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Seção Humor, Ciência e Educação

 

Jean Lauand
FEUSP – jeanlaua@usp.br

 

Dedicamos esta seção de Humor a uma curiosidade histórica: uma antiqüissima coleção de piadas, composta em torno do ano 1100, por Petrus Alfonsus, em sua obra Disciplina Clericalis. As piadas foram por nós traduzidas do original latino. Petrus Alphonsus foi um erudito judeu (nascido em 1062) que - após converter-se ao cristianismo (em 1106) - compôs, com o intuito de ajudar na formação do clero, a Disciplina Clericalis [1] , importante obra voltada para a educação moral, com uma série de conselhos e uma coletânea de provérbios, relatos e fábulas em grande parte de procedência oriental. Nela encontram-se também algumas divertidas anedotas. Apresentamos, a seguir, uma seleção: as do servo Maimundo [2] , o negro.

 

Anedotas do servo Maimundo

 

Petrus Alfonsus

 

O senhor de Maimundo ordenou-lhe, certa noite, que fosse fechar a porta. Maimundo - que, oprimido pela preguiça, nem podia se levantar - respondeu que a porta já estava fechada.

Ao alvorecer, disse-lhe  o senhor:

- Maimundo, vai abrir a porta.

- Como eu sabia que o senhor havia de querê-la aberta hoje, nem cheguei a fechá-la ontem.

O senhor, percebendo que, por preguiça, não a tinha fechado, disse-lhe:

- Levanta-te e faz o que tens de fazer, pois é dia e o sol já está a pino.

- Se o sol já está a pino, então dá-me de comer - respondeu Maimundo.

- Servo mau, nem amanheceu e já queres comer?

- Bom, se não amanheceu, então deixa-me continuar dormindo.

***

Em outra noite, disse o senhor a seu servo:

- Maimundo, levanta e vai ver se está chovendo!

Maimundo, porém, chamou o cachorro que estava deitado fora da porta e, quando ele chegou, apalpou-lhe as patas. Vendo que estavam secas, disse:

- Não, senhor, não está chovendo!

***

Noutra ocasião, também de noite, o senhor perguntou a Maimundo se tinham lume na casa. O servo chamou o gato e apalpou-o para ver se estava quente ou não. Como o gato estivesse frio, respondeu:

- Não, senhor, não temos fogo!

***

Contam que o senhor voltava do mercado, todo contente pelo bom lucro que tinha auferido. E veio Maimundo a seu encontro. O senhor, vendo-o, temeu que viesse dar más notícias, como era de costume, e advertiu-o:

- `Olha lá, Maimundo, não me venhas com más notícias!"

E o servo respondeu:

- Não contarei más notícias, senhor, mas nossa cadelinha Bispella morreu".

- Como foi que ela morreu? - perguntou o senhor.

- Nossa mula, assustada, quebrou o cabresto e, ao fugir, esmagou-a sob suas patas.

- E o que aconteceu com a mula?

- Caiu no poço e morreu.

- E como foi que ela se assustou?

- É que teu filho caiu do terraço e morreu. Com a queda, a mula assustou-se.

- E sua mãe, como está?

- Morreu de dor pela perda do filho.

- E quem está tomando conta da casa?

- Ninguém, porque virou cinzas: a casa e tudo o que nela havia.

- Como começou o incêndio?

- Na mesma noite em que a senhora morreu, a criada, no velório pela senhora defunta, esqueceu uma vela acesa na câmara e começou o incêndio, que se espalhou pela casa toda.

- E onde está a criada?.

- Ela quis apagar o fogo, mas caiu-lhe uma viga na cabeça e ela morreu.

- E tu, como conseguiste escapar, sendo tão preguiçoso?

- Quando vi a moça morta, fugi.

O senhor procurou abrigo num vizinho que o acolheu e exortou-o a enfrentar cristãmente as adversidades.

***

Um pastor sonhou que tinha mil ovelhas. Um mercador quis comprá-las para revendê-las com lucro e queria pagar duas moedas de ouro por cabeça. Mas o pastor queria duas moedas de ouro e uma de prata por cabeça. Enquanto discutiam o preço, o sonho foi-se desvanecendo. E o vendedor, dando-se conta de que tudo não passava de um sonho, mantendo os olhos ainda fechados, gritou: "Uma moeda de ouro por cabeça e você leva todas...".



[1] . Encontra-se em PL 157, 671 e ss. Seguimos também o original latino da edição de Angel González Palencia, Madrid-Granada, CSIC, 1948.

[2] . Nessas historietas, surge o servo Maimundus nigrus, o sagaz preto Maimundo - nome de nítida ressonância semítica que acentua, em latim, o preconceito, por sugerir immundus -, guloso, falador e preguiçoso, que nunca se dá mal. Uma espécie de Macunaíma ou Pedro Malazartes da época.