagabunda. Porque eu não tinha idade. Ia pedir serviço de babá e ninguém me dava. Aí, vou indo para a escola, no Mobral, me lembro. Era para cima de casa, um pouco, mas tinha um mato escuro pra passar. Um dia, na volta – eu saía às oito e meia – um cara saiu do mato e me estuprou. Com 12 para 13 anos. E nesse estupro eu fiquei grávida. Aí ele me expulsou de casa. E no centro de Jundiaí tinha uma Casa da Esfiha, que era um bar de prostituição. Foi lá que eu tomei meu primeiro copo de cerveja, levado por um... cidadão. Ele colocava açúcar na minha cerveja pra eu agüentar beber, pra eu ganhar dinheiro para sobreviver, comer ... e eu, grávida, ninguém me aceitava em casa.

            Aí, foi assim que eu comecei na vida... Tô até hoje assim, porque eu não tive ninguém pra me dar uma força. Caí no mundo da droga, tentaram me matar em 97. Eu mais caí mais na prostituição porque em 96 eu trabalhava no Hospital e Maternidade Jundiaí, quando apareceu uma diabete descompensada em mim. Mandaram-me embora. Não teve como fazer acordo. E perdi tudo o que eu tinha. Hoje também perdi um pulmão, porque em 97 um próprio freguês me esfaqueou, atravessou um punhal de um lado para o outro. E a lei é cega, isso não vê. E antes de ontem eu vi o cara que acabou com meu pulmão, que eu tenho um pulmão morto... Eu vi ele na minha frente, passando e me cumprimentando. A minha vontade era matar ele. Não teve lei que fizesse justiça com ele. A errada fui eu: “Por que você entrou no carro dele?” Ninguém pergunta por que eu entrei se eu estava precisando de comer. Porque eu vivo em Jundiaí, eu pago hotel: 17 reais por noite pra dormir. Às vezes eu não ganho nem pra comer. Se não for na Escola, eu não como, não almoço. Caí no mundo da droga também. De vez em quando você tem que usar droga para agüentar. Mas graças à Escola Magdala eu não tô mais, sabe... na droga. Mas eu bebo demais para agüentar. E é isso aí, Cristina.

MC: A Rute é funcionária da Escola Maria de Magdala, né? E aos poucos a gente vai tentando também procurar integrar as pessoas. Rute, queria que você dissesse um pouco: prostituir-se é bom, é ruim...?

R: É muito ruim.

MC: Por quê?

R: Porque você sai com vários homens, né? E não é uma legal.

MC: Como que é, Rute, essa coisa de não ter ninguém que te ame, que te acolha e ter alguém que só quer te usar? Como é que uma mulher se sente diante disso?

R: Se sente muito mal, porque você não ter ninguém pra te amar ... Nem a família te ama, né? Agora é diferente, mas antes era muito mau isso aí. Você não ter o apoio de ninguém é muito ruim.

MC: Rute, agora me diz uma coisa: a sua família te convidava nos Natais para você comemorar com eles?

R: Não, eles nunca me convidaram. Minha família sempre fazia um almoço. assim diferente, né?, uma coisa diferente, mas eles nunca me convidaram. Eu ficava nesse barzinho, a Casa da Esfiha, bebendo. As minhas amigas ... eu conheço a Fátima daquele tempo, e outras amigas minhas, bebendo.

MC: Rute, como é que você organiza o Natal na sua casa agora? Quem é que você chama?

R: Ah, eu chamo a minha família.

MC: Agora eu queria que a Rute contasse uma coisa que realmente sempre me faz acreditar que as prostitutas me precederão no Reino dos Céus. Rute, você perdoou seu pai?

R: Perdoei. Meu pai pegou câncer, né? Na medula. Então ele ficou na cama. Então as minhas irmãs tinham nojo de meu pai. Elas não limpavam ele, não cuidavam dele. Então eu... sei lá ... daí eu cuidava dele, às vezes eu estava jantando e ele gritava que precisava limpar ele. Porque ele ficava incomodado, né? Então eu ia, largava o prato, ia limpar ele, cuidava dele.

MC: Então eu queria dizer que esta mulher, que foi estuprada pelo pai durante dois anos – durante dois anos – perdoou-o e cuidou dele na cama. Rute, Deus pra você ... qual a importância de Deus pra você, qual a importância de Jesus Cristo, qual a importância da pastoral nessa tua caminhada de vida?

R: Na minha caminhada? Deus pra mim ... olha, Deus fez muita maravilha pra mim. Me deu 4 filhos e uma neta.E pra mim, olha, é tudo meus filhos. E a Escola Maria de Magdala também é uma família pra mim. Eu gosto das meninas, gosto de conversar com elas e adoro todo mundo que trabalha lá.

MC: Vamos voltar um pouquinho com a Fatiminha. Fatiminha, você tem filhos?

F: Eu tenho três.

MC: Moram com quem?

F: Moram comigo. Eu venho pra cá, trabalho, mando dinheiro pra casa ...

MC: Tá voltando quando para Mato Grosso para ver os filhos?

F: Graças à Pastoral, que me deu a passagem, tô voltando dia vinte, sábado, para os braços dos meus filhos.

MC: Fatiminha, e Deus na sua vida?

F: É muito importante. Deus me fez maravilha, me tirou de dentro do buraco várias vezes, me livrou da morte três vezes. Deus é muito importante na minha vida. Sem ele eu não seria ninguém.

MC: Esse Deus que você acredita é um Deus que castiga, que machuca, ou é um Deus que perdoa, que acolhe, que ama? Como é esse Deus?

F: Esse Deus que eu conheço é um Deus que acolhe ... e castiga, quando precisa. Se Ele achar que deve castigar, Ele castiga também. Mas o Deus que eu conheço é o Deus que perdoa, que me ama, ama eu e a todos, né? Ah, me castigar ... eu não acho que ele está me castigando. Eu acho que ele tá me abrindo muitas portas. Tá me ajudando muito esse meu Deus.

MC: Me diz uma coisa, Fatiminha. Você acha importante vir aqui num lugar, né?, em que você conhece poucas pessoas, tá certo? – que nós conhecemos poucas pessoas -, vir um pouco aí, colocar sua experiência de vida? Você acha que é importante? No que isso é bom?

F: Olha, eu acho bom vir aqui. Não conheço ninguém, né? Conheço só vocês mesmo, né? Tudo bem ... é difícil a gente chegar aqui e abrir o livro da vida da gente, sabe? Muitas pessoas riem, muitas choram, muitas têm pena, sabe? Mas eu não quero pena, nem piedade, eu quero que eles enxerguem mais a gente, entendeu? Que a gente também é um ser humano. A gente tá nessa vida porque é fatalidade da vida. Muitas vezes num sufoco. Eu mesma, pra criar os filhos ... eu queria que a sociedade olhasse mais pra gente, não discriminasse, não jogasse pedra na gente, entendeu? A gente é ser humano. Se eles não puderem ajudar..., mas pelo menos não atirassem pedra, olhassem mais pra gente, entendeu? Tentassem pelo menos ajudar com uma palavra amiga. Eu acharia muito bom.

MC: Teu maior sonho, Fatiminha?

F: Meu maior sonho? Bom, eu não tenho nada, mas o meu maior sonho é voltar agora pra minha casa – moro com meu irmão, meus filhos – porque eu já tenho serviço à vista lá, que meu irmão me arrumou. Com esse trabalho, conseguir fazer minha casinha, comprar meu terreno e ter um lugarzinho para mim morrer e descansar em paz com meus filhos. E nunca mais pensar em voltar para a prostituição. Viver do meu trabalho.

MC: Rute, seu maior sonho, Rute, com todo esse jeitinho dengoso aí, que você tem.

R: Meu maior sonho é casar minhas filhas, né? – eu tenho três filhas e um filho – e ir lutando, né? Tenho que continuar lutando pra criar eles, né?

MC: Certo. Viu, Rute, só mais uma coisinha: você acha importante hoje aqueles brinquedos que você não teve, você dar esses brinquedos para os seus filhos?

R: É muito importante. O que eu não tenho eu procuro dar a eles. Faço o possível – e o impossível – pra dar.

MC: Tá certo.

(aplausos)