Em Torno da Filosofia da História

 

Waldir Cauvilla
Universidade de São Paulo

"Estudar história requer o conhecimento prévio de que com esse estudo se almeja algo impossível e importantíssimo. Estudar história significa entregar-se ao caos., conservando a crença na ordem e no sentido. É uma tarefa muito séria..., talvez mesmo trágica".
Herman Hesse, O Jogo das Contas de Vidro.

 

Quem deve responder à pergunta "tem sentido a História?": o historiador, o filósofo ou o teólogo? Ou a própria pergunta não tem sentido?

Se é ponto pacífico que ao historiador, enquanto tal, cabe apenas a função de explicar(1) os acontecimentos históricos em seu desenrolar, no entanto, não é cabível tentar captar algum sentido nesse mesmo desenrolar?

Dizer que não há condições para se atribuir um sentido à história já não seria estabelecer "um sentido", ainda que no caso devêssemos chamá-lo de "falta de sentido"? Mas o que isto quer dizer? Em que isso implica? Que os seres humanos "caminham" aleatoriamente? Teremos de adotar algo do tipo “acaso e necessidade", como Jacques Monod adota com relação à evolução biológica?(2) Ou temos de buscar um sentido na própria "caminhada em si" da humanidade, como diz o poeta espanhol "caminante no hay camino; se hace el camino al andar"? Mas, então, quem nos guiará? O historiador? Mas seu próprio método, ou, pelo menos, as teorias predominantes não o permitem. O filósofo? Mas corre o risco de ser considerado "especulativo , "metafísico", ou coisas "piores" como já fizeram com Arnold J. Toynbee, por exemplo. O teólogo? Mas, aqui, dir-se-á que não se trata de uma visão científica (será que precisa sê-la? e se os outros ramos do conhecimentos se declaram impossibilitados de responder, fica-se sem resposta?) ou até mesmo de uma visão racional; que dada a variações das concepções sobre a fé - base da convicção religiosa mas sobre a qual, talvez, nem as religiões se entendam - não chegaríamos a uma posição de aceitação universal.

De qualquer modo, a pergunta é possível, ela existe, há quem se interesse por ela. E notemos que - baseando-nos apenas na literatura conhecida (poderíamos, até, dizer "clássica") ela é feita há muito tempo. No mínimo a partir de Sto. Agostinho, com sua Cidade de Deus. E, se é ela que inaugura a "filosofia da história", poderíamos lembrar o que diz W. H. Walsh: "O problema de quem terá inventado a filosofia da história é controverso: há argumentos que justificam a atribuição ao filósofo italiano Vico (1668-1744), embora sua obra tenha passado em grande parte despercebida em sua época, o que justifica remontar a um passado ainda mais distante aos textos de Sto. Agostinho, ou mesmo a certos trechos do Velho Testamento". (Walsh, W. H., 1978, p. 13)(3)

Pensando em quais poderiam ser esses trechos do Velho Testamento, ocorreu-nos pelo menos um do "Livro do Eclesiastes", no Antigo Testamento: "Uma geração passa, e outra geração lhe sucede; mas a terra permanece sempre estável! (...). Todas as coisas são difíceis; o homem não as pode explicar com palavras. O olho não se farta de ver nem o ouvido se cansa de ouvir (sempre as mesmas coisas)”. "Que é que foi? É o mesmo que há de ser. Que é que se fez? O mesmo que se há de fazer. Não há nada novo debaixo do sol, e ninguém pode dizer.- Eis aqui está uma coisa nova, porque ela já existe nos séculos que passaram antes de nós. Não há memória das coisas antigas, mas também não haverá memória das coisas que hão de suceder depois de nós entre aqueles que viverão mais tarde". (Livro do Eclesiastes, 1, 4,8-11)

Pode-se dizer que está colocado aí um sentido, para a história da humanidade, caracterizado pela permanência, pela estabilidade.

Mas gostaríamos de apontar um outro autor, também anterior a Sto. Agostinho, no qual vislumbramos uma filosofia da história, ainda que sutilmente referida: é Heródoto de Halicarnasso, o que não deixa de ser interessante, já que ele costuma ser indicado como o "pai da história”. Em suas investigações(4) sobre as Guerras entre Gregos e Persas (também chamadas de Guerras Médicas), diz ele: “... O que farei (...) será levar adiante minha história, e discorrer do mesmo modo sobre os sucessos dos Estados grandes e pequenos, visto que muitos, que antigamente foram grandes, vieram depois a ser bem pequenos e que, ao contrário, foram antes pequenos os que se elevaram em nossos dias à maior grandeza. Persuadido, pois, da instabilidade do poder humano, e de que as coisas dos homens nunca permanecem constantes no mesmo ser, próspero nem adverso, farei como digo, menção igualmente de uns Estados e de outros, grandes e pequenos". (Heródoto, 1947, p. 13; Livro 1,5).

Leio esse texto como sendo uma captação de um "sentido" da história: a relatividade das coisas, a instabilidade da vida das sociedades, a alternância do poderio de um povo. Há aqui um aspecto interessante: já o "pai" dos historiadores revelava uma marca que, a nosso ver, acompanhará os historiadores de todos os tempos: mesmo não sendo esse o objetivo de sua investigação, mesmo tendo como objeto um "momento" apenas da história humana (no caso, as Guerras Médicas), ele não pode evitar emitir um juizo que abrange a história dos homens como um todo; o trecho acima, parece-nos, "transcende" os limites de um evento singular da história dos homens; desse evento particular , “induz” uma "tendência" mais geral (sentir-nos-íamos temerários se usássemos a palavra "lei", mesmo entre aspas) dessa história. E não foi o que sucedeu com Sto. Agostinho, também? Para dar significado à desintegração do Império Romano, e a responsabilidade dos cristãos nisso, ele apela para uma interpretação da história em sua totalidade. E, num nível mais modesto, citaríamos nossa própria descoberta, enquanto professor de história, ao nos darmos conta, após uma dezena de anos de aula, de que não podíamos fazê-lo "impunemente", ou seja, mesmo preocupados "apenas" em explicar a história a nossos alunos, ia-se constituindo em nós, talvez até inconscientemente, uma concepção da caminhada da humanidade, em que se buscaria algum significado mais geral, isto é, tendíamos a “filosofar” sobre a história, mesmo sem percebê-lo.

Mas, voltemos a Walsh:“... Para efeitos práticos, temos razão em afirmar que a filosofia da história começou a ser considerada matéria independente no período que se inicia com a publicação, em 1784, da primeira parte das Idéias para uma História Filosófica da Humanidade, de Herder, e terminou pouco depois do aparecimento da obra póstuma de Hegel, Conferências sobre a Filosofia da História em 1837. Mas esse estudo, tal como foi concebido durante o período, era em grande parte uma questão de especulação metafísica. Seu objetivo era chegar a um entendimento do curso de história como um todo; mostrar que, apesar de muitas anomalias e inconseqüências que apresentava, a história podia ser considerada como uma unidade que compreendia um plano geral, um plano que, uma vez percebido, esclareceria o curso detalhado dos acontecimentos ao mesmo tempo em que nos permitiria ver o processo histórico como satisfatório à razão, num sentido especial (...) Pretendiam oferecer uma compreensão da história mais profunda e valiosa do que qualquer coisa que os historiadores pudessem apresentar, uma compreensão que, no caso do Hegel, o maior desses autores, tinha uma base não num estudo direto da evidência histórica (embora Hegel não fosse indiferente em relação aos fatos, como pretende ser, por vezes), mas em considerações puramente filosóficas. A filosofia da história, como praticada por esses autores, passou a significar um tratamento especulativo de todo o curso de história, com o qual se esperava revelar seu segredo, de uma vez por todas”.(Walsh, 1978, pp. 13-14)

Apesar da afirmação feita no primeiro texto de Walsh, acima citado, ele próprio indica que, mesmo depois de Hegel, ainda encontramos algumas obras que se desenvolvem na perspectiva, dita “especulativa” da filosofia da história, e lembra, de início, Marx, Spengler e Toynbee, e mais ao final de seu livro, Comte. Um outro autor, W.H. Dray, ao estudar o que denomina três "tratamentos" da filosofia especulativa da história, cita Hegel (um "tratamento metafísico"), Toynbee (um "tratamento empírico") e Reinhold Niebuhr (um "tratamento religioso")(5).

Seria bom destacar, nesta altura, que, com o desenvolvimento da pesquisa histórica a partir do século XIX, seja influenciada por uma visão positivista (Taine, Henri Berr, Langlois, Seignobos), seja pela proposta da École des Annales (Lucien Febvre, Marc Bloch, Braudel), seja pela historiografia idealista neokantiana alemã (Dilthey, Rickert, Max Weber) ou neohegeliana italiana (Croce), a vertente "especulativa" da filosofia da história é duramente criticada(6), e só será bem vista, a vertente "crítica". Pelo menos na França esta será representada, inicialmente, por Raymond Aron e suas teses, lntroduction a La Philosophie de L'Histoire e La Philosophie Critique de L'Histoire: essai sur une théorie allemande de L'Histoire, ambas de 1938. Em outras plagas, poderiam ser citados os ingleses Oakeshott, Collingwood e Patrick Gardiner, o italiano Benedetto Croce. Como escreve H.I. Marrou: "Seja qual for a originalidade de cada um desses pensadores, a variedade de suas tomadas de posição e - longe de mim esquecê-lo - o caráter sempre aberto do debate, a contribuição destes três quartos de século revela bem ao exame, uma certa convergência tanto na maneira de por os problemas como nas soluções que são propostas para eles: a partir de uma análise das servidões lógicas que pesam sobre a elaboração do conhecimento histórico, chegou-se até a constituição de uma filosofia crítica da História ou pelo menos a um certo conjunto de princípios fundamentais que doravante se podem considerar como adquiridos ao mesmo título por exemplo que se adquiriu a teoria da experimentação nas ciências da natureza, a partir, digamos de J. S. Mill e Claude Bemard". (Marrou, s/d, pp. 20-21)

A própria obra de Marrou - Do Conhecimento Histórico -, da qual extraímos o trecho acima, é outro bom exemplo dessa filosofia crítica da história.

Antes de avançarmos em outras considerações sobre a filosofia expeculativa da história anotemos o que W. H. Walsh considera os quatro grupos principais em que se enquadram os problemas da filosofia crítica da história:

"a) A história e outras formas de conhecimento. [um] grupo constituído de questões sobre a natureza mesma do pensamento histórico. O que é a história e como ela se relaciona com outros estudos? Temos em questão um ponto crucial: o conhecimento histórico é sui generis ou terá ele o mesmo caráter de outras formas de conhecimento - como o visado pelas ciências naturais, por exemplo, ou o conhecimento perceptual”.

"b) Verdade e fato na história”.

"c) Objetividade histórica”.

"d) A explicação na história. O problema central neste grupo é o da natureza da explicação histórica. Haverá peculiaridades sobre a maneira pela qual o historiador explica (ou tenta explicar) os acontecimentos que estuda? Já vimos que há uma argumentação justificativa para a afirmação de que a história é, tipicamente, a narração das ações do passado, disposta de tal modo que vemos não só o que aconteceu, mas também por quê. Devemos perguntar que tipo, ou tipos, de "porquê" estão envolvidos na história”. (Walsh, 1978, pp. 17,18, 20 e 22)

Voltemos ao tema da filosofia especulativa da história. Dos nomes de "filósofos especulativos da história”, acima citados, gostaríamos de nos concentrar em Karl Marx. Por quê? Em primeiro lugar, porque Marx foi um dos maiores, senão o maior crítico de Hegel, visto como o ponto alto da filosofia da história idealista. Em segundo lugar porque Marx também criticava o trabalho dos filósofos como uma atividade que fugira das coisas concretas da vida; é só recordarmos a famosa XI tese sobre Feuerbach: "os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se porém de modificá-lo". Em terceiro lugar, ao posicionar-se como materialista dialético, Marx deveria trabalhar apenas no nível da realidade humana concreta, escapando, assim, das visões transcendentalistas dos filósofos da história; e não só isso: parece-nos que o método materialista histórico é avesso a qualquer visão da história que extrapola a questão típica do historiador, que é saber "como" as coisas aconteceram e não “para que” ou "em direção a que" aconteceram.

Vejamos o que diz Walsh: "A filosofia marxista da história tem mais de um aspecto: na medida em que procura mostrar que o curso da história tende para a criação de uma sociedade comunista sem classes, por exemplo, aproxima-se de uma filosofia da história do tipo tradicional. Mas seu principal objetivo é apresentar uma teoria da interpretação e causação históricas. Se Marx estiver certo, os principais fatores da história são todos econômicos, e nenhuma interpretação do curso detalhado dos acontecimentos que não admita isso terá qualquer valor. Devemos dizer, porém, que a questão dos principais fatores da história não parece filosófica. É uma questão que só pode ser resolvida por um estudo das conexões causais concretas na história, e não vemos porque o filósofo deva ser considerado especialmente equipado para esse estudo. Ele poderia ser feito com muito maior proveito, por um historiador prático e inteligente. Além disso, não deve resultar na formação de uma verdade auto-evidente, mas de uma hipótese empírica, a ser testada pela sua eficiência em lançar luzes sobre situações históricas individuais. Na medida em que isso for verdade, o desenvolvimento de uma teoria da interpretação histórica parece pertencer mais à história em si do que à filosofia, tal como a determinação dos fatores causais importantes no mundo material cabe às ciências e não à filosofia das ciências”. "... A contribuição de Marx para o entendimento da história, na verdade,, não foi feita à filosofia da história propriamente dita. Mas a teoria marxista é de interesse para o filósofo devido à importância que Marx parece atribuir ao seu princípio fundamental A validade irrestrita, atribuída pelos marxistas a esse principio é incoerente com a sua classificação como simples hipótese empírica (embora não como fato de ter sido sugerida pela experiência); e a questão da justificativa para considerar dessa forma o princípio certamente merece cuidadosa atenção”. (Walsh, 1978, pp. 26-27)

Sobre esse aspecto poderíamos lembrar uma consideração de Max Weber: "Intencionalmente, deixou de ser demonstrada a nossa concepção no exemplo de longe o mais importante de construções de tipo ideal: o de Marx [..] Limitamo-nos a constatar aqui que todas as 'leis' e construções do desenvolvimento histórico especificamente marxistas naturalmente possuem um caráter de tipo ideal, na medida em que sejam teoricamente corretas. Quem quer que tenha trabalhado com os conceitos marxistas, conhece a eminente e inigualável importância heurística destes tipos ideais, quando utilizados para os comparar com a realidade, mas conhece igualmente o seu perigo, logo que são apresentados com validade empíríca ou até mesmo como tendências ou forças ativas' reais (o que, na realidade, significa metafísicas). (Weber, Max, 1979, pp. 118-119)

Será que Marx realmente tinha uma visão “essencialista” (para usar a terminologia de Popper(7)) da História? Talvez o que nos leve a pensar assim são as implicações políticas do pensamento de Marx. Ou melhor, sabemos que Marx colocava sua reflexão teórica a serviço de uma “praxis” (veja-se a já citada XI Tese sobre Feuerbach); Marx não elaborou sua obra preocupado em definir-se enquanto filósofo, sociólogo, historiador, economista, antropólogo, ou qualquer outra divisão profissional-acadêmica do trabalho intelectual. Aliás, vale a pena lembrar sua famosa afirmação "Só conhecemos uma única ciência, a ciência da história(8). Parece-nos que o que ele pretende significar com essa frase é a unicidade do ser humano que deveria ser acompanhada por uma semelhante unicidade do trabalho intelectual (a menos que se queira ver em Marx um defensor do corporativismo dos historiadores...). Dado esse caráter do trabalho de Marx, interessado - dentro da mentalidade típica do século XIX, de que a ciência era o referencial objetivo para isso - em orientar cientificamente o proletariado em sua luta político-social, parece que ele não estava muito preocupado em discutir esses aspectos que hoje chamaríamos de metodológicos e epistemológicos. Despreocupação reforçada pela vivência não acadêmica de Marx. Nisto poderíamos confrontá-lo com Durkheim e Max Weber - os outros dois grandes pilares das Ciências Sociais, em particular da Sociologia - que escreveram obras metodológicas, quiçá pela razão de serem homens da Universidade.

Talvez possamos reforçar um pouco as afirmações acima lembrando pelo menos dois autores marxistas (até mesmo para mostrar que essa condição de “marxista” não leva necessariamente a uma leitura "bíblica", e mesmo "essencialista" de Marx) em que esse caráter heurístico, ou não essencialista das interpretações de Marx fica evidenciado. Lucien Goldman, em seu Ciências Humanas e Filosofia propõe: “... a necessidade, ..., de um estudo sociológico das próprias ciências sociais e, em termos mais precisos, de um estudo materialista e dialético do materialismo dialético". (Goldmann, L., 1963, p. 36, grifos nossos)

E Georg Lukács, em seu História e Consciência de Classe, lembra: “... o marxismo ortodoxo não significa, pois, uma adesão sem crítica aos resultados da pesquisa de Marx, não significa uma 'fé' numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro 'sagrado'. A ortodoxia em matéria de marxismo refere-se, pelo contrário, e exclusivamente, ao método".(Lukács, G., 1974, p. 15; exceto a palavra "método" grifada pelo autor, os outros grifos são nossos).

Então, essa é a questão: há uma filosofia da História em Marx? Na verdade há também uma outra questão (ou uma maneira diferente de colocar a primeira): o materialismo dialético comporta uma filosofia da História? Correndo o risco de colocar uma questão pretenciosa, pensamos que teríamos de partir do seguinte: ao escrever suas obras (Manuscritos Econômico-Filosóficos, Manifesto do Partido Comunista, A Ideologia Alemã, A Miséria da Filosofia, O Capital, etc.) o que pretendia Marx? Ou, de outro modo, qual a finalidade dessas obras? Se em algumas delas - e aqui destacaria o Manifesto do Partido Comunista - o texto das mesmas sugere o que se pode chamar uma "filosofia da história" na medida que configura uma interpretação "total" da mesma, a captação de um "sentido" imanente à mesma, a partir do qual não só se entende o passado e se orienta a ação presente (particularmente do proletariado) mas se define (?) o próprio futuro - como que uma escatologia - então, repetimos, se em algumas obras isso fica textualmente sugerido, no entanto, ao se ler Marx, distinguindo-se o que tem uma finalidade mais imediata - O Manifesto, de certa forma era um "panfleto" (talvez o "panfleto dos panfletos" já aparecidos na história), encomendado pela Liga dos Comunistas em função da situação política que vivia a Europa no final de 1847 (gerada pela grande crise econômica desse ano)(9) do método que permeava as reflexões de Marx. Assim podemos perceber que nesse texto não era sua intenção estabelecer uma "autêntica" filosofia da História - a la Hegel -. É provável que, justamente aquela preocupação voltada para a ação prática desse ao(s) texto(s) de Marx uma aparência de texto "bíblico", enquanto que, o que ele realmente pretendia era dar ao proletariado uma convicção de que eles realizavam uma luta que pertencia à história da humanidade há muito tempo.

Talvez pudéssemos aplicar a esse assunto a mesma observação que Engels fez, em carta a Bloch, procurando mostrar que ele e Marx não eram defensores de um determinismo econômico, no qual o fato econômico seria o único determinante da história humana: "Se os mais jovens insistem, às vezes, mais do que devem, sobre o aspecto econômico, a culpa em parte temos Marx, e eu mesmo. Face aos adversários, éramos forçados a sublinhar este princípio primordial que eles negavam e nem sempre dispunhamos de tempo, de espaço e de oportunidade para dar a importância devida aos demais fatores que intervêm no jogo das ações e das reações. (...)". (Marx, K. - Engels, F., 1963, p. 286)

Não sabemos se aplicamos mal a analogia, mas se Marx (aqui, pela voz de Engels) se recusa, a um determinismo econômico na história (em suma a um determinismo) o que nos parece coerente com um raciocínio que se pretende dialético - ele também não admitiria uma "chave" definitiva para a história toda. Essa determinação, aliás, para Marx era uma característica do que ele denominava "pré-história da sociedade humana"(10). Quando os homens ingressassem no "reino da liberdade" quem sabe que fatores pesariam mais no processo histórico?

Vale lembrar uma observação feita por Marx, também em uma carta, endereçada a Kugelman, em 1871: “... A história passaria a ter um caráter muito místico se os 'acasos' não desempenhassem nenhum papel. Como é natural, os acasos tomam parte do curso geral do desenvolvimento e são compensados por outros acasos. Mas a aceleração ou o retardamento do desenvolvimento dependem em grau considerável, desses acasos, entre os quais figura o 'acaso' relativo ao caráter dos homens que dirigem o movimento em sua fase inicial". (Marx, K. - Engels, F., 1963, p. 264)

Aproveitamos para anotar a análise de Karl Mannheim a respeito do "irracional" - podemos considerar esta palavra com o mesmo sentido em que aparece a palavra "acaso" no texto acima - no pensamento marxista. "A teoria socialista-comunista constitui, assim, uma síntese do intuicionismo e de um desejo determinado de compreender os fenômenos de uma maneira extremamente racional. O intuicionismo aparece nesta teoria porque ela nega a possibilidade da avaliação exata de acontecimentos antes de sua ocorrência. A tendência racionalista dela participa porque vísa a ajustar a um esquema racional qualquer novidade que, a qualquer momento, venha a aparecer. Em momento algum se permite agir sem teoria, mas a teoria que surge no decorrer da ação será de nível diferente da teoría que a precedeu. (..) O pensamento marxista se assemelha ao pensamento conservador no fato de não negar a existência de uma esfera irracional e de não tentar dissimulá-la como o faz a mentalidade burocrática, ou de tratá-la na forma puramente intelectual, como se fosse racional, como fazem os pensadores liberaldemocráticos. Distingue-se, contudo, do pensamento conservador, pelo fato de conceber esta irracionalidade relativa como potencialmente compreensível através de novos métodos de raciocínio". (Mannheim, K., 1968, pp. 153-154)

E ainda podemos acrescentar mais um posicionamento de Engels, relativo à filosofia, que aparece em seu "Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica alemã": "As considerações anteriores apenas pretendem ser um esboço geral da interpretação marxista da história; (...) Sua comprovação deve ser feita à luz da própria história, e cremos poder afirmar que essa prova foi suficientemente subministrada em outras obras. Esta interpretação põe fim à filosofia no campo da história, exatamente da mesma forma que a concepção dialética da natureza toma a filosofia da natureza tão desnecessária quanto impossível. Agora, já não se trata de tirar do cérebro as conexões entre as coisas, mas de descobrí-las nos próprios fatos. Expulsa da natureza e da história, só resta à filosofia um único refúgio: o reino do pensamento puro, no que ele ainda está de pé: a doutrina das leis do próprio processo do pensamento, a lógica e a díalética". (Marx, K. Engels, F., 1963, p. 206)

Arriscamos dizer, depois deste último texto, que Engels se aproxima de algumas correntes atuais (mesmo não marxistas) para as quais uma filosofia da história só é válida enquanto trata das questões lógicas, metodológicas e epistemológicas da análise histórica (11)

Bem, a argumentação acima talvez ajude a livrar Marx de ter elaborado uma filosofia da história tradicional (especulativa, metafísica). Não esqueçamos a observação de Weber, supracitada, apontando Marx como o "exemplo de longe o mais importante de construções de tipo ideal". Nossa argumentação sugere que a possível "essencialidade" presente nos textos de Marx seria fruto da finalidade prática e política que visava quando de sua publicação; tratava-se de dar ao proletariado um argumento de base histórica naquele momento. Agora, se Marx concordaria com o "nominalismo" de Weber, já é outra questão. Penso que não, na medida em que o fundamento (ontológico, epistemológico) de cada um é radicalmente diferente: materialismo para um, idealismo para outro. É aqui, aliás, que qualquer pretensão de conciliação entre Marx e Weber se inviabiliza.

Mas, ainda caberia a questão: Marx à parte, o materialismo dialético comporta uma filosofia da história?

Na vertente "tradicional" ou "especulativa" parece-nos que não. O materialismo dialético seria avesso a tentativas de especulação teleológica. Ou será que a dialética admitiria uma perscrutação da matéria (como ser ontológico) que captaria seu "sentido para a frente"? No que depende das ciências da natureza, particularmente da física, enquanto instrumento que poderia realizar essa perscrutação parece que o mais longe que se chegou foi ao "Princípio da Indeterminação ou da Incerteza", de Werner Heisenberg. Assim, como poderíamos perscrutar algo adiante?

A aplicação do materialismo dialético à história humana, ou seja, o materialismo histórico, para que sua dialeticidade fique garantida, não poderia ir além da captação de um sentido imanente ao próprio desenvolvimento da história da humanidade como tem ocorrido até hoje. Aí, podemos nos perguntar: nesses termos, (de nos apoiarmos no que a história nos mostrou até hoje), que "imanência" ela nos revelou?

Se ficarmos apenas com os dois grandes pensadores já citados - Marx e Weber - percebemos que suas respostas, no fundo, dependem menos do que a história nos apresenta no seu fluxo humano concreto e muito mais de suas posições filosóficas, que de certo modo (ou em grande parte? ou na sua totalidade?) não dependem da própria história.

Parece que chegamos a um poço sem fundo. Ou a um círculo vicioso, difícil de ser quebrado. Talvez em última instância tenhamos, mesmo, que fazer uma aposta...

PS.: Ao final este trabalho, cabe aventar uma resposta pessoal ao problema. Penso que para interpretar a história, como ocorrida até aqui, Marx, realmente, tem uma muito boa interpretação, principalmente se não nos deixarmos levar por tendências economicistas (para isso o que apontamos no texto, através das observações de Goldmann e Lukács, é fundamental).

Penso também que podemos ver a caminhada da história em termos análogos àqueles da teoria evolucionista, na biologia: divergente, sem final preestabelecido, caminhando sobre seus próprios passos, por assim dizer.

Mas confesso que as duas idéias que me fascinam - mais intuitivamente do que racionalmente - são aquelas, já citadas - representadas pela epígrafe deste trabalho (o texto de Herman Hesse) e a frase do poeta espanhol: "Caminante no hay camino; se hace camino al andar”.

Mas... “não posso esquecer um outro caminho: aquele dos teólogos da história. Porém para aderir a ele, é necessária uma coisa que a racionalidade científica e filosófica não podem dar e que no plano pessoal talvez não dependa de nós... a fé.

BIBLIOGRAFIA

  1. GOLDMANN, Lucien. Ciências Humanas e Filosofia. Que é a Sociologia? Trad. de Lupe C. Garaude e J.A.Giannotti. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1967.
  2. HERÓDOTO. Los Nueve Libros de Ia Historia. Trad. del griego al castellano por el P. Bartolomé Pou, s.j. Barcelona, Joaquín Gil, Editores, tomo I (a tradução para o português que aparece no corpo deste trabalho, corre por minha conta), 1947.
  3. LUKÁCS, Georg. 1974, História e Consciência de Classe. Estudos de Dialética Marxista. Trad. de Teima Costa Porto, Publicações Escorpião, 1974.
  4. MANNHEIN, Karl. Ideologia e Utopia. Trad. de Sérgio M. Santeiro. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968.
  5. MARROU, H. I. Do Conhecimento Histórico. Trad. De Ruy Bello. Lisboa, Editorial Aster, s/d.
  6. MARX, K. Engels, F. Obras Escolhidas, vol. 3. Trad. de Leandro Konder e Apolônio de Carvalho. Rio de Janeiro, Editorial Vitória, 1963.
  7. WALSH, W. H. Introdução à Filosofia da História. Trad. por Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978.
  8. WEBER, Max Weber: sociologia. Org. da coletânea: Gabriel Cohn. Trad. por Amélia Cohn e Gabriel Cohn. São Paulo, Ática, Col. Grandes Cientistas Sociais, 13, 1979.

     


    1. Não entraremos, aqui, na questão do diferenciamento entre "explicar" e "compreender".

    2. Ver Jacques Monod, O Acaso e a Necessidade, trad. de Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira, Petrópolis, RJ, Vozes, 1971. Para uma visão crítica a Monod, ver Madeleine Barthelemy - Madaule, La Ideologia del Azar y de Ia Necesidad, Barcelona, Barral Editores, 1974. E para uma análise mais "equilibrada" dos mecanismos da evolução, ver George F. Simpson, O Significado da Evolucão, trad. de Gioconda Mussolini, São Paulo, Pioneira, 1962, em que destacaria a terceira parte do livro, "Evolução, Humanidade e Ética".

    3. Usaremos o critério de remeter as referências bibliográficas das citações à bibliogra-fia no final do texto, limitando-nos a citar o autor, o ano da obra utilizada e o nº da(s) página(s) citada(s).

    4. Sentido original da palavra grega "", de que originou-se "história".

    5. Cf. W. H. Dray, Filosofia da História, trad. de Octannys S. da Mota e Leônidas He-genberg, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1969.

    6. Como ilustração podemos ler o artigo, de 1936, de Lucien Febvre sobre o A Studv of Historv, de Toynbee, que tem, já no título, o tom duro da avaliação que virá a seguir: "Contra duas filosofias oportunistas da história: de Spengler a Toynbee", e no qual o historiador inglês será chamado de "um novo profeta" pelo historiador francês. Ver Lucien Febvre: História, organizador (da coletânea) Carlos G. Mota, São Paulo, Atica, 1978, pp. 130-155.

    7. V. Karl Popper, Autobiografia Intelectual, trad. de Leônidas Hegenberg e Octanny S. da Motta. São Paulo, Cultrix, Ed. da USP, 1977.

    8. Cf. na antologia organizada por Florestan Femandes, Karl Marx - F. Engels: história, São Paulo, Ática, 1984, 2ª. ed., p. 184. É um texto de A Ideologia Alemã, em trecho riscado do manuscrito de Marx.

    9. É conhecido o fato de que Marx quase não o escreve, já que cansada com a sua demora em entregar o texto, a Liga Comunista ameaçou encomendá-lo a outra pessoa. Não foi àtoa que o texto acabou saindo "em cima" da hora, ou seja, no eclodir da revolução de fevereiro de 1848, na França, que se alastrou, depois por outros países europeus.

    10. Esta expressão é usada por Marx no Prefácio de sua Para a Critica da Economia Política.

    11. É bom chamarmos a atenção para o seguinte: talvez levados pela dinâmica de uma argumentação em que tentamos compreender o autor a partir de seus próprios textos - no caso Marx (e Engels) - tenhamos 'exagerado' e isso dê a impressão de total concordância com o pensamento desses autores, ou pelo menos, de não percebermos possíveis inconsistências no mesmo; que isto seja ressalvado na leitura deste trabalho.