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É possível a criança filosofar?
Dora Incontri
Pós-doutoranda FEUSP
Apoio Fapesp
Alessandro César Bigheto
Mestrando FE- Unicamp
A filosofia e as crianças
Este artigo pretende discutir um problema que têm atraído a atenção de educadores e filósofos: a criança é capaz de filosofar? Certo que a filosofia contribui para se pensar a infância. Mas será que os filósofos e os educadores estão dispostos a considerar o potencial filosófico das crianças? A resposta não é simples, porque como nos mostra Garetth Matthews, as correntes tradicionais do pensamento filosófico e psicológico dizem que isso não é possível, pois a criança ainda não estaria de posse do instrumental cognitivo necessário à abstração filosófica.
A questão tem mais ou menos 2500 anos de história. Na tradição filosófica, somente homens adultos praticavam a filosofia, e ainda assim, nem todos os homens. Max Scheler, fazendo referência a Platão, diz que “as massas nunca serão filósofas” (SCHELER, 1986:7). A filosofia, como ramo do conhecimento ocidental, permaneceu historicamente influenciada por esse pensamento. Acreditava-se que nem mesmo as mulheres tinham competência para dominar o pensamento filosófico. Santo Agostinho, ao elogiar sua própria mãe, que participava de um diálogo filosófico com ele e outros homens, revela a idéia da época: “…esquecidos inteiramente do seu sexo, pensamos que algum grande homem se encontrava sentado conosco”. (SANTO AGOSTINHO, 1988:41) As mulheres só conseguem franquear essa fronteira no final do século XIX.
Não só se viu sempre restrição para se filosofar, como se criaram barreiras para o acesso à filosofia, sobretudo pela linguagem especializada. Segundo Max Scheler, a filosofia pertence e sempre pertenceu a uma elite que se reúne em torno da personalidade de um pensador. Em 1835, o poeta e pensador Heinrich Heine já denunciava o elistismo de muitos filósofos, recomendando que quando lessem sua obra fizessem
“o obséquio de considerar que o pouco que digo é expresso de modo bem claro e distinto, ao passo que, por mais profundas, (…) e por mais penetrantes, (…) que sejam suas obras, são ainda assim, incompreensíveis. De que servem os celeiros fechados, se o povo não lhes tem as chaves? O povo tem fome de saber e me agradece o pequeno pedaço de pão espiritual que com ele honestamente partilho.” (HEINE, 1991:19)
Atualmente, as restrições são menores, apesar dos que alegam que a filosofia não é coisa simples, pois para se fazer filosofia no sentido acadêmico e profissional é preciso adentrar um universo complexo e cheio de termos técnicos e conhecer as várias tradições e sistemas de pensamento. Os argumentos do filósofo devem ser difíceis e sofisticados. Nesses termos, a filosofia é de fato para poucos iniciados, que só poderão filosofar, após um longo e trabalhoso processo de estudos e acúmulo cultural. Ao invés, segundo Bochenski, a filosofia é um assunto que não interessa apenas a especialistas e profissionais, porque todos os seres humanos em alguma circustância da vida filosofam. Estamos obrigados a filosofar. William James, entendendo também que filosofar é próprio do ser humano racional, explica que todos os seres humanos se defrontam com perguntas como: O que você pensa de si mesmo? O que você pensa do mundo? São enigmas da esfinge e, de uma forma ou de outra, precisamos lidar com eles, diz James.
Gadotti, citando Gramsci, também critica o elistismo filosófico, pois é mais importante que os seres humanos aprendam a pensar e a refletir de maneira coerente e filosófica em suas questões existenciais, do que uns poucos intelectuais ficarem especulando sobre conceitos que permanecerão restritos a eles.
“Uma filosofia para crianças e jovens não estaria preocupada em formar discípulos para perpetuar um certa corrente filosófica, uma certa visão de mundo, mas para ajudar a pensar e a transformar o mundo. Conceber a filosofia como uma especialidade é derrotá-la antes mesmo de iniciar a batalha por ela. ” (GADOTTI, 2000:28)
O que há de comum entre filósofos e crianças?
Mas reconhecer a capacidade da criança filosofar é um passo que até agora poucos deram. Em geral, os filósofos estão afastados da infância. Em seus sistemas, a criança não tem espaço, a não ser em esporádicas citações. Sartre, só para citar um caso, anotava que a preocupação com as crianças e animais é desinteresse nas questões do homem (SARTRE, 1972). Parecem os filólosofos esquecer que um dia foram crianças, que receberam atenção por parte dos adultos, talvez pessoas que não desprezaram seu potencial de pensar, amar, sonhar e agir no mundo.
Embora a filosofia acadêmica tenha esquecido a infância e Platão tenha uma concepção filosófica elitista, as primeiras indagações filosóficas sobre “o que é a criança” e qual o melhor meio para se educá-las, nasceram na Grécia, exatamente com Platão e Aristóteles. Tanto que Jaeger aponta Platão como o fundador da pedagogia da primeira infância. Ainda assim, os gregos não reconheciam as capacidades infantis.
“A criança entra pela primeira vez no tempo ocidental na teoria platônico-aristotélica do eu tríplice e suas vicissitudes. Na criança, o equilíbro entre as três dimensões do eu — apetite, vontade e razão — está ontogeneticamente desbanlaçado. A criança carece de razão. Por isso Platão considerava que as crianças eram modelos do apetite indomado e da vontade descontrolada. (…) A única virtude das crianças parece ser o fato de serem ‘facilmente moldadas’, isto é, elas podem ser convertidas em adultos” (KENNEDY, 1999:79)
Apesar disso, os filósofos antigos, ainda que em poucas referências, usavam a filosofia para pensar a infância. Sabiam da importância da educação infantil. Para eles, não significava uma desqualificação incluir a criança em seu pensamento.
A criança só vai entrar em cena como uma das principais preocupações humanas, nos séculos XVI e XVII e um dos maiores representantes dessa filosofia voltada à infância é o educador e filósofo checo Jan Amos Comenius. Para ele, somente através da educação, pensando primeiro na infância e depois no homem, é que atenderemos à realização humana para a felicidade. Segundo ele, “as crianças não são unicamente o objeto mas o modelo da verdadeira reforma”(COMENIUS, 1954:47) Mais tarde, Jean-Jacques Rousseau revolucionou a pedagogia, como o filósofo da infância que mais se preocupou com a relação entre a criança, o adulto e a sociedade. Rousseau entra em diálogo com o mundo infantil e não ignora suas muitas potencialidades. O centro da reflexão filosófico-pedagógica passa ser a infância como fase autônoma e específica. Pestalozzi também se preocupa com isso. Muitos pensadores dos séculos XIX e XX voltaram suas principais atenções à infância. Eram filósofos da infância e educadores, que reconheceram e ressaltaram as capacidades das crianças. E alguns, como Pestalozzi, foram monosprezados como filósofos, justamente por se preocuparem com as crianças.
Ao contrário das afirmações dos especialistas, de que teria sido o norte-americano Matthew Lipman o primeiro a ter acenado com a possibilidade das crianças filosofarem, Comenius nos informa que essa hipótese é tão velha quanto a filosofia. De acordo com ele, vem da Grécia antiga, e teria sido Pitágoras o primeiro a fazer menção a ela. (COMENIUS, 1954:83)
Isso não anula o mérito de Lipmam por ter defendido o direito da infância em praticar a filosofia. Depois de décadas de pesquisas, Lipman chega à conclusão de que o impacto dessa filosofia nas crianças não pode ser observado imediatamente, mas o impacto nos adultos de amanhã poderá ser tão espantoso que nos lamentaríamos por tê-las privado até hoje do acesso à filosofia. Diz Kohan:
“Serão as crianças que construirão suas filosofias e seus modos de produzi-las. Não é mostrando que as crianças podem pensar como adultos que vamos revogar o desterro de sua voz. Pelo contrário, nesse caso haveremos cooptado, o que constitui uma outra forma de silenciá-las. Seria mais adequado preparar-nos para escutar uma voz diferente como expressão de uma filosofia diferente, uma razão diferente, uma teoria do conhecimento diferente, uma ética diferente e uma política diferente: aquela voz historicamente silenciada pelo simples fato do emanar de pessoas estigmatizadas na categoria de não adultos” (KOHAN, 1999:70)
Segundo Lipman, as objeções feitas para as crianças não fazerem filosofia, estão diminuindo e dando lugar a novas perguntas: qual o tipo de filosofia que as crianças podem fazer? Embora haja diferenças entre a fase infantil e a adulta, para Garret Matthews, elas não são tão significativas, a ponto das crianças não poderem entrar no mundo adulto e em companhia destes compartilhá-lo. As crianças não estão distantes do paradigma da racionalidade adulta, como se pensa.
“Tenho comentado muitas vezes que, quando encontramos um grupo de crianças completamente engajadas em pensar sobre a questão filosófica, as crianças simplesmente reiventam a história da filosofia. Com esse comentário quero dizer que o raciocínio filosófico das crianças com frequência lembra o raciocínio de Platão, Descartes, Bertrand Russel e outros grandes pensadores da história da filosofia. ” (MATTHEWS, 1999:37)
Ao se trabalhar a filosofia com as crianças, percebe-se facilmente que elas têm inclinação natural para a curiosidade, admiração, indagação, discussão e reflexão. Esses são traços cognitivos do empenho que a criança faz para descobrir como as coisas funcionam no mundo. Ann Sharp diz que as crianças buscam compreender o significado das palavras e as ações das pessoas que estão à sua volta. Os conceitos de bem, verdade, tempo, amizade, liberdade, amor, são centrais para o modo como a criança constrói o mundo. Por isso, é essencial que discuta esses conceitos e sentimentos e lhes dê significado.
“Se me perguntassem por que em me envolvi na idéia de que as crianças façam filosofia, diria que é porque me sinto ofendida com a idéia de que tratamos crianças como se fossem depósitos e as mutilamos até que sejam maiores de idade. Elas fazem dezoito anos e continuam utilizando palavras como amor, amizade sem saber do que estão falando.” (SHARP, 1998:17)
Entretanto, essa busca pode ser filosófica ou não-filosófica, dependendo dos meios e os métodos utilizados para se chegar à construção de conceitos e interpretação do mundo. Assim, podemos nos indagar o que caracteriza um pensamento filosófico. Se as conversas, os diálogos, estabelecidos com as crianças, forem apenas uma troca de opiniões, isso não indica um debate filosófico. Reconhecemos se uma troca de idéias é filosófica, analisando se os temas são da alçada da filosofia e se estão sendo usadas as ferramentas da indagação filosófica: as habilidades de raciocínio, o diálogo de auto-avaliação e a reflexão em torno dos diferentes assuntos. O debate em curso deve exigir capacidade de raciocínio e chegar a diferentes modelos de fazer, dizer e agir. Lorieri acha que são características básicas do pensamento filosófico: “a autonomia do pensar, a reflexão crítica e criativa, a ‘reinvenção’ e ‘reconstrução’contínua e continuada das significação humanas.” (LORIERI, 2000:54)
Nesse sentido, poderíamos dizer que as crianças parecem estar mais aptas a filosofarem do que boa parte dos adultos. Não que elas teriam mais capacidade de elaborar raciocínios difíceis e complexos do que filósofos profissionais. Ou que encontrariam mais facilidade para compreender os vários sistemas filosóficos. Ou ainda, que dominariam um vocabulário técnico com mais competência que um adulto. Não é isso. É que elas têm mais a ver com a essência do pensar filosófico.
Segundo Platão e Aristóteles, a admiração é o princípio da filosofia. Para os filósofos antigos e também para os modernos como Descartes, a admiração está na raiz da dúvida, da interrogação e da investigação, portanto, no início do filosofar. É próprio do pensar infantil a imensa capacidade de admirar o mundo, no processo de construção de significados e valores. O adulto já tem suas certezas e seus valores e está em meio a tantas preocupações cotidianas, a tantos desencantamentos, que perde a capacidade de admirar-se perante a existência.
Outro aspecto é a postura do não-saber, pois a folosofia não começa com o acúmulo de conhecimento, e sim com o seu contrário, o não-saber. Sócrates parte da afirmação de que nada sabe, Descartes assume a dúvida como início de seu filosofar. Os filósofos guardam, ou pelo menos devem guardar, a humildade de não saber tudo, inclusive para continuar filosofando, sem necessariamente cair no ceticismo radical. A abertura mental e a disponibilidade para fazer perguntas é condição para a filosofia. Mas o ser humano adulto comum tem opiniões prontas e sistemas fechados. Assumir uma postura de não-saber é bem mais problemático para ele do que para uma criança. A criança naturalmente está em atitude de aprendizado diante da vida.
Lembrando ainda Sócrates, pode-se ver em sua prática maiêutica uma relação intrínseca entre o ato de filosofar e o ato de educar, quase uma identificação entre ambos. Como filósofo, não tinha verdades prontas e sistemas acabados e, como educador, não pretendia transmitir conhecimentos, como faziam os aristocratas do saber. Nem tampouco pretendia vender o saber, como faziam os sofistas, ensinando a arte do falar. A tarefa que se impõe é questionar, interrogar, dialogar com seus interlocutores a fim de que possam parir a verdade que está dentro deles. Assim, filosofia e educação se encontram, porque em última análise, a verdade filosófica só pode ser atingida por um ato pedagógico e a educação deve ser a busca da verdade. Então, embora fosse Platão elitista em relação à filosofia, a atitude de Sócrates é democrática (tanto que extrai a verdade de um escravo como Menon) e nos põe no caminho de começar a fazer isso o mais cedo possível.
Assim, se a filosofia nasce da admiração e do reconhecimento do não-saber e se o filosofar não é, como queriam os sofistas, adquirir um saber, ou uma atitude acadêmica e profissional de poucos cultos, mas sim um questionanamento sobre a vida, um apelo à consciência do ser e um parto da alma, com a ajuda dos mestres, a criança é sim capaz de filosofar e ser interlocutora da filosofia. É nesse sentido que se pode dizer que as crianças estão mais perto da filosofia, do que boa parte dos adultos.
Bibliografia
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