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 Como obter uma Formação Integral 
 o modo ótimo de realizar a LOGSE (PCNs) 

 

Alfonso López Quintás[1]
lquintas@filos.ucm.es
(Trad.: Silvia Regina Brandão)

 

As atuais condições de vida tornam indispensáveis uma formação muito apurada das crianças e jovens, caso quisermos ter um futuro. Os meios de comunicação bombardeiam diariamente o cidadão com um avalanche de informações de todo tipo. Com freqüência, os temas decisivos da vida humana são tratados de forma leviana e tendenciosa. Torna-se extremamente difícil para as crianças e jovens reagirem com a devida lucidez diante desta avalanche de idéias desencontradas ou mesmo opostas. O único caminho para uma solução é dotar as crianças e jovens de um elevado poder de discernimento e fortalecer sua vontade mediante a proposta de um ideal de vida que os entusiasme.

É para isto que apontam, no fundo, explicita ou implicitamente, os diversos planos de estudo que estão sendo elaborados em diferentes países. A Ley General de Ordenación del Sistema Educativo (LOGSE) propõe como meta última do ensino alcançar a "formação integral dos alunos". Para isto assinala seis objetivos ou metas parciais (aprender a pensar com rigor, raciocinar de modo persuasivo e fundamentado, conviver de forma agradável e fecunda, tomar decisões lúcidas, comportar-se de modo adequado às exigências do próprio ser pessoal) e sete temas tranversais (Educação moral e cívica, Educação para a paz, Educação para a igualdade de oportunidades entre os sexos, Educação ambiental, Educação sexual, Educação do consumidor e Educação de trânsito. Estes temas – segundo a Lei – tem de ser tratados através de todas as áreas, de forma tal que, ao mesmo tempo que são apresentados,  vão se atingindo os referidos objetivos: pensar com rigor, raciocinar de forma coerente etc. Ao fazê-lo, cada professor exerce função de autêntico tutor. Esta exigência da lei atualmente é motivo de perplexidade e preocupação por parte de muitos professores, que se sentem seguros no campo de sua área, porém se vêem perdidos na hora de realizar tarefas que sempre tem sido consideradas como competências da Ética, da Teoria dos valores, da Pedagogia, da Formação humana... A pedido de diversos grupos de professores, apliquei  a esta questão os resultados das investigações que  tive que realizar para estruturar a Escuela de Pensamiento y Creatividad e descobri um caminho extraordinariamente fecundo e capaz de dar cumprimento à Lei sem causar a menor distorção para os professores. Estes não necessitam preocupar-se em ensinar diretamente valores e criatividade aos alunos. Podem permanecer tranqüilos dentro do perímetro de sua área, porém terão que empenhar-se em salientar certas questões da mesma, que têm grande incidência na formação integral dos jovens. Esta incidência se descobre quando se analisa a fundo o que é e em que implica o processo formativo.

I. O processo formativo e suas cinco fases

O processo formativo deve se realizar, a meu ver, em cinco fases. Ao longo delas vão se iluminando os valores e pode-se ver em que consiste ser criativo. A criatividade e os valores não são objeto de ensino, como podem sê-lo a maior parte dos conteúdos próprios das diferentes áreas: matemática, ciências, história, geografia... Os valores tornam-se luminosos, convocam-nos, pedem para ser realizados. A criatividade é um modo de atividade particularmente fecundo que acontece quando respondemos ao apelo dos valores de forma ativa e damos lugar a algo novo e pleno de sentido.

Percorramos o esquema das cinco fases e descobriremos uma idéia decisiva: formar-se significa entusiasmar-se com a unidade, compreender que estabelecer modos elevados de unidade com as realidades do nosso meio constitui o ideal de nossa vida. Bem compreendida e assimilada esta idéia primordial, disporemos de uma clave decisiva para orientar o ensino de forma fecunda e conceder à vida profissional toda sua importância.

Primeira fase do processo formativo

O ponto de partida do processo formativo é olhar ao redor, contemplar profundamente todas as realidades e perceber que nem todas têm o mesmo nível. Umas são meros objetos, realidades fechadas em si, delimitadas, ponderáveis, acessíveis, passíveis de serem situadas em um lugar determinado, em um momento determinado do tempo. Uma caneta, por exemplo, apresenta estas condições; é um objeto. Outras realidades também são delimitadas, acessíveis, etc. por terem uma vertente material, porém são mais que objetos. Têm iniciativa e desenvolvem certa atividade em diferentes níveis. Uma pessoa não fica circunscrita a suas dimensões corporais; abarca certo campo em diversos aspectos: estético, ético, profissional, religioso... Ela é mais um "campo de realidade" do que um objeto. Costumo denominá-la "âmbito de realidade", ou, simplesmente, "âmbito". Porém não são somente as pessoas que revelam este caráter ambital. Toda realidade que oferece ao homem certas possibilidades e é capaz de receber as que o homem lhe oferece deve ser considerada também como "âmbito". Um piano, enquanto um móvel, é um objeto. Visto como instrumento, é um "âmbito", porque oferece ao pianista a possibilidade de tocar e é capaz de receber as possibilidades que ele lhe concede de forma a configurar diversas formas musicais. O mesmo é possível dizer em relação a um barco ou um avião. Quando o Pequeno Príncipe, no livro homônimo de Saint-Exupéry, viu um avião caído no deserto, perguntou: “O que é esta coisa? O piloto corrigiu-o imediatamente: ‘Isto não é uma coisa. Isto voa. Isto é um avião, é meu avião’” [2] . Chamar-lhe "coisa" significava rebaixá-lo de nível, não o ver como um âmbito de realidade, capaz de interagir com o piloto e possibilitar esta maravilha da técnica que é um avião voando.A arte de viver com autenticidade consiste em aprender a ver as realidades do meio não somente como objetos; mas, também, como âmbitos possiveis. Muitas realidades em nossa volta nos parecem, em princípio, meros objetos. Mas, se as tomamos em um projeto criativo, elevamo-las à condição de âmbitos. A caneta com que estou escrevendo é um objeto: algo mensurável, delimitado, com certo peso...

Se a utilizo para escrever uma obra, faço-a partícipe de uma atividade pessoal íntima, “ambitalizo-a” em certa medida e doto-a de um valor proporcional à qualidade do meu escrito. Por isso admiramos a pena com que Goethe escreveu o Fausto e que se conserva em sua casa-museu de Frankfurt. Todo âmbito é um realidade aberta, relacional, colaboradora. Está, de per si, predisposta a colaborar em experiências reversíveis, experiências de dupla direção. Com isto passamos à segunda fase do processo formativo.

Segunda fase

Na vida realizamos, freqüentemente, ações que vão de nós mesmos a outras realidade do meio e aí terminam. Dou um empurrão em um livro e este se desloca. Não há reação de sua parte à minha iniciativa. Eu fui responsável pelo todo da ação. Realizei uma ação coativa. Mandei, e o livro obedeceu minha ordem cegamente. Melhor dizendo: não houve ordem nem obediência, e sim um impulso físico e uma reação mecânica. Permaneci no plano dos objetos e me vali de força muscular. Porém há outras ações que se dirigem a uma inteligência e vontade livres. Convido-lhe para dar um passeio no parque. Você me responde que sim, mas sugere que lhe parece melhor pela rua. Sua resposta é ativa, assume minha proposta porque pressente nela um valor, mas o faz tomando iniciativa. Minha ação de lhe convidar exerceu uma influência sobre você, porém não foi uma ação coativa, mas sim uma ação capaz de suscitar uma atividade em você, uma atitude de colaboração. Desta forma eu influenciei você e você a mim. Esta troca de influências cria espaço para um diálogo, um encontro, por fugaz que seja.

Já estamos preparados para compreender o encontro em sua origem e para dar conta da razão profunda pela qual as disciplinas que estudam o enigma do ser humano sublinham atualmente que "o homem é um ser de encontro". Vivemos como pessoas, desenvolvemo-nos e aperfeiçoamo-nos como tais na medida diretamente proporcional à qualidade e quantidade dos encontros que construímos com as diversas realidades do nosso meio. O encontro apresenta esta fecundidade porque significa uma forma de união muito elevada. Este é o ponto decisivo do processo de nossa formação pessoal. Temos que descobrir a grandeza da unidade. O ser humano caracteriza-se por sua capacidade de distanciar-se das realidades do meio para criar modos distintos de unir-se com elas.

Se me agarro fortemente à mesa, meu modo de união é intenso, mas pobre. Tiro a mão e não fica nada. Minha união não era criativa. Toco a superfície de um piano e acontece o mesmo. Porém, quando abro a tampa e coloco meus dedos sobre o teclado e toco uma peça o modo de união que adquiro com o piano, com a partitura, com a obra e seu autor é altíssimo. Posso estar mais intimamente unido a um compositor distante de mim no tempo e no espaço do que com o ajudante que toca meu ombro ao mudar as folhas da partitura. É fantástico! As experiências reversíveis nos permitem criar modos de unidade de uma surpreendente riqueza. Quando entre você e eu criamos um campo de jogo (juego) no qual pressentimos nossos âmbitos de vida, com suas correspondentes possibilidades, acontece algo decisivo: superam-se as divergências manifestadas nos esquemas aqui-ali, dentro-fora... No plano objetivo, ambos estamos, por sermos corpóreos, um fora do outro. No plano “lúdico”, o do intercâmbio criador ou encontro, você não está fora de mim, nem eu fora de você; contribuímos os dois para criar um campo de jogo no qual desaparecem os limites que nos afastam e começamos a participar de uma mesma atividade criativa.

Esta forma de superar os limites mediante a união por uma tarefa conjunta abre-nos à possibilidade de vincular os modos autênticos de solidariedade com as formas mais exigentes de independência.

Terceira fase

A linguagem é um veículo expressivo de encontro. Ao descobrir a importância dos âmbitos e do encontro, destaca-se o papel decisivo que tem a linguagem na vida humana. A primeira e principal função da linguagem não é servir de meio de comunicação. É o meio através do qual podemos criar relações de encontro e convivência, ou o meio de destruí-las. A linguagem tem duas faces, como tudo o que é humano nos permite criar formas sublimes de unidade; mas, também, nos proporciona recursos para destruir toda possibilidade de união. Qual das duas funções, a construtiva ou a destrutiva, é a autêntica?

Se aceitamos que o homem é um ser de encontro, devemos concluir que a linguagem autêntica é a que está inspirada pelo amor e constitui o "lugar" no qual se criam relações de encontro. Quem se expressa com o desejo de criar unidade presta atenção para expressar cada realidade segundo os termos adequados ao seu nível. Nunca utilizará, por exemplo, o verbo "ter" para expressar uma realidade pessoal. Não cabe dizer que "temos corpo", mas sim que "somos corpóreos". Há uma distância abissal entre as duas expressões. Também não é adequado afirmar que um poema é um objeto. Se o fosse, não poderíamos estabelecer com ele uma relação de encontro. Façamos a experiência seguinte e veremos a importância de utilizar bem a linguagem e considerar os poemas não como objetos; mas sim como âmbitos.

Esta mudança de termos pressupõe o poema como um campo de jogo e de encontro, e não como algo que podemos possuir e dominar de fora. Aprendo o poema de cor, para prescindir de intermediários e entrar em relação imediata e direta com ele. Repito-o uma vez, outra vez, alterando o ritmo, o fraseado, a modulação, até que minha sensibilidade conclua que esteja bem declamado e manifeste toda seu potencial expressivo. Então sinto que o poema deixa de ser externo e estranho a mim para tornar-se íntimo, sem deixar de ser diferente. Converte-se em uma voz interior. Ao declamá-lo, volto a criá-lo conforme minha própria sensibilidade. Já não obedeço ao texto impresso do qual tomei o poema. Sigo as sugestões de minha inspiração poética. Neste momento, minha união com o poema é altíssima e fecundíssima. Convido-os a fazer esta experiência por si mesmos, uma e outra vez, porque revelará que tipos de união somos capazes de criar com as realidades do nosso meio se as consideramos em toda sua riqueza.

Quarta fase

O ideal da vida humana consiste em criar as formas mais valiosas de unidade e encontro possível. Tudo que nos permita realizar este ideal possui valor para nós. Ao assumir os diferentes valores de modo ativo e comprometido, atuamos de maneira criativa. Vemos interrelacionados os conceitos de encontro, linguagem expressa com amor, ideal, valor e criatividade. São os conceitos nucleares do processo formativo. Os seres humanos temos que configurar a vida em cada instante mediante o impulso que recebemos do ideal, que é uma idéia motriz porque encarna o valor mais elevado, o que serve como chave de abóbada de todo edifício de nossa existência. Em nossa existência, tudo depende do ideal que assumimos como próprio. Se tendemos por princípio ao ideal de unidade e solidariedade, nossa atitude será fundamentalmente generosa, e nos orientamos pelo caminho do encontro e da criatividade. Se optamos pelo ideal de domínio, de posse e de "uso", nossa atitude básica será de egoísmo e nos encaminharemos pela via da fascinação ou vertigem, que produz inicialmente euforia para afundarmos na decepção, na tristeza, na angústia, na desespero e na destruição.

Quinta fase

Se nos dirigimos em direção ao ideal de unidade, ganhamos um modo relacional de contemplar as realidades ao nosso redor e adquirimos uma visão nova, fecundíssima, do que é a vida humana e suas possibilidades. Ao entregar-me às experiências de encontro, vou descobrindo cada dia com maior nitidez a importância da ‘relação’ para minha vida e aprendo a ver todas as realidades como "nós de relações", não como objetos opacos e fechados. Com isto, minha visão da realidade torna-se imensamente promissora, porque as realidades, vistas assim, são possíveis companheiras de encontro. Para educar na criatividade  e nos valores é necessário aprender a ver, pensar e sentir de modo relacional. Este pedaço de pão é um objeto, mas um objeto que foi elaborado a partir dos frutos da terra, por exemplo, o trigo.

O trigo é por acaso um produto de um processo fabril? De modo algum. Ninguém produz trigo, no sentido de fabricá-lo. O trigo é fruto de uma múltipla confluência: o agricultor recebeu dos mais velhos algumas sementes e a arte de trabalhar a terra; deposita as sementes na mãe terra e espera confiante; espera que a seu tempo venha a chuva, empape a terra e coloque em relação as substâncias nutritivas e as sementes; e que o sol doure a messe... Ao ver um grão de trigo na palma da mão, não estou diante de um objeto fechado em si; contemplo uma realidade que me remete a muitas outras desde sua própria origem. É uma realidade "relacional", é todo um âmbito de realidade cheio de vibração. Daí seu poderoso simbolismo, sua capacidade de expressar o sentimento de amizade de um pai de família que convida alguém para comer em sua casa, e toma o pão, o parte, o reparte e o compartilha. Algo semelhante pode-se dizer em relação ao vinho.

Esta forma relacional de ver as realidades siginifca um desenvolvimento notável da inteligência, que se habitua assim a pensar de forma compreensiva, penetrante e elevada. Para unir estas três condições da inteligência e não pensar de forma descompassada, vendo, por exemplo, à distância e deixando de lado os pormenores; é necessário prestar atenção às diferentes realidades e captar suas mútuas vinculações. Desta forma, nos atemos ao concreto imediato e não ficamos presos nele, mas chega-se a todas suas derivações: confere-se amplitude penetração e longo alcance ao pensamento.

Este é o caminho real para aprender a pensar com rigor, raciocinar de modo lógico e coerente, tomar decisões lúcidas: três dos objetivos da Nova Lei de Educação. Para desenvolver a inteligência, não basta realizar exercícios de lógica, mediante uma ou outra técnica. É necessário ter uma idéia adequada da realidade e de suas distintas expressões, já que pensar com rigor significa fazer justiça ao real, ajustar-se às condições da realidade.

Porém restam ainda outros objetivos da Lei: conviver de forma agradável e fecunda, e comportar-se de modo adequado às exigências do próprio ser pessoal. Estes objetivos exigem colocar em jogo a capacidade criadora. Há aqui uma aplicação decisiva à descoberta que se realiza ao longo do processo formativo, a saber: pensar com rigor e viver criativamente são mutamente necessários e complementares. Se penso com rigor, estabeleço as bases para o encontro, e este é o lugar nato da criatividade. Ao ser criativo e gerar uma série de encontros, que são campos de iluminação, preparamo-nos para pensar com maior rigor ainda. Posso insistir de forma eloquente sobre a necessidade de conviver, ser tolerantes, comportar-se de forma digna, e não conseguir despertar nos alunos o menor entusiasmo por esta forma de vida. A verdadeira persuasão consegue-se ao mostrar a razão profunda daquilo que se proclama. Se um jovem observa que seu desenvolvimento pessoal e o sentido de sua vida dependem das relações de encontro, possui uma clave de orientação decisiva e irá traduzí-la, muito possivelmente, em um modo acertado de conduta. Daí que os educadores não devamos ocupar-nos demasiadamente em dar conselhos, que facilmente são interpretados como sinal de paternalismo e desejo dominador de condutas. Temos de aplicar nossas energias na descoberta de claves de orientação que penetrem na realidade e sejam, portanto, lúcidas e fecundas.

A clave, por excelência, vem dada pela idéia relacional da realidade. É, na verdade, impressionante pensar que todas as realidades do universo estão constituídas por relações e são testemunho vivo da importância da unidade, porém nenhuma dessas realidades sabe disso, exceto o homem. Nós, sim, sabemos que ao criar unidade alcançamos o máximo de nosso desenvolvimento pessoal, nos situamos na verdade e nos convertemos em porta vozes dos demais seres. Em cada ato criador de unidade, o universo atinge o movimento que formou todos os seres e os conduziu por caminhos lentíssimos ao estado atual. Esta consciência da própria dignidade e responsabilidade é a melhor preparação, a única verdadeiramente eficaz, para abordar os grandes temas da convivência humana: tolerância, paz, justiça, saúde, igualdade de direitos... Não basta insistir nestas questões e chegar a um consenso de mínimos sobre elas a fim de garantir a convivência. Uma fundamentação sólida da vida social exige uma ética de máximos, entendida como o aprofundamento nuclear da realidade: a importância da categoria de relação e a fecundidade dos modosmais elevados de unidade. Ao assumir estas idéias, torna-se possível realizar a grande tarefa do momento atual: fundar um Humanismo da unidade e da solidariedade. Ao receber, em 1962, o prêmio de melhorhumanista europeu, Romano Guardini proferiu em Bruxelas uma conferência sobre a tarefa atual da Europa. Sua conclusão veio a ser a seguinte: "A Europa soube criar ao longo de vários séculos uma impressionante cultura do domínio. Sua tarefa atual consiste em configurar uma cultura do serviço [3] .

Para alcançar esta configuração, devemos mudar o ideal, como se vem postulando desde a primeira Grande Guerra. O ideal de domínio tem der ser mudado pelo ideal da ajuda solidária. Todo o trabalho de ensino deve ser direcionado a estabelecer as bases que tornem possível esta extraordinária tarefa.

II. Contribuição das diferentes áreas do processo formativo

A lei considera indispensável que cada professor contribua a partir de sua atividade específica à "formação integral" dos alunos e, para isso, determina que em todas as áreas se procurem tratar, a partir de uma ou outra vertente, sete temas que considera decisivos a este respeito. Os professores deverão descobrir em que lugar de seu programa, de que forma e com qual método introduzir temas como a educação moral e cívica, a educação de trânsito, a educação para a paz e a tolerância, etc...

Recentemente tem-se publicado muitos livros e artigos sobre os temas transversais e sua introdução nas diversas áreas. O resultado deste esforço benemérito é muito pobre, devido a um erro de proposta. Cada área deve contribuir para a formação integral dos alunos, mas deve fazê-lo não mediante o tratamento direto de certos temas, escolhidos por certas pessoas e, sim, mediante o estudo profundo de algumas questões do próprio programa que tem incindência particular no desenvolvimento do processo formativo, tal com antes havia sido planejado. Quais são tais questões? Vejamo-las em três áreas representativas de três vertentes da atividade humana: Literatura, Música, e Matemática.

1. A matemática - Um catedrático de matemática de uma prestigiosa universidade manifestou publicamente, em uma ocasião, que invejava os filósofos porque eles têm amplas possibilidades para influir na formação dos jovens, enquanto ele se via limitado a ensinar questões puramente formais, alheias à vida humana concreta.

Felizmente, esta opinião pessimista é infundada. Se o professor de matemática pode conseguir através do ensino de seu programa que o aluno possa abrir-se à grandeza da unidade, colaborará de maneira eficaz para  sua formação integral mesmo que não faça a menor alusão a valores ou à criatividade durante o curso.

A matemática tem como meta primordial a criação de estruturas. Toda estrutura implica ordenação de diversos elementos. Esta forma de ordem, configurada pela mente humana, apresenta uma enigmática afinidade com a ordem que rege o universo inteiro e que pode expressar-se em fórmulas matemáticas.

Sabemos que os grandes pioneiros da ciência, Kleper, por exemplo, dedicou-se a buscar exaustivamente fórmulas que permitam pensar racionalmente a constituição íntima do universo baseado na convicção de que este contém uma ordem e toda nossa tarefa de pesquisa consiste em descobrí-la. Por isso eminentes físicos contemporâneos não hesitam em afirmar que não é possível fazer ciência sem o respaldo último da religião.

O professor de matemática deve ensinar diversas fórmulas, equações e operações aos alunos. É parte essencial de seu programa docente. Se, através de tal instrução, procura que os jovens tenham uma idéia clara do poder das estruturas matemáticas, de sua beleza (devida à harmonia dos diversos elementos que articula), da afinidade entre a ordem estabelecida pela mente e a ordem que se encontra nas diferentes realidades do universo, desde o infinitamente pequeno ao imensamente grande, estabelece as bases para dar uma sólida formação espiritual dos alunos. Na verdade ele não falou de valores, nem de criatividade, nem dos temas transversais. Porém esse amor às esruturas que inspirou em seus alunos vai articular-se com tudo o que o professor de cultura e lingua grega lhes dirá sobre a descoberta pitagórica de que certos fenômenos podem ser expressos de modo matemático. Pitágoras observou que as diferentes alturas dos sons produzidos pelas pancadas dadas em diferentes bigornas guardam proporção com o volume destas, assim como o som mais agudo ou mais grave das cordas de um violino depende da amplitude das cordas. Tais sons podem ser expressos mediante uma fórmula matemática: a oitava corresponde à fração 1/1, a quinta à 5/4, a quarta à 4/3. A história da Estética a partir dos gregos até o começo da Idade Moderna foi uma corrida entusiasmada em busca de fórmulas que expressassem os fenômenos qualitativos básicos na vida estética. Quem vê o Partenon, maravilha-se com sua harmonia, admira seu equilibrio e deixa que seus olhos se comprazam na idéia de majestade que irradia. Em um segundo momento, o onservador tem a alegre surpresa de descobrir que essa harmonia, fonte de insgotável beleza, está vinculada em sua origem com um cálculo muito preciso de interrelações. Tudo está submetido, nesta obra, à proporção e medida ou mensuração. A altura dórica é 16 vezes maior que o raio da base, considerado como módulo. O comprimento do tríglifo é considerado como a unidade de medida, a da métope deve abarcar 1,6. Até os menores detalhes estão submetidos ao cálculo. E o mesmo cabe dizer de esculturas como Vênus de Milo e Apolo de Belvedere.

Porém a harmonia não era para os gregos somente canôn de beleza artística; determinava também a beleza urbanística e a moral. Esta admiração para com as estruturas que por razões de sentimento e de inteligência, sentiam os gregos, os santos padres, os pensadores medievais e renascentistas, vincula-se ao espírito do aluno com a sóbria estima que o professor de matemática soube inspirar nele em relação a tudo que signifique ordem e configuração.

Com isso o aluno se encontra perfeitamente disposto a penetrar a fundo no núcleo da doutrina ética. Quando o professor de ética explicar que é decisivo compreender a relação estreita que deve existir entre liberdade e normas, liberdade e preceitos , liberdade e esrutura social, e outros temas semelhantes, o aluno não recusará precipitadamente esta indicação pelo conhecido preconceito de que a liberdade opõe-se, necessariamente, a tudo quanto signifique ordem da vida, limitação de certas possibilidaddes, imposição de referenciais normativos. Ele já assimilou, alegremente, que certas estruturas são fonte de beleza e de bondade, assim como de lucidez para compreender o universo. Sua atitude em princípio será, então, de abertura colaboradora à doutrina ministrada pelo professor de ética. Se este se preocupa em mostrar que a norma autêntica é aquela que oferece um referencial fecundo à ação porque responde ao modo de ser do homem, o aluno estará pronto a aceitar que assumir uma norma fecunda não reprime sua liberdade, mas até a torna possível. Assumir significa, aqui, tomá-la como princípio da ação, como voz interior. O aluno lembra-se sem dúvida, neste momento, da experiêcia do poema que realizou na aula de literatura e que antecipamos ao descobrir o modo elevadíssimo de unidade que podemos criar com certas realidades que a princípio eram distintas e distantes de nós e depois tornam-se íntimas.

Vimos, com clareza, como se conectam, sem que isso seja procurado explicitamente, o ensino de diversos professores e criam espaço para um corpo de doutrina no espírito do aluno. Os professores transmitem alguns conteúdos e ao mesmo tempo infundem um espírito, um modo de ver a realidade, uma perspectiva fecundíssima a partir da qual é possível penetrar no último reduto da existência, que é a relação. A partir daí é possível montar todo o edifício da formação humana, como veremos ao final.

2. A música - Tudo o que foi dito acerca da importância da relação, do entrelaçamento de âmbitos de realidade ou encontro terá  na música uma confirmação simples, vivaz, impressionante. Tudo na música é relação.

O grande físico Eddington dizia: "Dê-me um mundo de relações e lhe darei um mundo de matéria e energia". Um músico pode do mesmo modo afirmar: "Criai relações e obtereis música". Dois sons tomados separadamente não têm valor estético. Dois sons relacionados formam um intervalo expressivo. Com isso começa a música. O mesmo acontece com o ritmo, que é formado de sons ordenados no tempo. A ordem, a inter-relação é a origem do edifício surpreendente da música. A sonata em fa menor, Appassionata, de Beethoven inicia-se com três notas descendentes, do, la, fa. É uma relação, uma forma de estruturar os sons. Daí parte toda a estrutura desta obra magnífica. Ao ouvir este tema nuclear já se está vibrando com a obra inteira. Na música, aprendemos a não nos determos nos valores imediatos; mas sim a transcendê-los em direção a tudo aquilo a que eles mesmos remetem. Aprende-se a arte de transcender, de dar ao olhar e à inteligência um longo alcance, amplitude e penetração: as três condições básicas de uma forma madura de ver e entender. Esta maneira fecunda de abrir-se à realidade circundante é confirmada e aperfeiçoada quando nos exercitamos em captar, simultaneamente, os sete níveis ou modos de realidade que oferece toda obra de arte autêntica: os materiais isolados, os materiais vinculados entre si, os materiais estruturados, os âmbitos de realidade que se expressam através desta estrutura, o mundo peculiar que modela a obra, a emotividade que esta suscita, o meio vital para o qual foi destinada.

Porém nossa forma de pensar ganha maior maturidade quando ao ouvir atentamente uma obra musical descobrimos que nela se supera de fato a divisão entre a independência e a solidariedade. Cada voz em uma obra polifônica goza de total independência em relação às outras. Nenhuma pode misturar-se com ela. Porém, quando se começa a cantar – que é uma atividade criativa e portanto dual, aberta , relacional – presta-se toda atenção às outras, tempera o volume e o rítmo de sua voz em função do conjunto, aviva-se sua sensibilidade para criar um tecido sonoro perfeitamente harmônico e equilibrado. Quando se adota uma atitude criativa, ninguém procura dominar ninguém, destacar-se em relação a ninguém, obstruir ninguém. Pelo contrário, esforça-se por ressaltar suas qualidades e seu modo de realizá-las, porque do brilhantismo de cada elemento depende o êxito do conjunto. Uma interpretação justa vincula a máxima independência e a máxima solidariedade.

Supera-se, deste modo, a divisão entre a autonomia e a heteronomia. O bom intérprete obedece à partitura, que é seu referencial expressivo, o princípio de sua atuação artística, seu impulso criador. Ele sabe que sem a obra não seria nada, estaria condenado à inexpressividade. Quando entrega-se generosamente à tarefa de recriar a obra, repara em que então adquire uma liberdade interior plena de alegria, vê-se dotado da capacidade de criar todo uma sequência sonora, cheia de beleza e expressividade.

Ao ajustar-se à obra, limita sua "liberdade de manobra", mas com isso adquire sua autêntica liberdade expressiva ao criar um campo de jogo e encontro. Neste se supera a relação de afastamento entre o aqui e o ali, o interior e o exterior. A obra continua sendo distinta dele mas não é distante nem externa nem estranha. Tornou-se íntima. Esta experiência viva de como uma realidade distinta e distante pode tornar-se íntima sem deixar de ser diferente tem suas aplicações decisivas na vida ética. Um jovem dá um passo gigante em direção à maturidade quando repara na possibilidade de unir-se estreitamente a uma realidade que se apresenta como normativa. Assumí-la como impulso de seu agir e ser totalmente livre. Este aparente paradoxo é algo de totalmente lógico no nível da criatividade, do trato com os âmbitos de realidade, no plano dos objetos e da manipulação dos mesmos.

3. Literatura - Tudo que dissemos sobre os âmbitos de realidade, de sua relação com a vertente objetiva das realidades, das experiências reversíveis e do encontro, das leis de desenvolvimento humano e outros temas semelhantes é vivido em obras literárias valiosas, de forma dramática, sumamente expressiva. A literatura – como, em geral, a arte – não lida com meros objetos e meros fatos; e, sim, com âmbitos e com acontecimentos. Daí que a leitura atenta das obras literárias nos situe em uma trama de âmbitos que se criam ou se destróem ao longo de processos de criatividade ou êxtase ou processos de fascinação ou vertigem. O importante na tragédia de Macbeth não é a trama argumental, e sim o processo de vertigem que Shakespeare quis colocar diante de nossos olhos para que descubramos as fases de um processo que começa com a euforia e desemboca na destruição. Por isso a tragédia é, como indicou Aristóteles "catártica", purificadora; apresenta-nos de modo evidente qual pode ser nossa própria história se seguirmos um processo deste gênero.

Desta forma, através das diferentes áreas vamos aprofundando nos conceitos básicos que tecem nosso processo formativo. Não tratamos diretamente dos temas transversais, mas nos preparamos para compreendê-los a fundo, em sua origem. É o único modo de abordá-los com radicalidade e nos prepararmos para transmiti-los aos outros de forma persuasiva e convincente. Vejamos outros exemplos.

1. A educação para a paz e a tolerância não é possível se antes não se despertou no aluno o entusiasmo pela unidade e o amor incondicional à verdade. A paz não implica somente ausência de conflitos. Supõe a criação positiva de vínculos de convivência. Esta atividade criativa requer sacrifícios, que somente podemos realizar pelos impulsos do desejo de criar unidade. A tolerância não se reduz à mera aceitação de qualquer idéia ou conduta. Isto seria indiferença e não implicaria criatividade alguma e portanto desenvolvimento da personalidade e criação de verdadeira vida comunitária. A tolerância autêntica supõe estima pelo outro, pelas qualidades necessárias para esclarecer uma questão ou um modo de conduta.. Tal esclarecimento deve fazer-se com atenção à realidade, que é o módulo de toda idéia ou comportamento. Ser tolerante é estar disposto a buscar a verdade em comum, com independência de todo tipo de interesse partidário. Esta vontade incondicional de viver na verdade, da verdade e para a verdade suscita uma atitude de simplicidade, que nos leva a admitir que, quando conhecemos algo estamos na verdade, porém não na verdade total. Vejo João pela rua e lhe dou a mão. Posso dizer que estou encontrando com “todo João”, mas não com o “João todo”. É a pessoa do João que me vem ao encontro, não somente sua mão ou seu olhar. Porém nem todas as facetas da vida de João se fazem presentes. Algo análogo acontece com a verdade. Podemos estar certos de conhecer algo de verdade.

Temos razão em defender nossa verdade com firmeza e entusiasmo. Porém erraríamos se considerássemos nossa opinião como um ponto de vista exaustivo sobre a realidade tratada. Daí se deduz que à verdade não podemos ir a sós, sem uma comunidade. Necessitamos dos outros para ir conhecendo a realidade mais plenamente, de mais e mais perspectivas.

2. A educação para a liberdade não pode se reduzir a ensinar a ser comedidos nas reivindicações e respeitosos com os direitos dos demais. É necessário ir ao núcleo da vida criativa, que é a relação primária do homem com o meio, e reconhecer que necessitamos nos abrir a esta realidade e cumprir suas exigências. Para isso é necessário adotar uma atitude de respeito e deixar que a realidade se nos vá manifestando em tudo que é e implica. Esta manifestação ou “desvelamento” é a verdade originária.

Com isso fica claro que liberdade e verdade se requerem mutuamente. Quando assumo a verdade da realidade, e me vinculo a ela, quer dizer, me "obrigo" às suas condições e exigências posso acolher as possibilidades que me oferece na direção do meu desenvolvimento pessoal. Então adquiro liberdade criativa. Ao descobrir isto, reparo que a verdade é "promotora" e na mesma medida, tem "autoridade" sobre mim, um modo peculiar de poder que não coage e sim promove.

3. Educar para a saúde não é possível se não se aprende antes a descobrir os diferentes valores e a hierarquizá-los. O agradável é um valor, porém o é não somente porque nos satisfaz e sim porque detecta valores mais altos e nos remete a eles. Minha saúde é um valor mais elevado que o agrado que me proporciona um alimento saboroso. Porém a saúde também não é um valor supremo. Consagrar as forças da boa saúde para servir os outros contém um valor ainda mais alto. Se tal serviço se realiza porque alguém é consciente de que gerar unidade é a lei de todo o universo, seu valor adquire um matiz peculiar que o enriquece sobremaneira. Uma pessoa de fé religiosa que veja o universo como fruto de um ato de amor por parte do Criador e considere que ao criar unidade prosseguimos o trabalho criador e fechamos o círculo de amor do universo, dando a ele sua máxima dignidade e colocando-o na verdade, confere a seus atos de serviço e a suas relações de convivência um valor supremo.

Os temas transversais devem ser analisados de modo expresso e sistemático em cursos especiais, por exemplo no de Ciências Sociais e Ética. Então, o aluno pode ver em bloco o quanto aprendeu nas diversas áreas e durante os diferentes cursos. Esta visão sinóptica permitirá captar o sentido pleno de cada pormenor e descobrir a fecundidade que todo isso contém para orientar sua vida e dar-lhe plenitude.



[1] Conferência na Real Academia de Ciencias Morales y Políticas - 22 de outubro de 1996.

[2] Cf El principito, Alianza Editorial, Madrid 1972, p. 18.

[3] Cf Europa Wirklichkeit und Aufgabe. Eggebrecht, Maguncia, 1962, pp. 27-28. (Europa Realidad y Tarea, Cristiandad, Madrid 1981, pp. 25-26).