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Aproximação à Obra Literária de
Santa Teresa de Jesus

 

 

María de la Concepción Piñero Valverde
(Livre-Docente FFLCHUSP)
concha@centrodeartes.com.br

 

As reflexões que se seguem procuraram servir de breve apresentação da obra literária de Santa Teresa de Jesus a um público de jovens estudantes universitários brasileiros. Não houve, portanto, a pretensão de desenvolver análise literária da obra teresiana e muito menos de apresentar toda a sua riqueza para a espiritualidade cristã. O que se buscou, somente, foi oferecer uma primeira visão da obra de uma extraordinária mulher que, apesar de universalmente conhecida como grande mística, é ainda pouco estudada como a grande escritora que também foi. Não que se oponham ambos os aspectos da experiência teresiana: pelo contrário, falar da escritora pressupõe fazer referências constantes à sua doutrina espiritual, como, por outro lado, falar da experiência mística de Teresa é entrar na linguagem literária que traduziu tal experiência. Podemos, pois, reconhecer desde já que o estudo de Teresa, a escritora, é inseparável do estudo de Teresa, a mística. Assim, ao concentrar a atenção na expressão literária teresiana, que é o que se pretende agora, espera-se oferecer elementos que permitam apreciar melhor também sua doutrina e espiritualidade.

Teresa de Jesus: mulher do século XVI que se expressou por meio de obra escrita. E obra escrita de grande valor literário. Por outras palavras, o que Teresa escreveu, além do valor religioso, tem valor estético. Teresa, como Agostinho e Pascal, está entre os autores espirituais que foram também grandes escritores, autores de textos lidos até mesmo por pessoas estranhas à prática religiosa.

Buscar as raízes da beleza que encontramos nas páginas teresianas é lembrar que Teresa de Cepeda e Ahumada nasce em Ávila, uma das mais belas cidades de Castela, rodeada de antigas e famosas muralhas. A paisagem da cidade natal lhe inspiraria, mais tarde, a nitidez das imagens de uma de suas maiores obras, as Moradas ou Castelo Interior. É precisamente como um castelo rodeado de muralhas que Teresa expressará o íntimo da vida humana, o lugar onde se dá o encontro com o divino.

Teresa desde o berço contemplou o belo à sua volta e também desde muito cedo começou a experimentar o fascínio da palavra poética. Palavra que conheceu, antes de mais nada, por meio de seus pais, cristãos fervorosos, que lhe fizeram familiar a dos salmos, dos cânticos, das parábolas evangélicas. As Escrituras Sagradas, as divinae litterae, foram, pois, a porta pela qual Teresa entrou no mundo da literatura.

Mas a Espanha renascentista do início do século XVI cultivava também com entusiasmo as humanae litterae. E o interesse de Teresa pela leitura foi despertado em sua própria família. O exemplo lhe vinha, em primeiro lugar, de seu pai, leitor apaixonado, que mantinha em casa uma rica biblioteca, onde ao lado das obras latinas não faltavam as obras em castelhano, em romance, para que todos pudessem lê-las. É Teresa mesma, em sua autobiografia, quem recorda a figura do pai entre os livros que guardava para os filhos: “Era mi padre aficionado a leer buenos libros y ansí los tenía de romance para que leyesen sus hijos” (Libro de la Vida, 1,1) [1] .

Não era só o pai de Santa Teresa que gostava de ler. Sua mãe tinha também o hábito da leitura. O que mais a entretinha eram obras que uniam história e fantasia, as novelas de cavalaria, tão populares nesse período e mais tarde imortalizadas por Cervantes. Foi assim que Teresa descobriu o mundo da literatura de ficção, e passou a se empolgar com as aventuras de guerreiros cristãos e mouros por suas terras e por terras estranhas. Mais uma vez, é ela própria quem nos conta isso, em sua autobiografia: “Era aficionada a libros de cavallerías [...] Yo comencé a quedarme en costumbre de leerlos [...] Era tan estremo lo que esto me embevía que, si no tenía libro nuevo, no me parece tenía contento" (Libro de la Vida, 2,1). Aliás, Teresa não se limitava a ler: teve a idéia de ser autora de uma novela de cavalaria. Chegou a começá-la, com a ajuda de seu irmão. Mas tudo não passou de uma brincadeira de criança, que não foi adiante.

Depois de adulta, Teresa percebeu os perigos da leitura desenfreada dessas novelas, que levariam à loucura o grande Quixote. Não se pode esquecer, porém, que a leitura dos livros de cavalaria ajudou a santa a formar o gosto pelas histórias bem escritas, cheias de lances surpreendentes e imprevistos, que prendem a atenção do leitor. Uma biógrafa contemporânea, Marcelle Auclair, a denomina “a dama errante de Deus”. E não é difícil reconhecer nas peripécias da reforma carmelita, contadas por Teresa no Libro de las Fundaciones, algo da vivacidade narrativa que ela aprendera a apreciar, na juventude, ao ler as histórias de cavaleiros andantes. Podemos também supor que algumas imagens nupciais da obra teresiana fossem recordações dos romances de cavalaria, dos famosos cavaleiros andantes apaixonados, como Dom Quixote por sua Dulcinéia.

Já se viu que a biblioteca do pai de Santa Teresa continha muitos “buenos libros”. Entre eles estariam, certamente, os livros de grandes escritores espirituais que foram também mestres da expressão literária, como Juan de Ávila e Luís de Granada. Nem faltariam outras obras espirituais de alta qualidade literária, como a Imitação de Cristo, atribuída a Tomás de Kempis. Certo é que, mais tarde, um tio de Teresa lhe fez conhecer o Tercer Abecedario, de Francisco de Osuna. Ela o diz no capítulo 4,6, do Libro de la Vida: “Me dio aquel tío mío [...] un libro; llámase ‘Tercer Abecedario’, que trata de enseñar oración de recogimiento”. Todos esses escritores ascéticos, repita-se, foram, antes de mais nada, estilistas formados nos clássicos latinos.

Com estes livros da biblioteca de seu pai, Teresa começou formar o gosto e o estilo. Note-se que seu pai punha os livros da biblioteca ao alcance de Teresa e seus irmãos: os livros lá estavam em castelhano, em romance justamente “para que leyesen sus hijos”. Por aqui se observa que o pai de Teresa não distinguia, neste aspecto, a instrução das filhas e dos filhos. Queria que todos tivessem acesso às mesmas leituras. Uma atitude que faz pensar ainda hoje, sobretudo se lembrarmos que, no tocante à difusão dos textos escritos, os tempos de Santa Teresa eram “recios”, como diz ela. Lembremos que em 1559, o Índice de livros proibidos, publicado pelo inquisidor Valdés, excluía vários livros sobre a vida espiritual, escritos em língua romance. Entre as obras proibidas estavam clássicos da doutrina espiritual, como os já citados Juan de Ávila e Luís de Granada. É verdade que nessa época Santa Teresa já havia saído da casa paterna, mas, como veremos, alguns livros que ela escreveu sofreram também dificuldades com a censura.

De qualquer forma, com as leituras feitas na biblioteca de casa, e com outras feitas mais tarde, Teresa foi adquirindo noções da arte de escrever, da retórica de seu tempo. Por outro lado, a proibição oficial de certos tratados religiosos parece ter tido, paradoxalmente, um feliz efeito literário: o de obrigar mais tarde Teresa a não se prender a essas lições, a buscar em si mesma formas mais livres de expressão de sua vida espiritual. Enfim, graças ao exemplo do pai, Teresa foi aprendendo também que, na expressão literária, como em outros aspectos da vida, homens e mulheres devem as mesmas oportunidades fundamentais. Foi aprendendo ainda que se ela própria, suas irmãs e sua mãe podiam ser tão boas leitoras quanto seu pai e seus irmãos, nada impediria que fossem também tão boas escritoras quanto os homens. Mais ainda: ninguém melhor que a mulher para se fazer entender de um público de leitoras. Diz Teresa: “mijor se entienden el lenguaje unas mujeres de otras” (Moradas, prólogo, 5).

É, aliás, importante ressaltar desde já que os momentos cruciais da vida espiritual de Santa Teresa estão unidos aos livros. Ela mesma nos conta que foi por meio da leitura que deu os primeiros passos em sua caminhada espiritual: "Dióme la vida haver quedado ya amiga de buenos libros. Leía en las Epístolas de san Jerónimo [...]" (Libro de la Vida, 3,7). O Tercer Abecedario, de Francisco de Osuna, a fez entrar no caminho da oração mental. Em 1554, Teresa é uma das primeiras pessoas que tem em mãos a tradução das Confissões de Santo Agostinho. A partir de então é que ela inicia o que chama de sua “conversão”. A grande reforma do Carmelo também está moldada na leitura de um livro, o Livro da Instituição dos Primeiros Monges, atribuído a João, Patriarca de Jerusalém.

Ao longo de toda a vida no convento, Teresa conservou o costume de procurar a solução de suas dúvidas tanto em conselhos dados de viva voz, quanto na leitura de escritores espirituais. Ela nos conta o seguinte, por exemplo: "Mirando libros para ver si sabría decir la oración que tenía, hallé en uno que llaman ‘Subida del Monte’, en lo que toca a unión del alma com Dios, todas las señales que yo tenía" (Libro de la Vida, 23,12). O livro a que ela se refere é a Subida del Monte Sión, do franciscano Bernardino de Laredo. Aliás, mesmo quando recebia conselhos de viva voz, Teresa não deixava de notar que seus conselheiros também escreviam livros. Assim, por exemplo, falando de um franciscano que mais tarde seria São Pedro de Alcântara, Teresa diz o seguinte: "Es autor de unos libros pequeños de oración, que ahora se tratan mucho, de romance [...]" (Libro de la Vida, 30,2).

Ao primeiro aprendizado de leitura vieram somar-se outros: Teresa aprendeu a expressar-se também com os confessores, com os letrados e, em especial, com os pregadores. É sabido que na Europa daquela época a pregação era um dos principais espaços da arte retórica. A importância de todo esse aprendizado se revelou anos mais tarde, quando Santa Teresa precisou escrever. Digo que precisou escrever, porque, depois da tentativa infantil de criar uma novela de cavalaria, não voltou a pensar em ser escritora. A grande obra de sua vida foi, como se sabe, a reforma do Carmelo. Mas, como também se sabe, foram justamente as polêmicas provocadas por essa reforma que levaram os superiores eclesiásticos a mandar que Teresa escrevesse, a fim de conhecer-lhe melhor os propósitos. Assim, Teresa começou a redigir sua vida por obrigação.

A redação do Libro de la Vida ocorreu em um momento de dificuldades extremas para a reforma, e a obrigação de escrever não podia ser imposta em ocasião mais desfavorável. Apesar disso, à medida que o tempo passa, Teresa vai-se identificando mais e mais com a expressão escrita. Para ela, escrever é ato de obediência, mas é também ocasião de enxergar a si mesma com mais clareza e de comunicar a outros os dons que recebera. A necessidade de escrever vai-se tornando imperiosa, “apremiante”, tanto que ela chega a dizer: “¡Ojalá pudiera yo escrivir con muchas manos para que unas por otras no se olvidaran!” (Camino de Perfección, 34,4).

Isto não quer dizer que a redação de seus escritos fosse prioritária. Pelo contrário, Teresa muitas vezes tinha de deixar de lado a pena para cuidar de outras obrigações, ainda mais urgentes. Nenhum texto a impediria de dar atenção às pessoas com quem convivia. Assim, foi entrecortada de interrupções a redação do Camino de Perfección e das Moradas. Estas interrupções se refletiram em variações no modo de escrever e em certa diversidade de estilo. Pois seus escritos nasciam da efusão interior e por isso sofriam a influência de cada momento. Além disso, com o passar do tempo o número de seus leitores foi aumentando; seus interlocutores podiam mudar ao longo de um mesmo livro. Diz a Santa: “como la cabeza no está para tornarlo a leer, todo deve ir desbaratado, y por ventura dicho algunas cosas dos veces: Como es para mis hermanas, poco va en ello”(Moradas, V,4,1)

Apesar de obrigada a escrever em momentos difíceis, Teresa, como vimos, soube valorizar o ato de escrever. E isto, digamos de passagem, cria uma dificuldade para a apreciação literária de Santa Teresa. Pois quem busca somente sua doutrina espiritual ou dados de sua biografia poderá valer-se das muitas traduções de suas obras. Mas o interessado em conhecê-la como escritora terá de ler seus textos no original ou em tradução que tenha valor literário, o que nem sempre é fácil de achar. Mesmo ao leitor de língua portuguesa, que enfrenta em muito menor grau este problema, certo cuidado se impõe: uma coisa é apreciar o relato biográfico ou as lições espirituais do texto teresiano, e outra coisa é apreciar toda a sua beleza e finura de expressão. Com esta advertência, falemos então brevemente do conjunto de seus escritos literários.

Todas as obras mais conhecidas e citadas de Santa Teresa foram escritas em prosa. Mas é preciso lembrar que ela nos deixou também cerca de trinta poesias. Era costume do Carmelo celebrar com versos as festas religiosas ou a entrada de uma nova irmã, por exemplo. Por isso, nem sempre é possível saber se a autora de uma poesia foi Santa Teresa ou alguma de suas irmãs religiosas. Apesar disso, há um bom número de poesias que certamente foram escritas por ela.

O tema das poesias teresianas às vezes é a experiência mística da autora. É o que ocorre, por exemplo, na poesia intitulada Vivo sin vivir en mí. Outras vezes o tema é a alegria da convivência com as irmãs carmelitas, como na composição intitulada Ah, pastores que veláis. Quanto à estrutura das composições poéticas, Teresa adotou soluções já tradicionais na literatura castelhana. Ou seja, uniu estrofes de tipo popular (villancicos, romances) e estrofes de tipo erudito, empregadas pelos poetas dos cancioneiros. Nos versos de Santa Teresa é característica a chamada vuelta a lo divino, quer dizer, a “divinização” ou “sacralização” de alguns temas e imagens. Assim, muitas imagens correntes na linguagem dos cancioneiros amorosos, na poesia de Teresa se tornam símbolos da vida espiritual. Por exemplo, as imagens da caçada, da morte por amor, da oposição entre amor e morte. Algumas dessas imagens derivam também do livro bíblico Cântico dos Cânticos, atribuído a Salomão, onde o amor humano se torna expressão do amor divino. Esse livro bíblico foi muito valorizado desde o século XV pela devotio moderna, que ressaltava a relação pessoal entre a criatura e o Criador. A devotio moderna e sua leitura do Cântico salomônico estiveram presentes desde cedo na Península Ibérica e deixaram marcas não só na obra teresiana, mas na de São João da Cruz e na de outros místicos espanhóis. Aliás, Teresa dedicou toda uma obra ao comentário desse livro bíblico, obra intitulada Meditaciones sobre los Cantares.

Este comentário, porém, foi redigido em prosa, tal como todos os escritos mais conhecidos de Santa Teresa. Escritos que os críticos costumam classificar em duas grandes seções: textos autobiográficos (como a Vida) e textos ascético-místicos (como as Meditaciones, há pouco citadas). A classificação pode ser útil, mas não deve ser tomada com rigidez. De fato, nos escritos autobiográficos não faltam relatos de experiência mística, assim como nos escritos espirituais não faltam importantes informações sobre sua vida. De qualquer modo, a produção literária de Santa Teresa se desenvolve de 1560 a 1582, isto é, na segunda parte de sua vida, quando a Santa já havia alcançado a experiência mística. Entre seus primeiros escritos, as Relaciones, ou contas de consciência aos confessores, e sua obra-prima, as Moradas, o amadureci-mento literário se dá em tempo relativamente curto.

Ao longo deste amadurecimento da exercitação literária, a principal dificuldade com que se defrontava Teresa (e isto vale também para outros escritores místicos, e para seus críticos) era a de traduzir verbalmente um mistério que vai muito além das palavras. O escritor místico percebe que o vocabulário comum é inadequado para a experiência que quer transmitir. Por isso é que recorre a comparações, fala por analogia e emprega uma linguagem rica em símbolos, sempre muito próxima da poesia. Em Santa Teresa há uma consciência muito clara da dificuldade de traduzir em palavras a experiência mística. Para ela, isto já é uma graça de Deus. Vamos ouvir o que ela diz a esse respeito: “porque una merced es dar el Señor la merced, y otra es entender qué merced es y qué gracia; otra es saber decirla y dar a entender cómo es” (Libro de la Vida, 17,5). “Saber decir”, “saber dar a entender”, “después de haberlo entendido” são expressões que encontramos inúmeras vezes nos escritos teresianos. A consciência da dificuldade e o desejo de se comunicar com todos a levam a buscar elementos para se fazer entender: por isso é que ela recorre a tamanha variedade de comparações. Por isso também é que ela vai escolhendo os termos mais expressivos, para tentar explicar o que quer dizer. É o que se nota em seus grandes escritos.

Em nossos dias, os críticos que estudam Santa Teresa como escritora têm dado atenção particular aos seus escritos ditos autobiográficos. O núcleo desses escritos é formado pelo Libro de la Vida, pelo Libro de las Fundaciones e pelas Cartas. Nesse conjunto podemos ressaltar a já lembrada autobiografia, cuja redação definitiva remonta a 1565.

A Vida é uma obra fundamental para o conhecimento da formação pessoal da autora, de seu crescimento humano. Já foram aqui citadas páginas dessa autobiografia, em que Teresa faz referência a seu amor pela leitura. Não lhe faltaram, pois, modelos literários que a auxiliassem na redação do Libro de la Vida. A crítica tem lembrado sobretudo as Confissões de Santo Agostinho. Aliás, Teresa mesma declara que, nos primeiros tempos de sua vida no convento, leu com entusiasmo a autobiografia agostiniana. Diz ela: "En este tiempo me dieron las ‘Confesiones’ de san Agustín, que parece el Señor lo ordenó, porque yo no las procuré, ni nunca las havía visto. Yo soy muy aficionada a san Agustín" (Libro de la Vida, 9,7). Por isso, é natural que Teresa se tenha lembrado do texto agostiniano até mesmo como modelo literário para sua autobiografia. E, de fato, há coincidências nas duas autobiografias. Por exemplo, nas Confissões Agostinho se dirige a Deus, louvando-o e pedindo-lhe perdão pelos acontecimentos de sua vida. Também Teresa, desde as primeiras páginas de sua autobiografia se dirige ao Senhor, com inúmeras exclamações de louvor ou de pesar. Por exemplo, logo no início: "¡Oh Señor mío!: pues parece tenéis determinado que me salve, plega a Vuestra Majestad sea ansí [...]" (Libro de la Vida, 1,8). E já no final: "¿Cómo se sufre, Dios mío, cómo se compadece tan gran favor y merced a quien tan mal os lo ha merecido?" (Libro de la Vida, 40,4). Por outro lado, como já se disse, as circunstâncias urgentes em que escrevia e a dificuldade de acesso imediato aos livros espirituais acabaram por levâ-la a procurar, para além do que assimilara de anteriores leituras, sua própria forma de expressão.

O tecido literário da autobiografia teresiana se constitui de metáforas, alegorias e símiles. Característico é o gosto das imagens tomadas da vida quotidiana. Escrevendo assim, Teresa transmite todo o encanto da experiência concreta, mesmo em páginas que tratam de temas espirituais. Entre as imagens que traduzem a vida espiritual, muito conhecida, é a seguinte: “Ha de hacer cuenta el que comienza [en la vida espiritual], que comienza a hacer un huerto en tierra muy infructuosa que lleva muy malas hiervas, para que se deleite el Señor. Su Majestad arranca las malas hiervas y ha de plantar las buenas. Pues [...] con ayuda de Dios hemos de procurar, como buenos hortelanos, que crezcan estas plantas y tener cuidado de regarlas para que no se pierdan, sino que vengan a echar flores que den de sí gran olor, para dar recreación a este Señor nuestro, y ansí se venga a deleitar muchas veces a esta huerta y a holgarse entre estas virtudes" (Libro de la Vida, 9,6).

Na Vida a natureza é descrita como caminho para Deus. Este contacto e recurso à natureza dá à obra um enorme realismo. Porque não se trata da natureza idealizada, mas das coisas imediatas, objetivas. Não é uma escritura abstrata e desligada da realidade. Seus símbolos estão tomados do quotidiano, do compreensível para todo leitor. O horto, a nora, a água, as flores... são símbolos usuais para expressar altos estados de oração. Lembremos que para descrevê-los, Santa Teresa recorre aos diferentes modos de regar o horto: desde tirar a água do poço com um balde, procedimento penoso, até a chuva repousada que molha tudo por igual e sem trabalho, passando pelo rego de nora, rio ou fonte.

O realismo teresiano permanece mesmo quando se descreve algo tão difícil e, em certo modo, abstrato, como é a oração mental. Para explicar o que é esta oração, Teresa se vale da imagem de uma conversa entre amigos: “que no es otra cosa oración mental, a mi parecer, sino tratar de amistad, estando muchas veces tratando a solas con quien sabemos nos ama” (Libro de la Vida, 8,5). Reencontramos aqui, na prosa teresiana, o que já se havia visto na poesia, ou seja, que o amor humano é o caminho para falar da experiência do amor divino. A mesma analogia se acha, por exemplo, nos séculos XIII e XIV, com escritores espirituais do norte da Europa, como o mestre Eckart e seus sucessores, Suso e Tauler, todos alemães, além do flamengo Ruysbroeck. Imagens de amor esponsal, fogo, sangue se notam ainda, por exemplo, nos escritos místicos de Santa Catarina de Sena, na Itália do século XIV. Algumas dessas lições passaram à Península Ibérica, mas a crítica entende que foi na Espanha do século XVI que a literatura mística encontrou seus clássicos, principalmente com São João da Cruz e Santa Teresa.

São páginas assim que tornaram clássica a autobiografia teresiana. E não vamos esquecer outros episódios famosos, tirados do quotidiano. Entre eles, o da fuga de Teresa, ainda menina, em companhia de seu irmão. Os dois queriam ir à terra dos mouros, anunciar o Evangelho, mesmo à custa de se tornarem mártires. Mas pouco depois de saírem de casa, um tio dos fugitivos recolhe os dois e os leva de volta para casa. Santa Teresa usa sempre uma linguagem muito natural e simples. Ela não aparece preocupada, quando escreve, com a frase culta, bem acabada, de efeitos elegantes. A linguagem da Santa, como dizia antes, é a de cada dia, a coloquial: viva, colorida, rápida, espontânea.

Muitas das características literárias da Vida se acham também em outra obra autobiográfica em prosa, o Libro de las Fundaciones. Neste livro Teresa nos faz a narrativa de suas peripécias por toda a Espanha, como fundadora de numerosos conventos de carmelitas descalças. Se a Vida está mais voltada para o desenvolvimento interior de Teresa, este outro se volta de preferência para sua obra externa, apresentando, por isso mesmo, particular relevância para o estudo da sociedade espanhola de seu tempo.

É importante para o estudo de Teresa como escritora o exame das numerosas cartas que ela mesma escreveu. São muitas, apesar de numerosas perdas. Algumas se perderam, porque os destinatários as destruíram, por medo de se comprometerem, quando a reforma teresiana sofria hostilidades até mesmo em certos meios religiosos. Mas as cartas que se conservam contém páginas de grande espontaneidade. O epistolário teresiano é notável pela beleza e pela graça, que nascem do linguajar fluente e das imagens concretas, ligadas ao quotidiano, que bem revelam o sentido prático da Santa.

Se nos voltarmos, agora, para os outros textos da prosa teresiana, os chamados textos ascético-místicos, encontraremos, como primeiro deles, o Camino de Perfección, que, como anuncia o título, é um tratado sobre a vida espiritual, destinado às carmelitas descalças. Do Camino subsistem duas versões. Uma, composta por volta de 1564, e outra, posterior, mais extensa. A primeira versão foi lida pelo censor, Padre García de Toledo, que riscou páginas inteiras e mudou termos que podiam parecer suspeitos aos inquisidores. Daí a necessidade para a Santa de reescrever a obra. A segunda versão foi muito divulgada em cópias manuscritas, algumas das quais contêm correções autógrafas de Teresa. Evidentemente, o estilo destas duas versões muda: a primeira versão preserva melhor o tom vivo, espontâneo com a que a autora se dirigia às suas irmãs, as primeiras carmelitas descalças, do convento de São José de Ávila; a segunda versão já tem um tom mais grave, mais doutrinal e perde em espontaneidade.

Obra-prima das mais conhecidas é a que se intitula Las Moradas o Castillo Interior, tratado destinado a auxiliar os que desejam aprender a oração. Logo que foi redigido, em 1577, um carmelita descalço amigo de Teresa, Jerónimo Gracián, cuidou de esconder a obra em Sevilha, para salvá-la de ser apreendida pela Inquisição, que dois anos antes havia recolhido a autobiografia de Teresa. O texto salvo foi depois publicado pelo grande poeta do século XVI, frei Luis de León, em sua edição das obras teresianas. Característica das Moradas é a variedade de destinatários, o que condiciona de modo decisivo seu estilo. Este vai mudando, segundo a pessoa a quem a escritora se dirige (por exemplo, aos cristãos todos, às carmelitas e ao próprio Deus). É notável que ao falar com Deus, o estilo de Teresa não perde as características de quem se dirige aos interlocutores visíveis: pelo contrário, torna-se muito mais afetivo. “Rey mío”, “Dios mío”, “Señor de mi alma”, “Padre y Criador mío”, são algumas expressões de Teresa, que poderiam formar uma lista inesgotável.

Mas a organização do texto das Moradas tem como chave o simbolismo do "castelo interior" ou castelo da alma. A figura do castelo era imagem antiga na tradição literária cristã, mas havia também sido usada, em tempos próximos de Teresa, por alguns autores que ela provavelmente leu na biblioteca de seu pai, como Bernardino de Laredo. A crítica vem lembrando, ainda, que a imagem do castelo é um dos símbolos da mística muçulmana: e nós sabemos a importância da presença muçulmana na cultura espanhola medieval. Mas não podemos esquecer também a importância dos castelos nas novelas de cavalaria, tão apreciadas por Teresa. Nem podemos esquecer o que já se disse, isto é, que Teresa cresceu vendo as célebres muralhas de Ávila, sua cidade natal. Provavelmente todas essas lembranças confluíram na criação da imagem literária do castelo teresiano. Seja qual for a origem dessa imagem, certo é que ela se tornou um dos recursos literários de maior êxito para explicar o processo da vida espiritual de interiorização e união. O castelo teresiano é esférico, formado por sete moradas concêntricas e “en el centro y mitad de todas éstas tiene la más principal, que es adonde pasan las cosas de mucho secreto entre Dios y el alma” (Moradas, I,1,3). Isso simboliza a caminhada mística, que parte, nas primeiras moradas, de uma fase de purificação e chega aos desposórios místicos nas últimas moradas.

Em todos os escritos de Santa Teresa, como já se havia dito, vemos refletir-se toda a sua vida espiritual e toda a sua vida de fundadora do Carmelo reformado. Mas, como já se disse também, essa obra não tem valor somente como documento histórico, biográfico ou espiritual. É uma obra importantíssima pelo valor literário, como havia percebido seu primeiro editor, o poeta frei Luis de León, já citado. Ele é quem louva a dicção castiça da Santa, chamando a atenção para a beleza da linguagem teresiana, uma beleza quase “caseira”. Isso acontece justamente porque Santa Teresa escrevia com propriedade e sem afetação a língua que havia aprendido desde menina.

Apesar desse reconhecimento inicial, o valor literário da obra teresiana acabou ofuscado por seu valor espiritual e foi ficando relativamente esquecido. Chegou mesmo a pesar sobre os escritos teresianos uma opinião um tanto sumária, segundo a qual os textos da Santa estariam redigidos em "estilo ermitaño", isto é, em estilo despojado e pobre, como o de um ermitão que apresentasse a mensagem espiritual em termos rudimentares. Este preconceito desmoronou há mais de um século, quando o grande crítico Menéndez Pidal chamou a atenção para um aspecto revolucionário da linguagem teresiana, ou seja: o desvio da norma, a ruptura com o vocabulário erudito geralmente empregado nos textos espirituais em sua época. A simplicidade do vocabulário, segundo o crítico, longe de mostrar pobreza da escritora indicava seu desejo de expressar com liberdade sua experiência pessoal, sem se vincular à terminologia abstrata. Teresa revaloriza, com um novo sentido, termos comuns que estavam desgastados no vocabulário convencional. Além disso, já vimos que o estilo teresiano é rico em alegorias, comparações e símbolos, é o caso do castelo interior, imagens cuja beleza traduz a experiência pessoal da escritora. É preciso notar ainda que os escritos de Santa Teresa estão muitas vezes marcados por emendas e correções que ela mesma fazia, o que revela seu cuidado em escrever de modo claro e apropriado.

Nestes últimos anos, percebeu-se afinal toda a importância da obra literária teresiana. Para a crítica recente, o que é autenticamente original na literatura de Santa Teresa é a liberdade de expressão. Na literatura espiritual anterior, partia-se de um sistema de princípios, que em um segundo momento era aplicado à situação individual. Teresa de Jesus inverte esse processo. Ela parte não de princípios abstratos, mas de um fato da sua experiência, que se esforça por entender e expressar. Assim ela se afasta das teorias dos letrados e inaugura, na espiritualidade européia, a modernidade renascentista.

Mas já é tempo de ir concluindo estas reflexões. Como eu disse de início, nosso assunto era Santa Teresa escritora. A grandeza mística de Santa Teresa e sua importância para a história da Igreja já vinham sendo reconhecidas há muito tempo. Mas em nossos dias, quando se valoriza a contribuição feminina para todas as artes e ciências, mais do que nunca os estudiosos se têm voltado para Teresa como escritora. Ou seja, como mulher que soube criar beleza através de seus escritos. Em conclusão, no momento em que se redescobre a presença feminina na literatura, pode-se, com boas razões, falar em redescoberta literária de Santa Teresa.



[1] Os textos teresianos aqui citados seguem esta edição: Santa Teresa de Jesús, Obras Completas, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1962.