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 Mulheres Prostituídas 

 

Maria Cristina Castilho de Andrade*
criscast@zaz.com.br

“Só ouve direito quem se liberta dos preconceitos;
e só se liberta dos preconceitos quem é capaz de
restituir a palavra ao silenciado”
(Frei Antônio Moser).

 

I – Introdução

A palavra “prostituir” vem do verbo latino prostituere, que significa expor publicamente, por à venda, entregar à devassidão. Dela se deriva “prostituta”, para designar as cortesãs de Roma que se colocavam à entrada das casas de devassidão.

A prostituição é parte de uma indústria multibilionária. Entre as distintas modalidades desta indústria estão, ainda, o turismo sexual, o tráfico de mulheres, a pornografia, etc.

A instituição da prostituição não beneficia somente o cliente, mas traz benefícios a terceiros: donos de hotel, administradores, proxenetas, traficantes, agências de turismo.

As mulheres prostituídas, em sua maioria, foram condicionadas para ser prostitutas através do maus tratos, da violência, da discriminação e da falta de auto-estima, que as faz vulneráveis e passivas. Dentro desses condicionamentos, as mulheres sentem que não valem nada em si e que seu único recurso é o uso de seu corpo como objeto sexual.

Existe “prostituição de casa”, nas “zonas de confinamento”, e “prostituição de rua” ou “trottoir”. Na “prostituição de casa”, as mulheres atendem os seus clientes nestes locais, recebendo ordens, geralmente, de uma cafetina. São obrigadas a usar drogas e bebidas alcoólicas para beneficiar a cafetina. Na “prostituição de rua”, é lá que ela conquista os seus clientes e paga aluguel em quartos de hotéis de alta rotatividade. Há, ainda, locais de prostituição disfarçados como algumas casas noturnas, casas de massagem, “relax for men”, além de anúncios na imprensa e sites na Internet.

De acordo com artigo do Serviço à Mulher Marginalizada, ONG que estuda o assunto, considerar que a prostituição é uma opção de trabalho, é uma maneira de aceitar que o sexo e o corpo da mulher e de menores de idade são uma mercadoria. Reforçam-se, assim, os conceitos patriarcais que alentam os papéis sexuais de dominação masculina e submissão feminina. Destaca a entidade os mitos a respeito do assunto: vida fácil, profissão mais antiga do mundo, não gosta do “pesado”, faz muito dinheiro, não tem caráter e o que se diz: “vagabunda, ninfomaníaca, escolheu livremente a profissão, sabe muito sobre sexo”.

De forma geral, a sociedade lança um olhar de condenação sobre as mulheres que sobrevivem da prostituição, sem procurar as causas que levam a essa situação. Não condena, contudo, o agente ativo da situação: o senhor cliente. Toda vez que se discute a prostituição, coloca-se o foco na mulher e ergue-se um muro de silêncio em torno do homem que paga e, portanto, mantém o comércio do sexo. E tratando-se de crianças, o cliente é, antes de tudo e principalmente, um criminoso.

Em entrevista à revista “Mulher Libertação” - Ano XII – Nº 51- publicação do SMM, em 1997, Dom Antonio Fragoso, bispo Emérito, fala sobre a hipocrisia social: o homem acusa a mulher de perdida, mas sustenta o comércio sexual. Essa esquizofrenia, segundo ele, é uma das responsáveis pela prostituição. “Dentro dessa ótica, a mulher prostituída é vítima, e vítima não se condena, mas se lhe oferece solidariedade”, conclui o Bispo.

Dom Fragoso, em 1960, na época Bispo Auxiliar em São Luís do Maranhão, implantou no Brasil o primeiro trabalho com mulheres prostituídas, a partir de experiência do Padre Talvas, em Paris, com o movimento Ninho.

Segundo Anima Basak, indiana, membro da Federação Abolicionista Internacional, “a prostituição significa a dominação machista sobre a mulher, que tem um corpo considerado como explorável. Não pode haver prostituição com apenas uma pessoa. Mas é sempre a mulher que leva a marca de pecadora”.

O Brasil assinou, em 1949, a “Convenção contra o Tráfico de Pessoas e Exploração da Prostituição” da ONU e, em 1979, a “Convenção de Eliminação de Todas as Formas de Exploração da Mulher”.

A atividade não é crime e portanto não é ilegal. Conforme os artigos 227 e 231 do Código Penal Brasileiro, que tratam dos crimes contra os costumes, crime é o lenocínio e o tráfico de mulheres, ou seja, a exploração da prostituição alheia. Nestes itens podem ser enquadrados cafetões, rufiões e donos de casa e hotéis.

Nos Estudos da CNBB (15), “Prostituição, desafio à sociedade e a Igreja”, Dom Luciano Duarte define o tema: “A prostituição, como instituição legal, é uma mancha vergonhosa em nossa civilização. É a aceitação de um fato, postulado pelo egoísmo dos homens, propiciado pela fragilidade das mulheres, amparado pela hipocrisia generalizada (...) Uma coisa é algo de que a gente se serve, como quem usa um sabonete num lavatório. Depois se deixa para lá. Uma pessoa é algo que é preciso descobrir por detrás da fuligem do cotidiano. Uma pessoa é alguém que tem um nome, uma história, foi criança, teve ilusões, sonhou com a vida, sentiu desabrochar dentro de seu coração uma aspiração de felicidade”.

II – Causas da Prostituição

Estudiosos do assunto, na causas da prostituição colocam fatores sócio-econômicos e psicológicos.

Fatores econômicos: falta de emprego; migração para os grandes centros urbanos; jovens do campo, passando a viver na cidade; mães solteiras com dificuldade na manutenção do filho. Moradias em condições subumanas: barracos, cortiços, porões, muitas vezes abrigam a promiscuidade, que é um caminho aberto para a prostituição.

Fatores psicológicos: carências afetivas e traumas que marcam a infância e a adolescência das pessoas.

Temos observado, na convivência com as mulheres prostituídas em situação de pobreza, que a maioria foi estuprada na infância por alguém muito próximo; possuem baixa ou nenhuma escolaridade e faltou-lhes apoio familiar. Quanto às mais jovens, diversas delas trocam o corpo por uma quantia de droga ilícita.

Segundo recente trabalho do Serviço à Mulher Marginalizada (SMM), há uma legião de meninas vendendo o corpo por desinformação e ilusão, levadas pela ganância de agenciadores (muitas vezes mulheres) e pela mídia. Querem ganhar dinheiro, com baixa escolaridade e sem empregos à vista. Enxergam, no sexo comercializado, a única porta para as maravilhas do consumo, o ideal moderno da felicidade.

III – Realidade da Prostituição e do Abuso Sexual Infantil

De acordo com o Serviço à Mulher Marginalizada - SMM, uma pesquisa da Faculdade de Ciências Humanas da Fundação Mineira de Educação e Cultura de Belo Horizonte estima que exista 1,1 milhão de mulheres prostituídas no país. O SMM acredita que esse número esteja abaixo da realidade, já que é muito difícil ter dados quantitativos quando se trata de uma questão que envolve preconceito, falsa moral e pecado.

A revista “Época”, de 23 de outubro a 06 de novembro de 2000, elaborou três interessantes reportagens sobre a realidade da prostituição no Brasil, com o título: “As Prostitutas do Século XXI”. Uma das entrevistadas salienta que ansiava pelos 18 anos para assumir, sem documentos falsos, sem a condição de vítima, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a condição de prostituta. Escolheu comercializar o corpo atraída pelo dinheiro. Mora com o namorado. Com dezessete anos, ele a trocou por uma garota de programa. Ao tentar reconquistá-lo, ouviu a proposta: “Se você for para a noite, fico com você”. O namorado transformou-se em “empresário”: gerencia a manutenção financeira, procura trabalhos mais vantajosos e decidiu que ela deve aprender inglês para melhorar a fluência na negociação com clientes estrangeiros. O namorado a leva até a boate de luxo. A reportagem observou que, na porta, se abraçaram. “Eu te amo”, disse ele. “Eu te amo muito e já já estou em casa”, ela balbuciou. Não gosta de ser chamada de prostituta.

Em outro estudo da Faculdade de Ciências Humanas da Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC), realizado com prostitutas de Belo Horizonte e publicado na Revista Veja de 12/04/2000, a trajetória das prostitutas de luxo, em geral, começa em casas de massagem ou em boates “privês”, onde fazem shows de “strip-tease” e mantêm contatos com potenciais clientes. Com o passar do tempo, por causa do desgaste com os clientes e da própria depreciação estética, muitas garotas passam a oferecer seus “serviços” em qualquer lugar. Vão parar nas ruas. No estudo da FUMEC, 76% das prostitutas entrevistadas apresentaram sintomas de depressão, 59% de stress crônico e 36% disseram ter pensado em suicídio alguma vez desde que começaram a prostituir-se.

Voltando à revista “Época”: Brasília é uma outra realidade abordada pela revista, atraindo uma clientela etiquetada como “vip” no mercado da prostituição. São procuradas por homens maduros, com dinheiro, tempo e disposição para a busca do prazer. Ficam em boates e ruas. São encontradas, ainda, na rede de contatos, buscando discrição. Uma delas, atraída pelos ganhos materiais, sonha abrir um salão de beleza, casar e ter filhos, longe de Brasília.

Na segunda matéria, uma cafetina, com escritório registrado como agência de modelos, comenta que ganha de 20% a 30% do combinado. Diz que muitas meninas vêm iludidas para São Paulo, querem ser modelos ou atrizes famosas. Terminam fazendo programas. Ajudam a família e para que a família não desconfie do que fazem, seus documentos são falsificados.

As mulheres do porto de Salvador vendem sexo a marinheiros estrangeiros. Alcançam os navios em catraias inseguras, superlotadas e muitas delas trazem marcas dos naufrágios. Uma conta à revista sobre o naufrágio. Eram seis pessoas e apenas três coletes salva-vidas. As quatro mulheres boiaram agarradas aos restos da embarcação. Atravessaram assim a madrugada. Pela manhã, o sol queimava, o sal fazia a pele arder e os peixes beliscavam. Uma das quatro, de 13 anos e grávida, morreu. A entrevistada só alcançou a praia na manhã seguinte, com o sol alto. Estava cega. O efeito só passaria horas mais tarde. Do naufrágio trouxe, nos pés, espinhos de ouriços-do-mar e queimaduras no pescoço. Aos dez anos, foi estuprada em uma praia de Salvador. Envergonhada, omitiu da família. Parou de freqüentar a 3.ª série porque se sentia “suja”. Fugiu de casa. Com 14 anos teve o primeiro filho.

Conhecidas como “pisteiras”, há mulheres que se arriscam à beira das vias movimentadas. Fazem ponto em postos de gasolina. Vendem minutos de prazer dentro das cabines e podem ser companheiras de viagem. Concentram-se em estradas de tráfego intenso, próximas às regiões carentes e com escassas oportunidades de trabalho. Muitas são menores de idade. “São empurradas para o acostamento da miséria”. Uma delas, após o primeiro programa, comprou uma calça jeans. “Eu me senti poderosa quando saí da loja com o pacote debaixo do braço”.

Em sua última matéria, a revista “Época” aborda a situação das mulheres prostituídas na região garimpeira. Uma das mulheres, cafetina, na reportagem afirma: ”No mundo, a gente vale o que tem. Quem aprende isso encontra a felicidade”. Para ela, menina que dá lucro é aquela que tem amor pelo ouro e pela liberdade. De cinco em cinco meses, excursiona de ônibus pela região em busca de novas atrações, pois casa cheia é ouro no cofre. Em território garimpeiro, a iniciação sexual é precoce. Mal menstruam, as garotas são consideradas prontas para o sexo. Sucumbem às regras e à falta de perspectivas.

A revista conclui que é um mundo complexo, habitado por mulheres que cumprem papéis variados. Não existe a prostituta universal e previsível, capaz de caber num verbete.

Gilberto Dimenstein, no livro “Meninas da Noite”, aborda, também, a prostituição na área indígena que, segundo o líder Antônio Apurinã, de Rio Branco, é alarmante. Tentava, em 1992, o líder da UNI (União das Nações Indígenas), Apurinã, que a FUNAI impedisse a entrada dos marreteiros nas tribos, pois transformaram, bem como os garimpeiros e soldados, o sexo, tão natural entre a comunidade, em troca de cachaça, remédios, roupas e comidas. Em Manaus, segundo Dimenstein, em conversa com o coordenador do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) Michael Feeney, marreteiros e soldados, espalhados pelos quartéis da Amazônia, são os responsáveis pelos ataques às mulheres e meninas. O médico e antropólogo Antonio Maria de Souza, pesquisador do Museu Emílio Goeldi, de Belém, que passou boa parte de sua vida visitando as tribos da Amazônia, obteve dezenas de depoimentos sobre curras de meninas praticadas por soldados em São Gabriel da Cachoeira, no alto Rio Negro. Um grupo de homens (em geral, recrutas de folga) pegava uma indígena, geralmente jovem, arrastava para um lugar ermo e praticava “a geral”, ou seja, uma curra. Testemunha do médico é o índio Gabriel Gentil: “Eu vi com meus olhos como uma mocinha chamada Larita, de 18 anos de idade, foi agarrada por 11 recrutas brancos do Exército. Eu os vi trepando em cima dela e se satisfazendo no corpo da moça durante a noite: desde as 8hs até às 3hs da madrugada”. O comandante do 5. º Batalhão Especial de Fronteiras do Exército de São Gabriel da Cachoeira, coronel Francisco Abrão comenta o fato: “São as índias que tentam estuprar meus soldados quando estão no cio. Eu tenho que segurar meus soldados, porque eles não podem se aproveitar dessa deficiência”.

Relatório do Serviço à Mulher Marginalizada apresenta, na cidade de São Paulo, a realidade das mulheres e adolescentes pobres que vivem na rua e albergues, também em hotéis e pensões que as acolhem exclusivamente para atividades de prostituição:

- São provenientes de famílias em situação de miséria, desestruturadas, com abandono de filhos e as meninas encontram na prostituição um meio para ganhar o sustento. Algumas mulheres já fazem parte da segunda ou terceira geração de mães prostituídas.

- Um grande número delas sofreu violência sexual por parte de familiares, pessoas próximas ou nos locais onde trabalhavam como domésticas.

Iniciaram a prostituição na puberdade e adolescência, provocando distúrbios no seu desenvolvimento afetivo-emocional e obstáculos no aprendizado escolar básico e habilidades profissionais; são em sua maioria analfabetas ou semi-alfabetizadas.

- São rejeitadas socialmente pela atividade de prostituição e assimilaram de forma profunda os preconceitos e desvalorização social, fatores que agravam as dificuldades de procura e entrada no mercado de trabalho.

- Em situação de abandono, são submetidas e exploradas por mulheres e homens que vivem da prostituição (cafetões) e traficantes de drogas. Envolvidas nessas situações, são constantemente presas e vítimas de abusos e violência policial.

- Mulheres adolescentes, usuárias de drogas, principalmente álcool e crack, utilizam-se da prostituição para conseguir dinheiro para as drogas.

- Apresentam alta incidência de doenças, incluindo-se alcoolismo e dependência de crack.”

De acordo com informações do Centro Feminista de Estudo e Assessoria – Cfêmea -, as regiões brasileiras, no que diz respeito à exploração sexual de crianças e adolescentes, possuem algumas características:

No NORTE, os garimpos propiciam as formas mais violentas de exploração sexual que incluem cárcere privado, venda e tráfico de crianças e adolescentes, leilões de meninas virgens, mutilações, desaparecimentos e turismo sexual portuário e de fronteiras.

No CENTRO-OESTE, prevalece a exploração sexual em prostíbulos nas regiões de fronteira e rota de narcotráfico, redes de prostíbulos fechados, leilão de virgens.

No SUL, predomina a exploração de meninos e meninas de rua, prostituição nas estradas, exploração de crianças pelo narcotráfico e denúncias de tráfico de crianças.

No NORDESTE, prevalece o turismo sexual, com uma rede organizada de aliciamento que inclui agências de turismo nacionais e internacionais, hotéis, taxistas e comércio de pornografia, tráfico de menores para países estrangeiros. Fenômeno recente na região é a descentralização da exploração comercial de menores que começa a se deslocar do litoral para o sertão.

No SUDESTE, acentuam-se o pornoturismo e a exploração sexual comercial de meninas e meninos de rua, nas estradas e prostíbulos, com regime de cárcere privado.

Relativo ao turismo do sexo, o jornal “Folha de São Paulo”, em matéria de 14/09/97 – 3 – Cotidiano -, “Pantanal entra na rota do turismo do sexo”, abordou pesquisa inédita realizada pelo Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social – Ibiss - com o apoio do Ministério da Justiça, Unicef e do governo estadual do Mato Grosso do Sul, mapeando e identificando 65 pontos de prostituição em seis cidades da região pantaneira localizada dentro dos limites do Estado. Esse turismo é movimentado por pescadores e turistas vindos principalmente de São Paulo.

A prostituição acontece em boates, “whiskeria”, ranchos. As boates empregam mais de cem garotas de programa vindas de São Paulo, Goiás, Paraná, Minas Gerais e até do Paraguai e do Chile.

Na cidade de Coxim, por exemplo, a prostituição praticamente dobra durante a realização dos festivais de pesca na cidade e a pobreza faz com que alguns pais até ofereçam as filhas.

Conforme matéria da revista “Maria Maria” – págs. 40, 41 e 42, abordando o livro “Meninas do Porto”, de autoria de Maria Tereza Verardo, Márcia S. Farah Reis e Rosângela M. Vieira, fruto de trabalho junto às meninas do porto de Santos, entre 11 a 17 anos, essas meninas já vivenciaram muitas mortes. Foi a morte familiar, quando foram abusadas sexualmente em casa. Foi a morte social, quando perceberam que suas famílias estavam à margem da sociedade e dos padrões de consumo. Foi a morte dos modelos de beleza, quando descobriram que não se enquadravam no paradigma estético difundido pela mídia. E, na rua, essas meninas encontram mais mortes.

A ONU, em matéria publicada no jornal “Estado de São Paulo” – Caderno A – pág. 9 – 12/12/01, alerta para a existência de 100 mil crianças e mulheres sendo exploradas sexualmente no Brasil. A informação faz parte do relatório “Lucrando com o Abuso”, publicado pela Unicef. O estudo indica a situação brasileira como uma das piores no mundo, sendo superada apenas pelos Estados Unidos, pela Índia e pela Tailândia.

Segundo a Unicef, o problema está concentrado nas cidades de Salvador, Recife, Fortaleza e Manaus e a dificuldade para combater essa prática decorre da falta de leis. Outro fator que contribui para o problema é o turismo sexual principalmente nas capitais do Nordeste brasileiro. Cerca de 14% das crianças e das mulheres exploradas sexualmente no País fazem parte desse mercado.

Entre os principais motivos da exploração sexual comercial, encontramos no relatório: pobreza, discriminação de gênero, guerras, crime organizado, globalização, ambição, tradições e crenças, disfunções familiares e o tráfico de drogas. Crianças exploradas sexualmente sofrem danos – sexuais, físicos e emocionais – que duram a vida toda ou resultam em morte precoce.

As crianças que sofrem abusos, mas conseguem escapar do comércio sexual – que são a minoria -, enfrentam o preconceito da sociedade, a rejeição da família, vergonha, medo e a perda das perspectivas no futuro.

A educação é vital para prevenir a exploração sexual de crianças: fortalece a criança para que se proteja. Além disso, as escolas podem ensinar a criança a evitar situações de alto risco.

Conclui o relatório que a exploração sexual comercial de crianças é um flagelo clandestino, por isso a grande dificuldade de se conseguir estatísticas precisas. A quantidade exata de crianças exploradas sexualmente nunca chega às autoridades governamentais, porque as crianças são negociadas por meio de rede subterrânea de traficantes de crianças. Em muitos países, esse problema nem sequer é reconhecido. Estima-se em aproximadamente um milhão o número de crianças – na sua maioria meninas – que entram para o comércio multibilionário do sexo a cada ano no mundo.

Marlene Vaz, socióloga e pesquisadora da Unicef, em entrevista aos Cadernos do CEAS em 1996, relata que, uma vez, em Aracaju, conseguiu levar as meninas para um exame ginecológico. Os cafetões, quando descobriram que ela era pesquisadora, tentaram agredi-la. Após tê-los convencido a entrar no local onde as meninas estavam, constatou a grande mudança com relação ao ambiente sofisticado da noite anterior, onde havia ocorrido um strip-tease. Elas estavam confinadas num lugar de chão de terra batida, algumas de shortinho e camiseta, outras só de calcinha e sutiã, drogadas, desgrenhadas, todas comendo de mão numa vasilha semelhante a um cocho, como se dá de comer aos porcos. Vinha um cachorro e tentava abocanhar a carne – e uma das meninas o empurrava com a perna, sonolentamente, imersa naquela letargia do dia seguinte, do sono, da bebedeira, das drogas. Contou isso para mostrar a diferença do que é a noite, na presença dos clientes, e o dia seguinte.

Segundo Marlene, a maioria não gosta de da vida que leva. Há pouquíssimas que dizem que não querem sair porque já se acostumaram. O mais comum é a falta de perspectiva, de qualificação, de conhecimento de outra vida. Num ou outro caso, são infelizes. Ao serem entrevistadas, terminam muito fragilizadas e acabam chorando.

A exploração sexual de crianças começou no passado. Narra-nos Guido Fonseca, em seu livro “História da Prostituição em São Paulo” – Editora Resenha Universitária – São Paulo – (1982), que, em 1788, José Arouche de Toledo Rendon, em análise feita das causas da decadência da Capitania de São Paulo chama a atenção para o triste espetáculo que se via nas ruas da cidade: inúmeras meninas esmolando e outras recebendo dinheiro em troca do corpo, muitas delas com menos de doze anos. Em sua maioria eram órfãs ou enjeitadas pelos pais.

No mesmo livro, cita-se que, em 1825, crianças enjeitadas ou filhas de militares enviados ao extremo sul do país para a defesa da Pátria e que não haviam retornado ou que voltavam inválidos, erravam pela cidade e acabavam sendo recolhidas por famílias paupérrimas que logo as atiravam à prostituição, almejando algum lucro.

Outras, filhas de prostitutas, simplesmente seguiam o caminho trilhado pela mãe e a maioria, talvez, embrenhava-se por esse caminho como única forma de tentar sair da miséria.

Ficou conhecido, ainda no século passado, o prostíbulo da Nhá Tuca, velha exploradora que reservava crianças do sexo feminino, filhas de prostitutas escravas, para a renovação de seu prostíbulo, substituindo as mais velhas ou as que tivessem morrido. Como narra Fonseca, aos domingos e dias santos, a cafetina mandava três ou quatro meninas, bem vestidas, para o centro, a fim de conquistar principalmente os acadêmicos, trazendo boa quantia em dinheiro para a sua alegria.

A idade, a beleza e a gravidez eram acenos para um comprador mal intencionado, como o anúncio que transcrevemos, publicado no jornal “A Lei” (São Paulo) em 01º / 03/ 1853: “Vende-se uma boa escrava crioula de quinze anos de idade, sem vícios, moléstia ou defeito; muito bonita e bem preta, a qual está grávida de quatro meses. Quem quiser comprá-la dirija-se à rua Tabatinga, na casa que fica em frente à rua Boa Morte”.

Uma outra situação, envolvendo menores, é narrada no livro “Abandonados” da Dra. Lia Junqueira: uma família chegou do Norte e logo as duas filhas, uma de 14, outra de 16 anos, foram levadas, junto com um irmão, ainda adolescente, para um prostíbulo na rua Aurora. Neste lugar, funcionava um esquema no qual o gerente fazia o papel de rufião. A mulher era praticamente loteada: o usuário determinava que parte do corpo ele queria usar. Da cintura para cima era um preço, da cintura para baixo, outro preço, corpo todo, outro preço. O irmão ficava no buraco da fechadura observando se o cliente estava usando só a parte pela qual pagara. Se o cliente tivesse pagado por uma parte e usasse outra, o dever do menino era chamar o gerente do hotel, que adicionaria mais uma quantia na conta.

No livro “Memória da Morte, Memória da Exclusão”, Francisca E. S. Severino entrevista uma menina que, com dez anos, foi violentada pelo irmão e essa situação permaneceu por um tempo. Para proteger-se, a menina vestia calças compridas uma por cima da outra. A mãe não acreditou na história.

Maria Cecília de Souza Minayo, que prefacia o livro “O Corpo na Rua e o Corpo da Rua” de Romeu Gomes, afirma que é preciso exorcizar o horror que é destruir impunemente corpos, sonhos e vidas tangidos pela fragilidade e pela miséria.

A exploração sexual é um grave atentado aos direitos das crianças e dos adolescentes. Ela se caracteriza pelo uso sexual com fins de lucro, seja levando-os a manter relações sexuais com adultos ou adolescentes mais velhos, seja utilizando-os para a produção de materiais pornográficos, como revistas, fotografias, filmes, vídeos e sites da Internet. Outra forma de exploração é o tráfico, isto é, levar crianças e/ou adolescentes para outras cidades, estados ou países, a fim de servirem a propósitos sexuais.

Essa situação tem raízes na exploração do ser humano. São os filhos da promiscuidade gerados pela miséria, pela droga, pela violência sexual infantil, pelo erotismo, pela coisificação da pessoa.

IV - O Tráfico de mulheres

O primeiro mercado em dinheiro ilegal do mundo é o tráfico de armamentos. O segundo é o tráfico de drogas seguido pelo tráfico de mulheres, crianças e adolescentes.

Segundo estimativas da Federação Internacional Helsinque de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), 75 mil brasileiras se prostituem atualmente nos países da União Européia (UE). Apenas 5% delas vendem o corpo por opção. As demais são vítimas de mercadores de escravas brancas.

As estimativas mostram que cerca de 15% das mulheres obrigadas a se prostituir na União Européia são aliciadas no Brasil, o que coloca o País como o maior exportador de mulheres para exploração sexual da América do Sul. Relatórios de ONGs e investigações da Interpol identificam as três principais rotas usadas pelos mercadores no País. Mulheres são aliciadas no Rio e embarcadas nos aeroportos Tom Jobim e de Guarulhos em São Paulo. Trajeto semelhante ao usado para levar as aliciadas no Nordeste: Salvador (BA), Fortaleza ( CE) e Recife (PE), que também usam como opção o aeroporto de Salvador. As duas rotas têm como destino Portugal e Espanha. Na terceira, as mulheres são levadas de Goiânia (GO) e Belém (PA) para o Suriname, de onde seguem para Amsterdã.

Para driblar as autoridades européias, os mercadores mudam as mulheres de cidade e de país. Assim elas passam por turistas, ficando de três a seis meses em cada região.

A revista “Isto É”, em reportagem sobre o tráfico de mulheres, publicada em 5 de junho de 1996, coloca uma outra situação: agências de viagem da Europa incluem em seus pacotes os serviços de garotas de programa brasileiras. Em muitos casos as mulheres são vendidas.

Segundo a jornalista Priscila Siqueira, em outubro de 1998, oito brasileiras, entre 19 e 34 anos, vítimas da rede internacional de prostituição em Israel, foram resgatadas da máfia russa. Elas haviam viajado três meses antes, achando que seriam empregadas como garçonetes ou como domésticas em Tel-Aviv.

Conforme testemunho de Kátia Regina Fernandes, 19 anos, ela pretendia comprar um apartamento para a família, com a promessa de ganhar US$ 1.500,00 por mês. Kátia vivia em cárcere com as colegas e só podiam sair na companhia de seguranças da máfia. Seus passaportes foram tomados assim que chegaram em Israel.

De acordo com Ana Lucia Furtado, 34 anos, ela era ameaçada pelos chefões da rede quando não atendia a 15 clientes por noite, mesmo que apresentassem doenças venéreas.

Ainda na matéria da Revista “Isto É”, citada acima, o maior agenciador de brasileiras, no Suriname, é Henk Kunath, de 54 anos. As mulheres que chegam à sua boate são obrigadas a assinar um documento concordando com seus métodos de trabalho. Assinam, realmente, mas muitas vezes sob coação, cercadas de seguranças truculentos. No contrato de quatro páginas oferecido por Kunah, as mulheres são proibidas de tudo e ele controla suas vidas. Passam a pagar, à boate, a alimentação e a moradia. Cumprem exigências absurdas, como não freqüentar lugares onde existam brasileiros, sob pena de multa. Se ficarem grávidas ou adquirirem alguma doença venérea, Kunath aplica mais multas, com valores definidos a seu critério. Até por ficarem menstruadas, as mulheres podem ser penalizadas.

As maiores queixas de maus tratos em boates ocorrem em Manila. O dono da casa, um filipino chamado Ricky, é acusado de espancar brasileiras.

As mulheres do Suriname também são usadas para transportar drogas para a Europa.

Muitas mulheres ganham no corpo um número tatuado, para facilitar a identificação.

Uma outra forma de atrair para a prostituição é o casamento por correio, que se dá através de avisos que aparecem nos jornais e revistas, por meio de algumas agências matrimoniais e atualmente também por Correio Eletrônico, solicitando jovens de boa presença que desejem se casar com estrangeiros. Na maioria destes casos, os supostos casamentos significam uma arapuca para introduzir as mulheres na prostituição. Nos casos em que de fato ocorre o matrimônio, as mulheres podem sofrer abuso ou serem maltratadas, e ao buscarem libertar-se desta relação, ficam no estrangeiro e muitas terminam na prostituição.

V – Violência sexual

O jornal “Folha de São Paulo” – caderno Folhateen de 27/07/98, em matéria sobre a violência sexual apresenta dados que merecem destaque:

Perfil do agressor: o pai é o principal violentador, seguido do padrasto, de ouros familiares e vizinhos.

Perfil da vítima: a maioria é menina e entre 11 e 15 anos.

Números da violência sexual doméstica: em São Paulo, de 1104 casos atendidos no IML em 1997, 41% dos agressores eram o pai, 21%, o padrasto e 14%, o tio.

Conseqüências do abuso: medo, depressão, sentimento de culpa, queda de auto-estima, distúrbios alimentares, tentativas de suicídio.

O que o agressor diz à vítima: “Foi você quem provocou”; “Se você contar para alguém, vou dizer que é mentira”; “Faço isso para agradar você e porque você gosta”; “Você é minha preferida. Gosto mais de você do que de outra mulher”; “Esse será nosso segredo”.

Em reportagem no jornal “Folha de São Paulo” – Caderno Campinas – C6, em 14/07/2000, encontramos que o Brasil registra cerca de 50 mil casos por ano de violência sexual contra crianças e adolescentes segundo o Ministério da Justiça.

De acordo com pesquisadores que trabalham com a questão da violência contra menores, a estimativa é que os números oficiais representam apenas 10% do total de casos. Isso porque grande parte das agressões ocorre na própria casa das vítimas. É uma violência que, em muitos casos, não é notificada. Os crimes mais comuns são de lesão corporal, maus-tratos, estupros, ameaças e sedução.

De 80 casos de violência sexual, analisados pela Clínica Psicanalítica da Violência do Rio de Janeiro, em parceria com a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), 74% aconteceram em casa e o agressor é o pai, o irmão ou o padrasto:

37% – próprio pai;

24% - padrastos;

13% - irmãos;

13% - vizinhos;

13% - outros.

Idade das vitimas:

05 a 09 anos – 50%;

00 a 04 anos – 20%;

10 a 14 anos – 16%;

15 a 19 anos – 14%.

Seqüelas mais comuns: desvios de comportamento, comprometimento do quadro emocional, distúrbios severos do sono, dificuldade de aprendizado, isolamento social, conduta regressiva e precocidade sexual.

Em pesquisa realizada no município de São Paulo (Saffioti, 1993/1995) sobre o abuso incestuoso: 71,5% dos agressores eram os próprios pais biológicos e 11,1% eram padrastos. Assim o pai e quem lhe faz as vezes compareceram com 82,6% do total de agressores sexuais incestuosos.

A CPI da Prostituição Infanto-Juvenil, realizada pela Câmara dos Deputados em 1993, apresentou a realidade da exploração sexual de crianças e adolescentes em diversos estados do país. Revelou que 50% dos estupros são incestuosos, o que implica uma transgressão do dever de proteção que se inscreve na família como instituição.

VI – Incesto

A revista “Maria Maria” do UNIFEM aborda o tema incesto. A maior parte do abuso contra as crianças acontece dentro da família e os agressores são, em geral, o próprio pai ou o padrasto.

A maioria das vítimas é mulher (93%) e cerca de 60% têm entre 08 e 15 anos, de acordo com um estudo de casos atendidos no Setor de Sexologia do Instituto Médico Legal de São Paulo, finalizado em 1996 pelo médico Carlos Alberto Diêgole, coordenador do PAVAS de São Paulo.

Uma das agravantes desse tipo de violência é que ela ocorre por um tempo prolongado. Levantamento conclusivo do CEARAS (Centro de Estudo e Atendimento Relativo ao Abuso Sexual da Universidade de São Paulo) mostra que cerca de 40% dos casos se estende por um período de um a cinco anos.

Adolescentes que são molestados desde criança costumam carregar uma culpa enorme. Por isso, na maioria das vezes se calam. “A vítima não sabe diferenciar se é abuso ou se o afeto é assim mesmo”, diz Cláudio Cohen, psicanalista coordenador do CEARAS. Com o tempo, percebe a diferença, mas o medo e a vergonha fazem com que não denuncie.

As seqüelas desse tipo de abuso são imprevisíveis e independem do fato de ter ou não ter havido estupro. As vítimas costumam se tornar adultos com forte tendência à depressão e à baixa auto-estima. Têm problemas emocionais, dificuldades de estabelecer relacionamentos e são muito inseguras.

Conclui a matéria, feita por Andréia Pires, com a colaboração de Rossana Maurelli: “Freqüente, o abuso intrafamiliar não é fácil de diagnosticar, mas pode ser minimizado se professores, médicos e cada um de nós estiver atento aos sinais de sofrimento de uma criança. A omissão, nesses casos, infelizmente, é comum. Um crime que é cúmplice da violência”.

O abuso sexual sempre deixa seqüelas. Se a ferida não for tratada, ela não cicatriza.

VII – Pedofilia

O I. º Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças, realizado em Estocolmo de 27 a 31 de agosto de 96, estabeleceu um plano de ação coordenador entre os diferentes países e os serviços policiais internacionais, contudo as questões de fundo sobre o significado e as causas da pedofilia permaneceram em aberto.

O abuso sexual de crianças pode acontecer dentro do quadro familiar, no âmbito comunitário ou de forma internacional.

As conseqüências na infância são: insucesso escolar, perturbações do comportamento, fobias em relação à sexualidade, sexualização das relações (perversões, precocidade sexual). Na adolescência: dificuldades na identidade feminina, rejeição da imagem corporal, estado depressivo grave, perturbações alimentares (anorexia), delinqüência, prostituição e outras.

Por vezes, as más condições da vida familiar levam a criança desamparada a vagar pelas ruas à procura do pai ou da mãe imaginários, acabando por encontrá-los, dramaticamente, na pessoa do pedófilo. O ato dessas pessoas inesperadas deixa cicatrizes profundas na alma da criança sob a forma de culpa e de angústia.

A luta contra a violência sexual com as crianças passa necessariamente pela resposta a duas grandes questões:

1.                  Qual o lugar da criança na sociedade?

2.                  Qual a atitude dos adultos em relação às crianças?

Há duas maneiras de conviver no mundo com as crianças: criança como sujeito ou criança como objeto. A atitude do adulto pode comprometer seriamente a relação da criança consigo mesma, com o mundo e com os outros.

VIII – Prostituição e Gênero

No que diz respeito à relação de gênero e prostituição, a pedagoga Josefa Brendía Gómez (Pepita), do Centro Ecumênico de Serviço à Evangelização e Educação (Cesep), em entrevista à revista “Mulher Libertação” (Nov. /Dez. 97), coloca que a prostituição é um negócio que envolve muitos interesses. É o produto de uma concepção da sexualidade patriarcal que coloca os homens como sujeitos da mesma. No negócio da prostituição, a mulher é a peça mais frágil e responsabilizada. A trajetória de mulheres pobres prostituídas é uma trajetória de violência familiar.

De acordo com algumas pesquisas, a menina se prostitui depois de ter sido violentada, dentro de casa, pelo padrasto ou pelo próprio pai. Isso gera uma visão negativa do próprio corpo e uma carência afetiva. Há uma cadeia de responsabilidades que ficam ocultas quando a mulher é vista como a única responsável, a sem-vergonha. Assim, fica oculto o sistema que leva à marginalidade. Nesse sentido, a ação de apoio deveria se realizar no sentido das mulheres se fortalecerem, aumentando a sua auto-estima e a sua consciência, para que elas se reconheçam dentro de sua própria história. E esta é sempre carregada de culpa.

Conforme trabalho do Serviço à Mulher Marginalizada, muitos homens exercem sua sexualidade à custa da exploração e dominação de mulheres, meninas e meninos, fundamentando-se em premissas patriarcais: a crença de que o seu impulso sexual é incontrolável e requer desafogo. É parte desta mesma cultura patriarcal, que considera que a mulher é inferior ao homem e que sua sexualidade tem que estar a ser- viço do homem, a repetida frase: “a prostituição é a profissão mais antiga do mundo”.

IX – A mulher prostituída e a literatura

Em 1957, Cecília Meireles compôs o Oratório de Santa Maria Egipcíaca, espécie de poema coral, base provável para uma partitura, de fato composta em 1959 pelo compositor alemão Ernst Widmer. O poema revela uma continuidade no aproveitamento poético das narrativas cristãs medievais em sua obra. É baseado na lenda da pecadora arrependida de Alexandria, que, após uma vida de dissolução, decide partir em peregrinação expiatória até Jerusalém, e, no meio do caminho, paga a sua travessia com o próprio corpo.

Um certo abade, chamado Zósimo, havendo atravessado o Jordão, buscava ver se encontrava algum santo padre nesse deserto. Reparou numa criatura toda nua, o corpo negro e queimado pelo sol, e era Maria Egipcíaca. Assim que o viu, ela tentou se esconder, mas Zósimo a perseguiu correndo velozmente; ela lhe disse então: “Zósimo, por que me persegues? Perdoa-me, porque eu não ouso me mostrar a ti nem te fitar de frente, pois estou toda nua, mas dá-me teu manto para eu me cobrir e poder te olhar sem envergonhar-me”.Quando ele ouviu seu nome, foi tomado de surpresa e deu seu manto.

Contou-lhe que nascera do Egito e que, com doze anos, chegara a Alexandria, onde, por dezessete anos, não recusara a homem algum. Desejando ir a Jerusalém, para adorar a verdadeira cruz, pagou com seu corpo, aos marinheiros, a travessia. Chegando a Jerusalém, não conseguiu entrar na igreja, detendo-se na porta. Recolheu-se, pensou nos inúmeros pecados, chorou por eles e castigou o corpo com as mãos. No portal de uma igreja, viu a imagem da Virgem Maria e suplicou-lhe que a perdoasse, podendo adorar a verdadeira Cruz. Conseguiu entrar. Após haver adorado a Cruz, um homem lhe deu três moedas, com as quais comprou três pães. Ouviu então uma voz que dizia assim: “Se atravessas o Jordão, serás salva”. Atravessou, veio para o deserto, onde Zósimo a encontrou. Ali estava há quarenta e sete anos. Os três pães endureceram e lhe eram suficientes. Pediu-lhe a bênção e que na Páscoa trouxesse a Eucaristia.

O velho voltou ao seu mosteiro e, no ano seguinte, ao se aproximar o dia da Páscoa, tomou o corpo de Nosso Senhor e foi até a borda do rio. Percebeu que a mulher estava na outra margem. Ela fez o sinal-da-cruz e veio sobre a água ao deserto. No ano seguinte, ele voltou ao mesmo lugar e a encontrou morta. Disse a si próprio: “De bom grado a enterraria, se não temesse desagradá-la”. E enquanto refletia nisso, viu ao lado da cabeça da santa um escrito que continha estas palavras: “Zósimo, enterra o corpo de Maria, devolve o seu pó a terra, e roga por mim a Nosso Senhor, por ordem do qual abandonei este mundo no segundo dia das calendas de abril.” Havia morrido assim que comungara, no ano anterior. Enquanto o velho tentava cavar a terra, mas sem o conseguir, ele viu aproximar-se um leão muito plácido e lhe disse: “Esta santa me pediu que a enterrasse, e eu não posso cavar a terra, porque sou velho, e me faltam os instrumentos necessários. Tu, então, cava esta terra, arranha-a tanto que possamos enterrar o corpo santo.” E o leão começou logo a cavar e fez uma cova suficiente; e quando o corpo ali foi deposto, ele se retirou tão pacífico como um cordeiro.

Segundo Alexei Bueno, crítico literário, a primeira reformulação poética desta lenda é de Manuel Bandeira, incluída no seu livro “Ritmo Dissoluto”, de 1924:

Balada de Santa Maria Egipcíaca

Santa Maria Egipcíaca seguia

Em peregrinação à terra do Senhor.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir...

Santa Maria Egipcíaca chegou

À beira de um grande rio.

Era tão longe a outra margem!

E estava junto à ribanceira,

Num barco,

Um homem de olhar duro.

Santa Maria Egipcíaca rogou:

Leva-me à outra parte do rio.

Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.

O homem duro fitou-a sem dó.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir...

-Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.

Leva-me à outra parte.

O homem duro escarneceu: - Não tens dinheiro,

Mulher, mas tens corpo. Dá-me o teu corpo, e vou levar-te.

E fez um gesto. E a santa sorriu,

Na graça divina, ao gesto que ele fez.

Santa Maria Egipcíaca despiu

O manto, e entregou ao barqueiro

A santidade de sua nudez.

Mais de trinta anos depois, o mesmo tema reaparecia pelas mãos de Cecília Meireles e Rachel de Queiroz. Em 1958, Rachel de Queiroz publicou a peça “A beata Maria do Egito”, transposição para o ambiente nordestino da lenda medieval.

Com o “Oratório de Santa Maria Egipcíaca”, Cecília Meireles encerra a trilogia iniciada pelo “Pequeno Oratório de Santa Clara” (1955) e pelo “Romance de Santa Cecília” (1957).

De acordo com Bueno, o que impressiona Cecília é a santidade de Maria Egipcíaca. “Sem martírio, sem milagres, sem coisas extraordinárias a não ser a sua levitação sobre as águas, o leão final que lhe abre a cova no deserto e a cobre de terra, ela é a penitente. Seu problema é “interior”, seu “martírio”, seu “milagre” como sua glória decorrem nesse tempo oculto da alma, esse lugar oculto. A “voz” que no poema parece uma advertência divina pode ser o seu próprio instinto de santidade em luta com circunstâncias que lhe impõem um comportamento contraditório. E quando a pecadora Maria acorda energicamente para uma vida nova, acorda “por si mesma”, por sentir seus passos pesados e sua voz indigna.

Foi dentro dessa perspectiva, pois, que o poema se formou. Se ele por si não o deixa claro, a autora gostaria de acentuar aqui a sua intenção: o processo de transformação da pecadora. A clareza da sua consciência no Mal e no Bem. Sob o nítido céu do Egito, quase se vê desenhada como um triângulo essa vida singular, límpida e geométrica na sua edificação. Talvez mesmo o ápice desse triângulo não esteja no deserto, onde a penitência desliza em miragens de um passado que se desmoronou com certa felicidade melancólica. Talvez o ápice esteja na Terra Santa, na irrecusável conversão.”

Bueno comenta, neste estudo, que o sonho de adolescente de Cecília Meireles foi escrever um Oratório do Apóstolo São Paulo. Talvez a autora, portanto, ao escrever sobre Maria Egipcíaca, associe a sua conversão ao instante análogo na vida de São Paulo.

O poema:

Senhor, Senhor, Senhor, eu sou Maria,

aquela do porto de Alexandria,

que deste menina vivo dedicada

a amar quem passa pela cidade.

Como posso cantar para a Eternidade,

se minha vida é só para breves instantes?

E como poderei amar a Divindade

se apenas mortais têm sido os meus amantes?

Senhor, eu não sou romeira nem peregrina,

eu sou a que fugiu de casa, quando era menina,

a que era tão leve, tão bela e graciosa.

que nem a palmeira, que nem a brisa, que nem a rosa.

Cora Coralina escreveu o poema “Mulher da vida, minha irmã”, do qual transcrevo alguns versos:

De todos os tempos

De todos os povos

De todas as latitudes

Ela vem do fundo imemorial das idades

E carrega a carga pesada

Dos mais torpes sinônimos

Apelidos e apodos:

Mulher da zona

Mulher da rua

Mulher perdida

Mulher à-toa.

Pisadas, espezinhadas, ameaçadas,

Desprotegidas e exploradas

Ignoradas da lei, da justiça e do direito

Necessárias fisiologicamente

Indestrutíveis

Sobreviventes

Possuídas e infamadas sempre

Por aqueles que um dia

As lançaram na vida.

Mulher da vida

Minha irmã.

Marcadas, contaminadas

Escorchadas, discriminadas

Flor sombria, sementeira espinhal

Gerada nos viveiros da miséria

Da pobreza e do abandono

Enraizada em todos os quadrantes da terra

Na fragilidade de sua carne maculada

Esbarra às exigências impiedosas do macho.

Sem cobertura das leis

E sem proteção legal

Ela atravessa a vida ultrajada

E imprescindível, pisoteada, explorada

Nem a sociedade dispensa

Nem lhe reclama os direitos

Nem lhe dá proteção.

Mário Quintana escreve em versos uma “Pequena crônica policial”:

Jazia no chão, sem vida,

E estava toda pintada!

Nem a morte lhe emprestara

A sua grave beleza...

Com fria curiosidade,

Vinha gente espiar-lhe a cara,

As fundas marcas da idade,

Das canseiras, da bebida...

Triste da mulher perdida

Que um marinheiro esfaqueara!

Vieram uns homens de branco,

Foi levada ao necrotério.

E quando abriam, na mesa,

O seu corpo sem mistério,

Que linda e alegre menina

Entrou correndo no Céu?!

Lá continuou como era

Antes que o mundo lhe desse

A sua maldita sina:

Sem nada saber da vida,

De vícios ou de perigos,

Sem nada saber de nada...

Com a sua trança comprida,

Os seus sonhos de menina,

Os seus sapatos antigos!

De Ipatinga, Jorge Pousada escreveu sua homenagem à mulher prostituída:

Vem, mulher, vem sempre

Vem, mulher, com teus olhos

Vaga-lumes na noite.

Vem, mulher, com teus peitos,

Nascendo nos tecidos da vida.

Vem, mulher, com tua força,

Molhada pelos oceanos do mundo.

Vem, mulher, com tua dignidade,

Que não quer festa de um dia.

Vem, mulher, com tua vontade,

Abrindo caminho de respeito

Que cresceu contigo,

Para fazer da tua luta

Um cântico permanente

Para todos os dias.

Vem, mulher, vem sempre...

X – Perspectiva cristã

No episódio da mulher adúltera ( Jo 8, 1-11), Santo Agostinho reflete que Jesus não viola a Lei e, ao mesmo tempo, não quer que se perca o que Ele estava a buscar, porque tinha vindo para salvar o que estava perdido. Como podem cumprir a Lei e castigar aquela mulher uns pecadores? Vejam-se cada um a si mesmo, entre no seu interior e ponha-se na presença do tribunal do seu coração e de sua consciência e ver-se-á obrigado a confessar-se pecador.

Apenas dois ficam ali: a miserável e a Misericórdia. O Senhor crava o dardo da Sua justiça no coração dos judeus e, fazendo com que reconheçam os seus pecados, torna-os mais humanos. E condena o pecado da mulher, mas não a mulher, ao dizer “Vai e doravante não tornes a pecar”. Propõe-lhe um caminho novo.

Jesus, que é o Justo, não condena; ao contrário, aqueles, que são pecadores, ditam sentença de morte.

Isaías de Gaza apresenta a seguinte reflexão: “Julgar-se primeiramente a si mesmo produz humildade. Julga-te a ti mesmo, isso te produzirá humildade. Renuncia com humildade à tua própria vontade diante do teu próximo. Não julgar é ter caridade, e ser indulgente consiste em não pensar nada mau contra o teu próximo”.

No Antigo Testamento, no Livro de Josué (2,14. 6,22), encontramos: E os homens disseram-lhe: A nossa vida responderá pela vossa, se denunciardes a nossa missão; e quando Josué nos der a terra, usaremos de misericórdia e fidelidade para contigo. E ainda: Josué disse aos dois homens que haviam espionado a terra: “Entrai na casa da meretriz e fazei essa mulher sair de lá com tudo que lhe pertence, conforme lhe jurastes”.

De todo povo de Jericó, somente a meretriz Raab foi preservada, porque somente ela entendeu que aqueles homens eram enviados por Deus e os acolheu. Ser testemunha de Deus não quer dizer que somos perfeitos. Testemunha é aquele que experimenta a misericórdia de Deus.

E em Mateus 21, 31 – 32: “Em verdade vos digo que os publicanos e as meretrizes entram adiante de vós no Reino de Deus. Porque veio a vós João, no caminho da justiça, e não crestes nele. Os publicanos, porém, e as meretrizes creram nele. E vós, vendo isto, nem assim vos arrependestes depois, crendo nele”.

Jon Sobrino, de San Salvador, em reflexão sobre “A Igreja Samaritana e o Princípio da Misericórdia”, destaca que uma Igreja de verdade é, antes de tudo, uma Igreja que se parece com Jesus e o princípio mais forte da vida de Jesus é a misericórdia.

A misericórdia é uma reação diante do sofrimento, que chega às entranhas e ao coração. A misericórdia é uma reação diante do sofrimento alheio para erradicá-lo.

O princípio da misericórdia é sentar-se à mesa com os marginalizados. Quem exercita a misericórdia será salvo. Seremos julgados de acordo com a misericórdia.

Na origem do processo de salvação está a ação amorosa de Deus. Ele viu a opressão de seu povo no Egito, ouviu suas queixas contra os opressores, fixou-se em seus sofrimentos e os conduziu à libertação (Ex. 3). Deus escuta os clamores do povo que sofre e, por essa razão, decide empreender ação libertadora. A essa ação de amor chamamos de misericórdia.

A parábola do “Bom Samaritano” demonstra que ele é movido pela misericórdia e a misericórdia supõe, portanto, a disponibilidade de ser chamado Samaritano.

Por ser misericordioso, não por ser um liberal, Jesus antepõe o coração à observância do sábado ao homem de mão seca.

O exercício da misericórdia é que põe a Igreja fora de si mesma e em um lugar bem preciso: ali onde acontece o sofrimento humano, ali onde se escutam os clamores dos humanos.

Quando a Igreja sai de si mesmo para ir ao encontro dos que se encontram feridos, então ela se descentraliza realmente e, assim, se assemelha a Jesus Cristo. Deve oferecer aos pobres a esperança do Reino de Deus e lançá-los a construir esse Reino.

Praticar a misericórdia é, também, tocar os ídolos, os deuses esquecidos, que não estão superados, que seguem bem presentes, apesar de encobertos.

A Diocese de Jundiaí – SP - pronuncia-se também sobre o assunto. Para o Bispo Diocesano, Dom Amaury Castanho, a Pastoral da Mulher deve ser evangelizadora e libertadora, planejada e permanente, levando as mulheres prostituídas ao encontro consigo mesmas e com a própria dignidade explorada. Encontro com a Sociedade, com Deus e a Igreja. Dom Roberto Pinarello de Almeida, Bispo Emérito, comenta que “é a pastoral da paciência, da espera, do sorriso, da mão que se estende e que oferece. É a pastoral da fé e esperança nas energias escondidas dentro de um coração machucado e de uma vida crucificada. É a pastoral da inconformação diante das injustiças e da pior das escravidões, aquela que escravizando o corpo escraviza o espírito”. Lembra que Jesus disse à mulher: “Teus pecados estão perdoados... Tua fé te salvou. Vai em paz!” (Lc. 7, 48).

Para Mons. Joaquim Justino Carreira, primeiro padre na Diocese a trabalhar com as mulheres prostituídas, é necessário aprender com Cristo, o Bom Pastor, acolhendo e mesmo indo atrás da ovelha que está perdida, sozinha, que se sente desprezada, julgada, explorada, evitando julgamentos e amando, ou seja, fazendo o que é necessário para que todos se encontrem com a dignidade que só nos vem da parte de Deus. “Estejamos conscientes do quanto Deus nos ama e se, ao socorrermos a ovelha perdida e a colocarmos nos ombros, ela, sem entender, se rebelar e fizer escorrer sobre nós seus excrementos ou o pus de suas feridas, não desistamos e nem nos assustemos, pois o Bom Pastor dá a vida por suas ovelhas; o Bom Pastor preocupa-se com o bem das ovelhas e o mau pastor preocupa-se com o seu próprio bem”, diz ele.

Quanto ao trabalho de promoção social das mulheres, Mons. Carreira considera que ele surge como testemunho de um duplo amor: amor ao Mestre, de pés cobertos de beijos, na madrugada da Ressurreição, e amor fraterno que liberta do apedrejamento moral as criaturas atiradas no “trottoir” pela desventura da própria história ou segregadas do convívio pelo puritanismo preconceituoso.

Pe. Venilton Calheiros, pároco da Catedral Nossa Senhora do Desterro, é bastante claro: aquele que olha com descrença a irmã excluída, que traz em sua face o rosto desfigurado do Crucificado, não tem fé, pois não consegue enxergar, atrás da cruz, a luz da Ressurreição.

XI – O trabalho de inclusão

O frei franciscano Antônio Moser, doutor em teologia moral e diretor presidente da Vozes, em seu último livro: “O Enigma da Esfinge – A Sexualidade”, cujo tema central é o homossexualismo, tece considerações que são fundamentais para o convívio com qualquer grupo de excluídos:

“Venha, vamos caminhar juntos, olhar com os olhos do Cristo, vamos ver até onde podemos chegar. (...) Vamos aceitar as pessoas como são, como ponto de partida, não como ponto de chegada. (...) Independentemente do que mudar nessa travessia, elas deverão sempre ser recebidas por um espírito de acolhida e de compreensão.” E ainda: “ Aceitar a pessoa (...) como é significa ir ao encontro dela, disposto a mais ouvir do que falar, mais aprender do que ensinar. Nesse contexto convém ter claro que só ouve direito quem se liberta dos preconceitos; e só se liberta dos preconceitos quem é capaz de restituir a palavra ao silenciado.”

Na caminhada com as mulheres prostituídas, há dificuldades: de início, a dúvida de que alguém, sem segundas intenções, coloque-se ao seu lado. A reconstrução, a partir de tantas catástrofes, não é simples. O essencial, portanto, é fortalecê-la, no amor, para que, sentindo-se gente, recupere o direito ao livre arbítrio que lhe foi negado. Esse fortalecimento faz-se, prioritariamente, na iniciação da plenitude da vida cristã, a partir da reflexão sobre a Palavra de Deus. Apenas a Palavra pode libertar uma pessoa de suas desgraças. O tempo para esse fortalecimento e para essa libertação não é nosso, o tempo é de Deus: nós nos colocamos a serviço e a obra é dEle. Se desejarmos ver os frutos de nosso trabalho, estaremos apenas em busca de nós mesmos.

Aquele que se dispõe a trabalhar com mulheres prostituídas deve, inicialmente, ver-se, tirar todas as máscaras e reconhecer suas misérias. Todos nós somos capazes dos mesmos atos. Ninguém é bom, somente Deus é bom. Colocar-se em cima da calçada e de lá “observar” mulheres na sarjeta é o primeiro passo para fracassar na experiência da misericórdia, além de aumentar, nas excluídas, a dor da humilhação. Escandalizar-se é julgar e condenar o outro.

Li, em um dos exemplares do boletim “Mulher da vida, é preciso falar”, da Pastoral da Mulher de Lajes, o seguinte:

Agora é preciso

reiniciar com a mesma

paciência antiga.

Se não conseguirmos

o almejado, chegaremos

um dia diante de Deus

dizendo: “Eu não desisti,

tentei, tentei, tentei...”

Diocese de Jundiaí – SP

Iniciada, em 1982, a Pastoral da Mulher na Diocese de Jundiaí – SP, atua da seguinte maneira:

Evangelização

Proclamação da Palavra, reflexão, cânticos e oração, às quartas-feiras, das 18h30 às 20h00, em sala da Catedral Nossa Senhora do Desterro.

Promoção social

Através da ONG, Sociedade Maria de Mágdala, fundada em 1994, que administra duas escolas:

- Escola Maria de Mágdala I – Rua Senador Fonseca, 596.

Destinada às mulheres prostituídas e a outras mulheres ligadas a ela.

Cursos: artesanato, confecção, cabeleireiro, quitutes, alfabetização, projeto integral (preparação profissional para serviços domésticos em parceria com a Pastoral da Criança).

- Escola Maria de Mágdala II – Rua Senador Fonseca, 517.

Destinada a crianças e adolescentes, filhos das participantes da Escola I.

Cursos: reforço escolar, informática, dança, artesanato, natação (em parceria com a Escola Superior de Educação Física).

A ONG possui ainda, para manutenção das escolas (além da contribuição de empresários e de subvenção anual da Prefeitura Municipal), Sebo e Brechó.

Maiores informações pelo telefone: (11) 4522-4970 com Profa. Anna Aparecida Osti Geromel(Coord. Diocesana da Pastoral) ou Rosemary A. Gentil Ormenesi (Coord. Administrativa das Escolas). E-mail: mariademagdala@uol.com.br

XII – Conclusão

Para quem se sente chamado a trabalhar com mulheres prostituídas, a melhor preparação está no Hino à Caridade ( I Coríntios 13, 1 – 8. 13):

Ainda que eu falasse a línguas,

as dos homem e as dos anjos,

se eu não tivesse a caridade,

seria como um bronze que soa

ou como um címbalo que tine.

Ainda que eu tivesse o dom da profecia,

o conhecimento de todos os mistérios

e de toda a ciência,

ainda que eu tivesse toda a fé,

a ponto de transportar montanhas,

se não tivesse a caridade,

eu nada seria.

Ainda que eu distribuísse

todos os meus bens aos famintos,

ainda que entregasse

o meu corpo às chamas,

se não tivesse a caridade,

isso nada me adiantaria.

A caridade é paciente,

a caridade é prestativa,

não é invejosa, não se ostenta,

não se incha de orgulho.

Nada faz de inconveniente,

não procura o seu próprio interesse,

não se irrita, não guarda rancor.

Não se alegra com a injustiça,

mas se regozija com a verdade.

Tudo desculpa, tudo crê,

tudo espera, tudo suporta.

A caridade jamais passará.

Quanto às profecias, desaparecerão.

Quanto às línguas, cessarão.

Quanto à ciência, também desaparecerá.(...)

Agora, portanto, permanecem fé,

esperança, caridade,

estas três coisas.

A maior delas, porém, é a caridade.”

Resumindo um pouco a realidade da mulher prostituída em situação de pobreza, ousei escrever o rap, cuja letra segue abaixo, gravado pela cantora jundiaiense Clarina:

Guerreiras

Mulheres diversas, dispersas, perdidas,

No poste, no quarto, no vácuo sem vida,

Mulheres fantasmas, no giro da noite,

Na volta do brinco, na pedra que brilha,

A boca vermelha, os olhos de estrela,

Cabelos de sol, carícias vendidas,

Mulheres diversas, dispersas, perdidas,

De alcovas e açoites, a dama da noite.

Da terra e do porto,

Garimpo, naufrágio,

Que é Cinderela no cabaré.

Mulheres diversas, dispersas, perdidas,

Mulheres que são, que estão, que não ficam,

Mas levam no sonho um pouco de tudo.

Mulheres guerreiras, guerreiras do sangue

Tirado por dentro, entranhas profundas,

Do corpo e da alma, o pai, o padrasto,

O irmão, o vizinho, o amante, o bagaço.

Mulheres diversas, dispersas, perdidas.

Mulheres guerreiras em meio à miséria,

Meninas do nada, desfeitas de tudo.

No esgoto que escorre, um barco profundo.
Mulheres guerreiras, o pó e a pedra,

A cola e a fumaça adormecem a luta.

Relutam, insistem, não podem ficar.

Mulheres diversas, dispersas, perdidas,

Mulheres guerreiras, sem eira, nem beira.

Mulheres diversas, dispersas, perdidas,

Mulheres guerreiras, do corpo e da alma,

Ressuscitarão, ressuscitarão...

XIII – Bibliografia

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MULHER LIBERTAÇÃO (Boletim) – Ano XII – n. º 49 – Abril/ Maio/ Junho 97. São Paulo, SMM.

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SEVERINO, Francisca Eleodora Santos, 1993. “Memória da Morte, Memória da Exclusão”. São Paulo, Editora Letras & Letras.

VASCONCELLOS, Ana, 1991. “Educação pela vida. Uma experiência pedagógica”. Trabalho apresentado na Universidade de Amsterdã, Holanda.

VERARDO, Maria Tereza, REIS, Márcia S. Farah e VIEIRA, Rosângela Mendes, 1999 – “Meninas do Porto – Mitos e Realidade da Prostituição Infanto-Juvenil”. São Paulo, O Nome da Rosa Editora.



* Responsável, na Diocese de Jundiaí – SP, pela implantação de trabalho com mulheres prostituídas, a partir de 1982 ( Pastoral da Mulher e Sociedade Maria de Mágdala – Escolas Maria de Mágdala I e Maria de Mágdala II) e autora de “Nos Varais do Mundo/Submundo”, 2001- Edições Loyola.