Meio Século de Engenharia Bioquímica

 

Andreas Karoly Gombert
(EPUSP)

 

          Nos meados da década de 1940, ao final da II Guerra Mundial, o número de feridos e mutilados durante o conflito era enorme. A humanidade via-se frente à necessidade de produzir antibióticos em grandes quantidades para enfrentar esta situação. Isto significava um grande desafio, pois os processos de obtenção de antibióticos existentes até aquele momento, baseados no crescimento superficial de fungos, não podiam suprir a nova demanda. Foi neste instante que os conhecimentos da área de engenharia de processos, oriundos dos processos químicos tradicionais, entraram em cena para dar subsídios à produção em larga escala de um produto obtido pela ação de um material de caráter biológico: a penicilina (descoberta em 1928 por Alexander Fleming), produzida pelo fungo Penicillium chrysogenum.

          É claro que o ser humano beneficia-se da ação de microrganismos desde os tempos antigos, principalmente na produção de alimentos como queijo, pão, iogurte e cerveja, mas somente no século passado, por volta de 1857, Louis Pasteur demonstrou o papel destes seres microscópicos nos chamados processos fermentativos. Entretanto, até o início da II Guerra Mundial, acreditava-se que os processos industriais de fermentação (termo tradicionalmente empregado para designar o tipo de processo, no qual ocorre uma transformação através da ação de microrganismos) não eram muito promissores, pois os produtos de caráter não alimentício que podiam ser obtidos por estes processos, como os solventes e ácidos orgânicos, já eram produzidos em escala industrial por processos químicos convencionais, muito mais atraentes do ponto de vista econômico.

          A colaboração entre profissionais da área de engenharia e da área biológica permitiu que as primeiras tentativas de produção de antibióticos em larga escala fossem realizadas. Inicialmente, estas tentativas foram conduzidas em frascos de vidro afixados sobre plataformas oscilatórias com o objetivo de promover uma boa homogeneização do meio líqüido e a transferência de oxigênio, substância essencial à sobrevivência e atividade de organismos aeróbios. No entanto, este tipo de procedimento logo passou a apresentar dois problemas básicos: a transferência de oxigênio não era suficiente e as condições dos ensaios não eram reprodutíveis. Assim, evoluiu-se aos poucos para jarros agitados e mais tarde para os fermentadores (ou biorreatores) aerados e agitados mecanicamente, utilizados até hoje em grande parte dos processos bioquímicos industriais. Já em 1947 surgiam os primeiros fermentadores produzidos em série, pela empresa New Brunswick nos Estados Unidos.

          Em julho deste mesmo ano de 1947, após muitos esforços de pesquisa para produção do antibiótico estreptomicina, a empresa Merck recebeu o prêmio Mc Graw-Hill Award na área de engenharia química pelas inovações realizadas em "engenharia bioquímica", o que constituiu a primeira aparição deste termo na literatura profissional.

          Sendo assim, pode-se dizer que em 1997 a engenharia bioquímica completou 50 anos e que, desde então, o seu principal foco tem sido os processos que fazem uso de agentes biológicos como células e enzimas.

          No início dos desenvolvimentos conduzidos nas indústrias farmacêuticas e nas universidades, a preocupação principal era a questão da transferência de oxigênio em quantidade suficiente para suprir a demanda por parte dos microrganismos. A dificuldade pode ser facilmente entendida se lembrarmos que a solubilidade do oxigênio em soluções aquosas é muito baixa (da ordem de 8 mg/l), o que caracteriza a necessidade de suprimento constante, já que não há atividade por parte das células fungais em situação de ausência de oxigênio. Além disto, o crescimento de fungos dá-se sob a forma de filamentos, que modificam o comportamento do fluido dentro do reator, prejudicando a transferência de massa conforme sua concentração aumenta. Portanto, o problema era tipicamente de transporte de massa, uma das áreas de estudo e atuação dos engenheiros químicos.

          Dando seqüência aos estudos de transferência de oxigênio e às dificuldades inerentes a sua quantificação, foram abordadas questões de extrema importância como a ampliação de escala e a elaboração de meios de cultura, que por sua vez, está ligada às áreas de bioquímica e microbiologia. Nota-se assim que a engenharia bioquímica, desde o seu início, estando inserida na chamada biotecnologia industrial, tem características claramente multidisciplinares, envolvendo conhecimentos, métodos e profissionais de áreas como bioquímica, genética, química analítica, microbiologia, computação, matemática e engenharia. Desta forma, para que possa haver a interação necessária entre o engenheiro bioquímico e os profissionais dessas outras áreas, é fundamental que, além dos conhecimentos inerentes à área de engenharia química, o engenheiro bioquímico possua conhecimentos básicos de microbiologia e bioquímica.

          Nas décadas seguintes às primeiras produções de antibióticos, vários outros produtos passaram a ser produzidos através de processos bioquímicos, como por exemplo enzimas, solventes orgânicos, diferentes tipos de vitaminas e aminoácidos, sem mencionar os desenvolvimentos realizados nas áreas de alimentos e tratamento de efluentes. Além do cultivo de microrganismos, passou-se também a estudar a utilização de células animais e vegetais, com o objetivo de se obter produtos de estrutura mais complexa e de maior valor agregado. Ao longo destes anos, as produtividades e rendimentos dos processos foram continuamente melhorados em função do projeto de novas configurações de biorreatores, de meios de cultura mais adequados e da seleção de células mais produtivas.

          Pode-se dizer que houve, ao longo deste anos, duas áreas do conhecimento que contribuíram significativamente para os desenvolvimentos realizados em engenharia bioquímica.

          Em primeiro lugar deve-se mencionar a informática e o advento dos computadores, cada vez mais rápidos e acessíveis, possibilitando a aplicação de modelos matemáticos para descrições cinéticas dos processos, do comportamento dos organismos e da dinâmica das reações. Estes estudos resultaram em modelos relativamente simples e representativos, os quais puderam ser utilizados para realizar simulações, verificando hipóteses e explorando a dinâmica e a estabilidade de sistemas.

          Em segundo lugar, porém não menos importante, vem a biologia molecular (principalmente o advento da tecnologia do DNA recombinante), que transformou definitivamente o cenário da engenharia bioquímica, caracterizando o surgimento da chamada engenharia bioquímica molecular, como forma de diferenciação em relação à já existente engenharia bioquímica de processos. A partir daí, além da tradicional visão macroscópica dos processos bioquímicos, os engenheiros passaram a reforçar cada vez mais o enfoque na biologia moderna e nos processos celulares. Desta forma, é possível concluir que em engenharia bioquímica deve-se ter a capacidade de descrever quantitativamente fenômenos de engenharia e fenômenos biológicos.

          Atualmente, o desenvolvimento de processos industriais de produção de antibióticos, aminoácidos e outros produtos biotecnológicos, com alta eficiência e baixo custo, depende da introdução de mutações no DNA dos organismos produtores e da posterior seleção dos organismos mais produtivos. No passado, estas mutações eram conduzidas de forma randômica, porém com o advento da tecnologia do DNA recombinante tornou-se possível isolar o gene que contém o código para uma proteína e inseri-lo (ou cloná-lo) numa célula diferente da original, que seja mais interessante do ponto de vista industrial. Além disto, os desenvolvimentos na chamada área de down-stream, ou purificação de bioprodutos (na qual o engenheiro químico pode contribuir de forma significativa devido aos conhecimentos na área de operações unitárias), permitiram que produtos de alto valor agregado, como hormônios, vacinas, reagentes para diagnósticos e produtos de química fina, se tornassem economicamente interessantes.

          No entanto, muitos desafios e potenciais aplicações ainda existem para o engenheiro bioquímico, principalmente na obtenção de produtos de alto valor agregado, no tratamento biológico de efluentes e na obtenção de produtos que vêm sendo produzidos por outros tipos de processos, que ainda apresentam um custo menor. Além disto, a crescente atenção que vem sendo dada às questões ambientais também representa um importante ponto a favor dos processos bioquímicos, os quais são, de uma forma geral, menos agressivos ao ambiente que os processos químicos convencionais. Os fatores cruciais para o desenvolvimento da engenharia bioquímica dentro desta fascinante área multidisciplinar de biotecnologia industrial são cada vez mais: uma sólida base de conhecimentos de engenharia e a capacidade de interpretar tanto os próprios fenômenos de engenharia como os fenômenos celulares ou biológicos, estes últimos através de uma estreita interação com profissionais das áreas básicas de biologia.

 

Referências

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4. Borzani, W.; Lima, U.A. & Aquarone, E. (1975) Engenharia Bioquímica. Edgard Blücher, São Paulo, vol. 3 (Série Biotecnologia).

5. Chaudhuri, J.B. (1997) "Biochemical engineering – past, present & future", Trends in Biotechnology, v. 15, pp. 383-384.

6. Hu, W.-S. & Swartz, J.R. (1998) "Biochemical engineering fundamentals: the foundations of our profession", Biotechnology Progress, vol. 14, pp.1-2.

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