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A Medicina de Família: um Caminho
para Humanizar a Medicina

 

Pablo González Blasco*

 


O Humanismo volta a estar na moda, ou pelo menos na boca de muitos. E se os que falam estão de algum modo congregados na área da assistência à saúde, o comum denominador das queixas, e dos desejos de melhora, acaba sendo a humanização, quer dizer, a falta da mesma. Reclama-se maior humanização na saúde, na medicina. Uma reclamação que se assemelha ao desejo imperioso de respirar ar puro após estar encerrado num ambiente enrarecido. Ou como a curiosa sensação, metade dor, metade vazio, com que o estômago clama por alimento. Algo semelhante ao que dizia o filósofo Ortega y Gasset, referindo-se à invocação pela  ética ausente, que é outra reivindicação atual:  é como a dor que sente o membro fantasma, aquele que foi amputado e não existe mais. Reclamação e desejo comum, de algo que falta sem se saber exatamente o que é, ou como se adquire. São sinais do nosso tempo, órfão de conceitos, saturado de emoções difusas, parestésicas, de difícil localização. Sente-se a ausência de algo, não se sabe exatamente o que falta, e muito menos se conhece o caminho que nos pode levar a sarar essa deficiência. Por isso, se pretendemos aprofundar no tema, não teremos mais remédio que iniciar-nos numa série de reflexões, aparentemente simples, mas de vital importância para delimitar o tema de que estamos falando.

Devemos nos perguntar, em primeiro lugar, o que é seja humanismo, e qual a relação que, nós médicos, temos com semelhante conceito. A seguir, se de verdade comprovamos que o humanismo é necessário para o bom andamento da medicina, teríamos que nos interrogar sobre como isto se encaixa dentro do nosso universo; em outras palavras, o que teria de ser humanizado, ou pelo menos, reconstruído e repensado desde a perspectiva do humanismo. Finalmente, qual o papel que a Medicina de Família tem em todo este processo de humanização.

Medicina de Família e Humanismo

Iniciaremos nossa reflexão pelo aspecto final, não por vontade de tumultuar uma ordem aparentemente lógica acima exposta, mas para justificar a abordagem do tema que será feita desde a perspectiva da Medicina de Família. Afinal, é preciso mostrar as credenciais que a Medicina de Família possui para falar deste tema, de limites aparentemente pouco precisos, com propriedade.

Dizer que a Medicina de Família é um caminho para humanizar a medicina, implica duas coisas aparentemente óbvias, mas sumamente importantes. A primeira é que a Medicina de Família é um caminho, mas não é o único, existem certamente outros. A Medicina de Família não reivindica, em hipótese alguma, exclusividade neste empenho humanizante que é preocupação de muitos, talvez de todos os envolvidos na atenção à saúde. A segunda é exatamente esta: a Medicina de Família tem realmente um caminho, isto é, um sistema, uma metodologia própria para abordar o tema da humanização. Não é mero detalhe esta segunda questão pois, vivemos momentos onde após a preocupação pela re-humanização da medicina e pela ética, a medicina de família passa a ocupar um alto lugar na escala dos temas na moda, e consequentemente, na boca e opiniões de tantos. Também muito se fala de medicina de família, muito se opina, e corre-se um risco análogo ao que sofre o conceito do humanismo: falar de algo que não se sabe bem o que seja, cujo conceito preciso se des-conhece, como se mais se tratasse de uma intuição –uma sensação de algo que todos sabem fazer e opinar- e não de uma ciência que tem limites muito bem determinados.

Daí  ter iniciado nossas reflexões pelo final. Apresentar as credenciais que a Medicina de Família tem para tomar cartas no assunto da humanização da medicina supõe, em primeiro lugar, esclarecer que a Medicina de Família tem um corpo próprio de conhecimentos [i] , uma metodologia elaborada que fundamenta o seu sistema, e que a abordagem que possui a torna capaz de opinar e contribuir –somando esforços, nunca exigindo exclusividade- no processo de humanização da Medicina. A metodologia da Medicina da Família apoia o seu corpo próprio de conhecimentos num tripé sempre presente. Primeiramente a abordagem do paciente, e não da doença,  como centro dos seus estudos –Medicina Baseada na Pessoa, Patient-Centered Medicine-  e que a capacita para desenvolver Atenção Primária à Saúde. [ii] , [iii] Em segundo lugar a preocupação contínua com o processo de educação médica que faz do Médico de Família um educador que reflete sobre suas práticas e sobre o processo de formação continuada. Finalmente, o caráter humanista do médico de família, que procura nas ciências humanas contínuos recursos para formar-se e conhecer-se melhor, ao tempo que melhora o conhecimento do seu objeto principal de estudo: o ser humano. Atenção Primária, Educação Médica, Humanismo: três linhas mestras que delimitam o campo da Medicina da Família na sua versão acadêmica, inserida na Universidade, lugar onde se formam os futuros médicos. 

O perfil peculiar que este tripé confere à Medicina de Família, faz com que alguns pesquisadores apontem uma quarta caraterística que se decorre naturalmente dentro deste conjunto bem definido: a formação de lideranças. O Médico de família -porta natural de entrada para a saúde procurada pelo paciente, educador e professor, conhecedor do ser humano dentro do seu contexto- é um formador de lideranças, um criador de opinião, e sempre, o melhor interlocutor do paciente que procura ajuda.

Médico de família, médico de cabeceira, expressão de antigamente que possui força significativa, conceptual: aquele que, estando à cabeceira -como os livros preferidos do bom leitor- consulta-se habitualmente, recorre-se a ele para os dilemas do dia a dia. Um verdadeiro vademecum¸ etimologicamente “vai-comigo”, quer dizer, me acompanha nas minhas necessidades. Caberia perguntar-se porque um conceito e uma função antiga -a de médico de família- requer hoje toda uma formulação própria, uma metodologia elaborada, uma produção científica e de pesquisa que venha apoiar sua existência concreta. Esta análise nos desviaria do objetivo da presente reflexão, e tem sido abordada amplamente em outras publicações. Mas para não deixar fios soltos, e assumindo o risco que supõe as simplificações, caberia dizer que a função de médico de família como cuidador da saúde, como vademecum, que antigamente -50 ou 60 anos atrás- realizava-se intuitivamente, hoje requer uma formulação concreta, uma reflexão dentro do âmbito acadêmico para poder ser exercida de modo competente e adequado. Simplificando ainda mais: o que em outras épocas se dava por sabido, e os médicos sabiam fazer -já saiam prontos das escolas médicas para isso- hoje é preciso re-aprender a fazê-lo.

De que humanismo estamos falando?

Mostrado o passaporte que a Medicina de Família possui para falar destes temas, podemos mergulhar no núcleo das nossas reflexões. Por isso, é preciso perguntar-se: o que é humanismo, que quer dizer humanizar?  O termo humanismo costuma compreender três aspectos diferentes, embora complementares. Assim, humanista é o homem que define atitudes concretas diante da vida, fruto da sua reflexão e como conseqüência de uma filosofia que norteia sua existência.. Se este homem  humanista é médico, essas atitudes que envolvem a sua própria vida atingiram as outras vidas, aquelas que ele tem que cuidar, e por tanto implicarão uma postura concreta diante da vida humana, da vida doente, do sofrimento e da dor, da vida que se acaba. Em segundo lugar, o humanista tem como vizinho próximo a versão ativa, altruísta e afetiva dessa filosofia de vida: é o humanistarismo, a capacidade de comover-se diante da dor e da limitação alheia. Finalmente, precisa de um alimento que sustente, de modo continuado essa filosofia de vida, e as posturas concretas que ela implica. Dai surge o natural entrelaçamento com as humanidades -âmbito também do humanista- como via cultural de aproximação do conhecimento do homem, com suas grandezas e misérias.

Sobremaneira interessante a análise [iv] que compara o humano, o humanístico, o humanista e o humanitário em relação com a medicina, concluindo que embora conceitualmente diferentes todos estes qualificativos deveriam poder se aplicar ao médico. Estaríamos assim falando da  condição humana do médico, do  caráter humanitário da sua profissão, da  componente humanística da sua preparação e do caráter humanístico da sua orientação filosófica. E conclui este autor: “O conceito de médico implica  subjetividade criativa,  vocação altruísta,  profundo respeito ao especificamente humano,  sentido de solidariedade,  capacidade de comunicação interpessoal,  inclinação benevolente e disposição ao progresso próprio para melhorar sua contribuição para a humanidade. Sem estas qualidades não se pode ser médico”.  O clamor pelo humanismo ausente, nas suas variadas vertentes, levanta a questão da abordagem completa ao paciente, hoje batizada de holística. É este outro dos temas levado e trazido, que também figura em alta colocação na escala dos assuntos na moda, emparelhado com o humanismo, a ética, e a medicina de família. Na verdade, basta um mínimo de reflexão para surpreender-se de como é possível assistir alguém nas suas necessidades, ajudá-lo nas suas moléstias, por partes, em prestações, perdendo de vista o ser humano que temos diante. Ver a pessoa como um todo é algo absolutamente natural, quer dizer, próprio da natureza humana. No dia a dia, na rua, nas relações sociais, na conversa descontraída, na troca de serviços, no comércio e na amizade, haveria que fazer-se uma grande violência para relacionar-se com uma parte do interlocutor. É por tanto algo que as pessoas, os cidadãos comuns, independente do nível de instrução, fazem naturalmente. Por isso surpreende a necessidade desta discussão entre os médicos e entre os profissionais dedicados à atenção da saúde que, mais do que ninguém, deveriam compreender que o seu serviço destina-se à pessoa que o requer,  nunca a uma parte dela.

Cabe perguntar-se o que acontece com os médicos –leia-se profissionais da saúde em geral- para que sintam a necessidade de trazer à discussão, com vontade de recuperar, o tema da humanização em versão globalizada, completa, holística. Será que é preciso repensar algo natural que o cidadão comum tem por natureza? Assim sendo, qual é o mecanismo de perda desta perspectiva? Será que o processo de formação, de profissionalização dos médicos, tem alguma culpa ou responsabilidade nesta situação completamente paradoxal? Se por um lado seria simplista afirmar que a culpa da desumanização dos médicos a tem as faculdades de medicina que não formam médicos humanos, por outro seria ingenuidade não desconfiar que algo acontece no processo de formação para que as pessoas percam algo que naturalmente possuem. E algo que, sem ter culpados voluntários atuando de má fé, deve ser importante pois se consegue desumanizar -ou pelo menos apresentar um produto, o médico, que é capaz de esquecer um tema que deveria ser para ele como o oxigênio para respirar.  Simplificando de novo, e assumindo os riscos da simplificação poderia se intuir que alguma analogia teria com o já dito em relação à Medicina de Família: é preciso re-aprender a fazer o que antes se fazia naturalmente, ou, pelo menos, não esquecer como fazê-lo. O tema, amplamente tocado nas reuniões de Medicina de Família e Humanismo, de que o homem é um ser que esquece vem imperiosamente à memória. Um ser que esquece, não os detalhes -o que seria perdoável- mas esquece o fundamental. No caso do médico esquece que ele, médico, é um ser humano e que trata com pessoas

Este clamor de recuperação tem produzido análises interessantes. E às vezes a procura é tão compulsiva que se chegam a confundir os termos. Numa abordagem interessante [v] pergunta-se o que estamos querendo na realidade: uma medicina holística ou, simplesmente, um médico humano. Em outras palavras: qual é o médico ideal? O conceito holístico assume perfis de modismo. E neste termo encerram-se além das expectativas naturais de um médico humano, uma ampliação de conceitos, que acabam interpretando de um modo médico a própria vida. Uma visão holística, sim, mas de toda a vida e não apenas do problema que nos ocupa. Aqui abre-se uma porta para todo tipo de práticas alternativas à medicina que podem, e provavelmente tem o seu valor, mas que não nos cabe aos médicos analisá-las. Nós médicos, professores das escolas médicas, temos que preocupar-nos com o processo que é da nossa responsabilidade, e com o tipo de médicos que formamos. Se além da escola médica existem outros recursos que ajudem o paciente, a pessoa, na doença e na vida, é algo que como acadêmicos não nos compete analisar. Por isso o autor afirma na sua análise que o conhecimento de quem é o paciente, da perspectiva personalista,  não é medicina holística mas o modo normal em que a medicina deveria ser praticada. E conclui: “Se queremos médicos humanos, teremos de aceitar que os médicos não se podem limitar a praticar a medicina, mas serem também pessoas de qualidade.  O bom médico é sábio, compassivo, educado e culto; e sabe que a vida é muito mais do que medicina, para o médico e, naturalmente, para o paciente”. Em trabalhos anteriores [vi] , e com outras palavras, glosamos esta mesma idéia, afirmando que o humanismo é inato à profissão médica. Um médico sem humanismo não será propriamente médico; na melhor das hipóteses trabalhará como um “mecânico de pessoas”. Precisa o médico do humanismo para vestir a ciência com trajes humanos, para torná-la palatável ao paciente. Quer dizer, dissolver a ciência em humanismo, embrulhar em aconchego humano a técnica e os remédios de que o paciente deverá servir-se. Esse  é o veículo que permite a correta assimilação da técnica por parte do paciente, que torna a medicina -a nossa medicina, a fabricada pelos médicos- realmente útil para o paciente.

O que temos de Humanizar?

Progredindo nas nossas reflexões cabe perguntar-se o que teríamos de humanizar neste processo de recuperação humanista. Surgem três campos evidentes de atuação, que analisaremos a seguir. Primeiramente é preciso humanizar -que é, insisto, re-aprender- o relacionamento com o nosso consumidor, com o paciente.  Relação Médico-Paciente, outro tema que acrescido aos anteriores -humanismo, ética, medicina de família, visão holística- vem engrossar a galeria de tópicos na moda. Não é mau que isto esteja de moda, o que é pernicioso é não pensar no motivo, nas razões que colocaram no palco estas questões. E como toda moda, quando é simples modismo, acaba por se desgastar e desacreditar os que com ela comungam. Pensar, perguntar-se, refletir; uma atitude que é filosófica, também natural do ser humano, e da qual nosso tempo está carente, Vivemos tempos inundados de informação, de comunicação, e absolutamente desnutridos de raízes filosóficas. Uma situação que lembra a triste condição do diabético, inundado de açúcar e de nutrientes, mas sem insulina que consiga transportar estes elementos, favorecendo sua assimilação. E o que deveria ser benéfico, converte-se em prejudicial, como as modas não refletidas, os lugares comuns, que desgastam, esvaziam, e nos desidratam de humanismo. Uma verdadeira síndrome de má absorção de conceitos, de carência de enzimas filosóficas do hábito de pensar. A conhecido sentença de W.Osler encaixa perfeitamente neste contexto: “As humanidades são os hormônios que catalisam o pensamento e humanizam a prática médica”. Também Sir William Osler está sendo situado no grupo de risco dos modismos, pois cada vez são mais os que o citam sem entendé-lo, sem aprofundar de modo conseqüente no seu pensamento.

O segundo campo de recuperação humanista será o relativo ao próprio processo de formação médica, isto é, a (re)humanização da escola médica. E, por último, o espinhoso tema de humanizar o protagonista das nossas reflexões, o próprio médico. Como humanizar o médico que, afinal, o último responsável, a via final comum, de toda esta situação paradoxal, e como manté-lo humanizado, em formação continuada?

Humanizando a relação Médico-Paciente

Muito se tem falado e escrito sobre a relação médico paciente, e não o nosso intuito repetir o que já se sabe. Sim é preciso dizer que, pelo comum do tema –mais um modismo- é preciso uma sistemática própria, para fugir do lugar comum que leva a parte nenhuma, e acaba no lamento estéril.

Talvez o primeiro passo na humanização deste relacionamento –que é difícil imaginar como não sendo humano- é o interesse real do médico. Um interesse que deve levá-lo a saber entrar no mundo do paciente, a entender o que a doença representa para o paciente. Aqui entra a distinção importantíssima entre a doença –aquilo que os médicos estudamos- e o estar doente –a vivência da doença por parte do paciente. A subtil distinção que o português nos traz entre doença e enfermidade, é sublinhada no inglês quando se distingue “disease”, (doença) de “illness”(estar doente, enfermidade) [vii] . Se o médico não atinge o mundo do paciente, lidará apenas com uma doença, mas não chegará no paciente, que é onde a doença realmente existe, personalizada em alguém. Esta compreensão do fenômeno da doença exige do médico uma metodologia que requer novos paradigmas de abordagem do paciente2,3, [viii] .

O paciente sabe distinguir se o médico consegue chegar no mundo dele, se está realmente fazendo um esforço por ver a doença do ponto de vista do paciente. E o julgamento do paciente é certeiro e implacável. Dizia Osler que mais importante que aquilo que o médico faz é o que o paciente pensa que o médico faz. Pode ser um argumento subjetivo, aparentemente pouco científico, mas é o que, no fim, acaba regendo esta relação que pretendemos humanizar.

Um estudioso do tema do relacionamento [ix] afirma que a experiência da doença nos reduz a uma dependência de crianças. Necessitamos ser cuidados, e de alguém que nos tire a dor da doença e a dor que a incerteza –o que vai ser de mim- provoca.. O homem doente requer uma explicação da dor que lhe lembra sua condição  mortal. A medicina atual delega responsabilidades, distribui trabalhos, procura eficácia. Entram em jogo equipes, normas e códigos, cuja efetividade ninguém questiona mas quando mal conduzidas são uma verdadeira ameaça para  o relacionamento pessoal com o paciente. O que o médico não pode é delegar uma função que  cabe a ele, e na qual o paciente faz questão de apostar, representada pela atitude do paciente. Atitude de confiança perante a qual o médico deve responder à altura. Em frase conhecida, uma confiança perante uma consciência, representando o núcleo da relação médico paciente.

Este mesmo autor que analisa o desaparecimento do médico pessoal conclui que conhecer  a pessoa que tem a doença é pelo menos tão importante como conhecer a doença que tem aquela pessoa. E, como o paciente é um bom diagnosticador do relacionamento com o seu médico, sabe-se mais seguro com um médico sábio do que com um médico treinado artificialmente. Sabedoria, pois, que é conhecer a pessoa para nela investigar a doença, aspecto essencial neste relacionamento que se deseja humanizar.

O progresso técnico, e os avanços na investigação rendem multidão de trabalhos e um número incontável de informação. Torna-se preciso apurar estas informações, de modo racional, obtendo as melhores evidências científicas para aprimorar a função do médico. Surge a Medicina Baseada em Evidências como qualidade da informação. Agora o desafio é do médico que deverá fazer chegar esta qualidade técnica até o paciente, em linguagem inteligível. Dissolver de novo a técnica em humanismo para que o paciente possa assimilá-la. E o humanismo reveste-se neste caso de contemplar outros níveis de significância que, aparentemente subjetivos, são os que contam para o paciente. Assim ao nível de significância estatística –que confere alto nível de evidência a um estudo- , seguido do nível de significância clínico –até que ponto é possível aplicar este estudo à população e ao paciente em questão- soma-se um terceiro nível de significância, denominado pessoal. [x] É uma terceira dimensão que pode-se resumir no significado que para um paciente determinado tem a sua doença, o tratamento proposto, o prognóstico. São os valores, atitudes, crenças, medos e expectativas do paciente que, determinarão em último termo, a eficácia do tratamento e, evidentemente, a adesão ao mesmo.

Mergulhar neste mundo do paciente requer metodologia, sistemática, mudança de perspectiva na abordagem e no relacionamento. Também aqui as humanidades nos trazem luz e explicação sobre este ponto.  “Não vemos as coisas como elas são, mas como nós somos –dizia Kant. E o poeta, Fernando Pessoa escreve: “A vida é o que fazemos dela/ As viagens são os viajantes/ O que vemos não é o que vemos/ Senão o que somos”

Humanizar o relacionamento é obrigação do médico. Requer preparar o espírito, limpando o ânimo de distrações, para dedicar-se ao paciente que está diante dele, e saber pensar em algo óbvio mas que, por vezes, se esquece na rotina metodológica do pesquisador. “Por que ele está aqui, na minha frente? O que espera de mim?”. Esta simples frase, que coloca o centro do relacionamento no paciente, pode ser um bom lembrete com força humanizante. Acertadamente resume esta atitude Marañon, centrando esta limpeza de distrações numa analogia por demais plástica: o capacho que se coloca na porta de um lar, com dupla finalidade no entender dele. Uma evidente que consiste em limpar o calçado. Outra, oculta, preparar o espírito para adentrar-se na intimidade alheia. “Como médico tive de pisar centenas de lares desconhecidos e nunca chamei à porta sem emoção. Cada casa é um mundo, diferente do mundo externo; e em qualquer delas pode a nossa alma encontrar uma faceta nova para sua vida e, talvez, o seu destino. Sempre pensei isto enquanto deslizava os meus pés com unção, tivessem ou não barro, na esteira do umbral que nos prepara para a intimidade” [xi]   

Humanizando o Ensino Médico

O processo de formação do médico, a faculdade de medicina, é o segundo campo onde é preciso inserir o humanismo. O paradoxo comentado anteriormente nos coloca frente ao dilema de saber o que acontece nas escolas médicas para que os médicos ali formados percam, quando graduados, uma atitude que é natural ao ser humano. Provavelmente não se trata tanto de encontrar golpes desumanizantes como omissões no processo, mesmo involuntárias, por parte dos responsáveis.

Uma interessante análise [xii] sobre a ciência e o humanismo na medicina sublinha que historicamente sempre houve um equilíbrio na medicina, entre as duas facetas inseparáveis que a compõem, a medicina como ciência e a medicina como arte. Os avanços científicos vertiginosos requerem, para manter este equilíbrio uma ampliação do âmbito do humanismo, quer dizer, um humanismo à altura do avanço técnico. É talvez esta ampliação do humanismo, adaptada aos dias de hoje, em linguagem atual, da que carece o processo de educação médica. Cai-se assim numa desproporção que se reflete em profissionais formados tecnicamente, com sérias deficiências humanas. Profissionais disformes, com hipertrofias, sem equilíbrio, que naturalmente não conquistam a confiança do paciente que espera um médico equilibrado.

É missão da Universidade, compromisso dos envolvidos no processo da formação médica, ampliar o conceito humanista, em moldes modernos, abrindo horizontes e novas perspectivas. A Universidade, representativa do progresso, tem de se esforçar por atingir um novo e moderno equilíbrio das duas facetas da medicina. E para isso é preciso, novamente, metodologia, sistemática, re-aprender a fazer as coisas, quando estas coisas são muitas, estão envolvidas em alta tecnologia, e são comandadas por um progresso científico que avança a cada segundo. E o autor aponta como missão da Universidade  recuperar nossa excelente inspiração e magnífica função humana, sem impedir, de modo algum, a aplicação da ciência aos problemas da doença mas, pelo contrário, fortalecé-la em sua esfera apropriada e sobre bases mais amplas que até agora. Humanizar o ensino médico requer uma avaliação do processo de ensino, para procurar um aprendizado técnico e humano, equilibrado e simultâneo.

Dentro de um aprendizado moderno que procura o equilíbrio os modelos médicos –o professor como modelo- é um catalisador de aprendizado. O professor é modelo para os estudantes todo o tempo, querendo ou não, estando ciente ou não deste processo [xiii] . Provar que isto é assim pareceria desnecessário, pois é o modelo normal de aprendizado do ser humano, na família e na vida, através da experiência e com a ajuda de modelos que lhe sirvam de exemplo. Mas a Universidade –em concreto a escola médica- demora para incorporar esta mensagem óbvia de aprendizado do ser humano, e tenta-se ensinar de um modo artificial, que não corresponde aos modos em que o ser humano, no seu dia a dia, aprende.

Talvez por isto, numa tentativa de medir quantitativamente a importância destas atitudes, surgem estudos com desenhos epidemiológicos que classicamente se utilizam para investigar etiologias de doenças. Um estudo recente [xiv] investiga através do desenho de caso-controle quais seriam os atributos de excelência do médico que pode ser colocado como modelo. O estudo aponta como modelos a serem imitados médicos que possuem caraterísticas que implicam grande dedicação do seu tempo ao ensino e a discussão de casos com os estudantes, enfatizam os aspectos psicossociais da medicina, e destacam a importância da relação médico paciente no ensino médico e procuram mostrá-la na prática. Talvez a maior importância de semelhante estudo não são as caraterísticas apontadas –que são fáceis de se deduzir- mas que são atitudes passíveis de serem ensinadas, e por tanto, incorporadas numa metodologia de ensino.

Humanizar o ensino é algo mais do que simples carisma, que depende de dons inatos. O carisma não é transmissível, mas estas atitudes apontadas como modelos de excelência podem ser ensinadas e aprendidas, constituindo-se assim num corpo próprio de conhecimentos, com objetivos educacionais precisos. Algo que a escola médica pode incorporar através de uma sistemática própria sempre que se ofereça espaço para tal modelo educacional.

Humanizando o médico

Humanizar o médico, o protagonista deste processo e o responsável pela presente discussão, seria nossa última reflexão. Reflexão está que está intimamente imbricada com as duas anteriores. O médico se humaniza, em primeiro lugar, através do relacionamento com o paciente se coloca condições para tal, se aproveita o que de humanismo cada paciente lhe traz. Para isso o médico precisa refletir no seu processo de auto-construção, precisa ser um ser que atua e reflete, de modo atual sobre as suas atitudes – um reflective practicioner8.

É preciso oferecer ao médico recursos para manter o humanismo, aquele equilíbrio que o processo de formação na Universidade, já humanizado, lhe conferiu. Talvez por isso, mais importante do que dar informações nas escolas médicas, é preciso mostrar caminhos para a vida. Afinal, a informação está hoje, no mundo moderno, ao alcance de qualquer um. O que se necessita é mostrar o que fazer com esta informação, e sobretudo criar o hábito de pensar, de refletir, de filosofar sobre as próprias atitudes. Algo que se não se aprende na Universidade, dificilmente se adquire depois. Poderia se argumentar que em outras épocas as pessoas que pretendiam ser médicos e ingressavam nas faculdades de medicina, tinham já esta atitude reflexiva implícita. Hoje, por um processo seletivo repleto de deficiências, não se consegue apurar os parâmetros do que poderia ser a vocação médica. Mas se a usina de médicos é a faculdade de medicina, ela deve enfrentar este desafio e suprir, na medida do possível, as deficiências do processo seletivo.

O ensino das humanidades na escola médica [xv] , [xvi] , [xvii] , [xviii] tem se mostrado de importância notável para o aprendizado deste hábito de pensar, para treinar a reflexão e facilitar um aprendizado que integra, simultaneamente, a ciência e a arte, o raciocínio clínico e o ético. O uso das humanidades na medicina supõe um particular conceito de educação dos médicos que o paciente e o público solicita. O paciente quer um médico educado -quer dizer, alguém que não possua apenas conhecimentos, métodos clínicos e experiência, mas também que seja capaz de apreciar cada paciente como um ser humano que tem sentimentos e desejos, que possa entende-lo e ajuda-lo explicando-lhe sua doença e amparando-o no sofrimento. Para saber lidar com estas realidades as humanidades ajudam, e muito, já que educação é mais do que simples treino. Implica uma atitude reflexiva no médico e um desejo contínuo de aprendizado ao longo da sua carreira profissional.

“Nihil humanum alienum est a me” –dizia Terêncio, e assim teria que ser para o médico, que nada humano lhe fosse indiferente, alheio à contemplação do seu espírito. O humanismo para o médico é o compromisso de pensar, aprender a pensar. Sem pensamento domesticado não há humanismo. O homem contemporâneo mostra-se incapaz de suportar a solidão, o silêncio e a meditação. Mas é este homem que bate na porta da faculdade de medicina e pede que lhe ensinemos a ser médico. Um desafio e um compromisso iniludível que requer um processo de educação continuada através da vida, primeiro como estudante, depois como médico. Ensinar a viver num exercício de responsabilidade, sublimando os erros, aprendendo com eles, ponderando os sucessos, numa reflexão permanente.

A medicina de família: um caminho para humanizar a Medicina

Humanizar a relação médico-paciente, humanizar o ensino médico, humanizar o médico e oferecer-lhe recursos continuados para manter esta atitude. Em todos estes aspectos a Medicina de Família tem sua própria metodologia, pois não é mais do que a aplicação prática do tripé onde se apoia o seu corpo próprio de conhecimentos. Por isto, assim como fizemos com o humanismo no início destas reflexões, dissecando os termos, delimitando conceitos, precisando a terminologia, um trabalho análogo deve ser feito à volta da Medicina da Família para evitar equívocos.

Definir a abrangência, o papel e a função da Medicina de Família como disciplina acadêmica, inserida no processo universitário, emparelhada e comprometida com a formação médica, é tema de freqüentes reflexões, congressos e publicações provenientes de países onde esta disciplina está assentada há mais de 25 anos nas escolas médicas.1, [xix] , [xx] , [xxi] No nosso pais, as tentativas necessárias e exemplares para a instalação desta disciplina não conseguiram atingir ainda o núcleo da graduação médica. Cabe a nós aprofundar nos conceitos e oferecer soluções possíveis, que serão uma resposta concreta –entre muitas outras que podem ser oferecidas- à preocupação por humanizar a medicina. Seria deste modo, a Medicina de Família na Universidade, um elemento integrante no processo formativo, e um ambiente de reflexão continua sobre o próprio processo de formação médica, onde poderia florescer um humanismo médico, atualizado, moderno, reflexo do equilíbrio no binômio ciencia-arte que o médico deve representar. E deste modo, a Medicina de Família, instalada no âmbito acadêmico, contribuiria  não apenas para construir os futuros médicos de família, com a qualidade universitária que deles se espera, mas também como uma ferramenta eficaz para formar médicos que saibam estar atentos aos seus pacientes, interagir com eles, adaptar-se às suas necessidades, inde-pendentemente da especialidade que os estudantes assim formados sigam depois. Nes-ta dimensão, a Medicina de Família surge como instrumento eficaz na própria for-mação médica e como caminho possível no processo de re-humanização da medicina.

O caminho é longo. A história da Medicina de Família em outros países, hoje já instalada na Escola Médica assim o mostra. Nós teremos que escrever a nossa própria história, que por enquanto é um ideal, quase um sonho, que começa a apresentar os primeiros frutos. As palavras de um médico humanista, Gregório Marañón, podem servir de incentivo no esforço que deveremos desempenhar e como ponto final destas reflexões: “Viver não é só existir/Mas existir e criar/ Saber gozar e sofrer/ Não dormir sem sonhar/ Descansar/ É  começar a morrer” 



· Diretor Científico da SOBRAMFA- Sociedade Brasileira de Medicina de Família. Coordenador do Programa Eletivo em Medicina de Família do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde- EPM, UNIFESP. Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM)         



NOTAS

[i] McWHINNEY, I. “A textbook of Family Medicine”. New York. Oxford University Press. 1997
[ii] STEWART,M  et al. “Patient-Centered Medicine. Transforming the Clinical Method”Sage Publications, Inc. California. 1995
[iii] MENGEL,M; FIELDS,S : “Introduction to Clinical Skills- A Patient-Centered Textbook” Plenum Publishing Corporation. New York. 1997.
[iv] LIFSHITZ, A (1997) -  "The human, humanistic, humanist and humanitarian in medicine" Gac Med Mex  133 (3): 237-243
[v] CHARLTON, BG (1993) - "Holistic medicine or the humane doctor" Br J Gen Pract 43: 376, 475-7
[vi] BLASCO, P.G.: “O médico de família, hoje” São Paulo. Sobramfa. 1997.
[vii] KLEINMAN, A; EISENBERG, L; GOOD, B (1978) “Culture, Illness, and Care. Clínical Lessons from Anthropologic and Cross-Cultural Research.”.Ann Int Med 88:251-258
[viii] STANGE,K; MILLER, W.L, McWHINNEY, I (2000): “What is the Science Base of Family Practice and how will it be developed” in Keystone III Conference, http://aafp.org/keystone/stange.html
[ix] MC.CORMICK, J (1996) - "The Death of the personal doctor" Lancet 348: 667-8
[x] KIERAN, G. S.; MAC AULEY, D;  GRAY, D.P (1998) “Personal significance: the third dimension”. Lancet  351:134-136
[xi] MARAÑÓN, G. “Prólogo a mis prólogos”. Espasa Calpe. Madrid, 1966, p. 4
[xii] ROBB, Sir Douglas: “Ciência , Humanismo e Medicina” Rassegna, 1985
[xiii] RUBENSTEIN,W; TALBOT,I “Medical teaching in ambulatory care”Springer Publishing Company. New York. 1992
[xiv] WRIGHT, SM; KERN, DE; KOLODNER,K; HOWARD, DM; BRANCATI,FL (1998) “Attributes of Excellent Attending-Physician Role Models” New England Journal of Medicine 339 (27): 1986-1993
[xv] CALMAN, KC (1997) - "Literature in the education of the doctor" Lancet 350:1622-24
[xvi] CALMAN, K,C; DOWNYE, R.S.; DUTHIE, M(1988). “Literature and medicine: a short course for medical students”. Medical Education 22: 265-9
[xvii] SHAPIRO, J. “Literature and the Arts in Medical Education”(2000) Fam Med 32: (3) 157-8.
[xviii] BLASCO et al. “O valor dos recursos humanísticos na Educação Médica: Literatura e Cinema na Formação Acadêmica”  in http://www.hottopos.com/videtur8/pablo.htm
[xix] PHILLIPS, W.R.; HAYNES, D.G. (2000) “What is the Domain of Family Practice? Scope, Role and Function” in Keystone III Conference,   http://aafp.org/keystone/phillips.html