Home | Novidades | Revistas | Nossos Livros | Links Amigos A Presença de Elementos Míticos na
Narrativa de Teolinda Gersão
Maria Heloísa Martins Dias
Unesp/Ibilce/Dell
São José do Rio Preto
Focalizar elementos míticos em uma determinada ficção significa considerá-los em um universo específico em que atuam com significações próprias, ou seja, significa tratá-los como elementos já filtrados por uma consciência crítica que lhes deu uma configuração singular, deslocando-os de sua origem primitiva para novo contexto.
É com esse intuito que passo a falar na presença de certos mitos na narrativa de Teolinda Gersão, escritora portuguesa contemporânea, autora das obras O silêncio (1981), Paisagem com mulher e mar ao fundo (1982), Os guarda-chuvas cintilantes (1984), O cavalo de sol (1989), A casa da cabeça de cavalo (1995), A árvore das palavras (1997), Os teclados (1999) e Os anjos (2000).
As relações entre mito e literatura são extremamente estreitas e vêm se tecendo há muito tempo, o que pode se explicar pelo próprio sentido original de mito (em grego mythos), narrativa ou fábula. Entretanto, justamente por causa dessa conjunção natural (mítica?) entre as duas linguagens, que se recorrem mutuamente, é preciso tomar com cuidado tal inter-relação para não se correr o risco de incidir na evidência das significações simbólicas genéricas.
Tomar os mitos como imagens ou representações que têm a força de resistir, graças à moldura que os formou e aos valores que instituíram, é acentuar o traço de permanência ou de uma sacralidade que desafia o tempo. Neste sentido, estaríamos diante daquilo que Roland Barthes denomina de “protótipo imóvel”, ao falar sobre o mito. Na visão barthesiana, o mito acaba por instituir um dogma e um ritual, não levando à criação e sim à perpetuação de valores sacralizados, exibindo para o homem uma identidade paralisada e paralisante, já que seu objetivo é “imobilizar o mundo” (1978: 175). “Estando à direita”, o mito comporta uma ideologia estagnadora, sustentada por valores absolutos que se pretendem eternos, imutáveis, emoldurados na sua aura própria. Como convém, conforme Barthes assinala, à moral burguesa, apegada a essências que devem ser mantidas como bens valiosos.
Ora, para enxergar o mito como algo destituído dessa negatividade ou reacionarismo assinalados por Barthes, é preciso deslocar essa permanência, ou melhor, desequilibrar a moldura que cerca o mito, o que só pode se fazer por um olhar transgressor e criativo. Aí, sim, as relações entre mito e literatura podem ganhar conotações insuspeitadas. O que importa perceber, nesse caso, é o tratamento singularizado dado aos mitos por uma linguagem narrativa que os recria, em seus procedimentos de construção, para gerar novos significados.
Olhando as coisas desse modo, isto é, com um olhar não ingênuo nem anacrônico mas atento a seu percurso histórico rumo à modernidade, é possível compreender que os mitos não interessam como imagens em si mesmas, pairando em sua esfera absoluta, autônoma, mas como objetos passíveis de reconstrução permanente. Por outras palavras, para a consciência moderna o resgate do mito, por via ficcional ou crítica, só pode se fazer se souber transformá-lo em uma realidade móvel, colocando passado e presente em uma contínua circulação de trocas.
A noção de permanência e com ela a de tradição, incrustadas no mito, nos fazem pensar na inevitável relação entre passado e presente, dimensões que se projetam na história e ajudam a construí-la.
Se os mitos permanecem com toda a força de sua simbologia, não é porque esta seja imutável e sim porque as leituras que ela possibilita vão modificando esses significados originais, instaurando novas funções para as imagens mitificadas ou já codificadas. Digamos que se trata de uma des-mitificação que opera, portanto, em dois sentidos: retirar as imagens da “imobilidade” (Barthes, novamente) de sua função enquanto arquétipos e revitalizar os mitos, construindo-os como outros.
Trata-se, afinal, do mesmo processo móvel de leitura que coloca em jogo passado e presente, conforme postularam T.S.Eliot, Walter Benjamin e Borges. Todos, cada um à sua maneira e atento ao seu sistema próprio de referências, trouxeram importantes reflexões para o estudo da literatura. Em seus ensaios, respectivamente, “Tradição e talento individual” (1919), “Sobre o conceito de história” (1940) e “Kafka e seus precursores” (1951) defendem a necessidade de se perceber o círculo de correspondências tensivas entre tradição e modernidade, de modo a tornar ambos universos relativos e igualmente necessários como impulsos históricos. A famosa afirmação de Borges de que “cada escritor cria seus precursores; sua obra modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro” (1974:712), bem como o não menos famoso comentário de W. Benjamin sobre a gravura Angelus Novus de Paul Klee para definir a história (1985:226), chamam a atenção para o fato de que a recuperação do passado só pode se dar por um movimento dialético que projeta as tensões entre afirmação e negação, olhar e não olhar, costas e face; um gesto ambíguo, tal como o anjo do quadro citado. Essa ambigüidade posta na relação entre passado e presente tem como maior propósito desfazer a representação homogênea ou contínua da história, em favor de uma mobilização ou atualização do passado. Este, segundo a postulação benjaminiana, não se entrega a nós como um conjunto de acontecimentos acabados, mas somente nos envia sinais cifrados que precisam ser trabalhados pela consciência crítica a fim de re-construí-los em sua relação com o presente. Noutros termos, é preciso evitar a eterna repetição do mesmo, escapar à tirania do peso do passado; “é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que está sempre procurando dominá-la.” (1985: 224). E aqui parece que encontram ressonância as palavras de Barthes acerca do mito. De fato, a força do passado, positiva ou negativa, deixa de existir quando ele é focado pelo presente que o relativiza. Continuando com a leitura de Benjamin, só poderemos aproveitar a riqueza das energias humanas encerradas no passado se formos capazes de agir, no presente, com paixão libertadora.
Ora, é com esse tipo de “paixão” que devemos nos relacionar com os mitos. Retomá-los não significa uma entrega passiva ou encantada às suas imagens e funções, mas um gesto duplo de aproximação e distanciamento, contemplação e crítica. É desse modo que o mito vem sendo revisitado pela consciência do homem moderno. E uma escritora contemporânea como a de que me ocupo neste ensaio não poderia deixar de assumir, em sua ficção, esse posicionamento frente aos mitos. Considerando-se, ainda, tratar-se de uma escritora portuguesa, então nosso quadro de reflexões torna-se mais complexo.
O ensaísta Eduardo Lourenço, ao abordar o que denomina “psicanálise mítica do destino português”, subtítulo de seu livro O labirinto da saudade, parece trilhar o mesmo caminho de Barthes, embora centrando-se no universo português. Também para ele determinados mitos acabam se cristalizando como símbolos permanentes, atuando de forma poderosa junto ao povo, na medida em que o subjugam a uma atitude cultual. Essa subserviência, habilmente trabalhada por uma ideologia dominante que soube cultivar valores “ideais” e utópicos, contém uma natureza dupla de fascínio e temor. É então que se torna necessário exorcizar essas imagens mitificadas, paralisantes, que não conduzem à emancipação (à “paixão libertária”, segundo Benjamin) ou ao amadurecimento, ao contrário, perpetuam o imobilismo e a alienação. Se quisermos aproveitar também a noção junguiana de arquétipo – imagens psíquicas do inconsciente coletivo existindo como impulsos permanentes e carregados de uma simbologia já incorporada universalmente –, apenas teremos de recortar esse universal. Assim, poderíamos falar em arquétipos relacionados à história da nação portuguesa, portanto, elementos fundadores de uma identidade nacional internalizados no comportamento do povo lusitano. Antonio Quadros, outro ensaísta português, recolhe em sua obra (1986) esses arquétipos, embora os analise por um viés que se diferencia radicalmente do de Eduardo Lourenço. Segundo as reflexões de Antonio Quadros, o arquétipo é um elemento matricial, gerador de recorrências que caracterizam um modo de ser ou uma identidade; os elementos físicos ou substâncias primordiais, por exemplo, são considerados pelo autor como arquétipos, pois portadores de funções simbólicas e existindo como matrizes configuradoras de um percurso histórico. Dentre essas imagens ligadas a uma tradição que se impôs ao país, certamente o arquétipo marítimo é a mais evidente, pela força com que engendrou diversos mitos, conforme será analisado a seguir.
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Dos romances de Teolinda Gersão, Paisagem com mulher e mar ao fundo é o que mais intensamente enredou nas malhas de sua ficção os referentes históricos enquanto poderosos instrumentos de petrificação da consciência ou edificadores de mitos, que a narrativa se incumbe de exorcizar com a força de seus artifícios de construção.
Ao longo de seu percurso narrativo vão despontando imagens e motivos alusivos à isotopia nuclear desse discurso – a opressão – signo que adquire numerosas conotações, o que acaba por espelhar o desdobramento de sua força de atuação. Se algumas das imagens tornam transparente o significado que trazem em seu corpo significante, como é o caso de O S. – signo a apontar de imediato para a figura paradigmática da ditadura salazarista –, outras são menos evidentes, mas investidas também de forte carga semântica, graças à trama alegórica em que vêm envolvidas. Aqui, o exemplo melhor é a passagem, no final da segunda parte da obra, em que é focalizada a cerimônia de coroação do santo ou “Senhor do Mar”, segundo a visão coletiva que o cultua, prestando-lhe homenagem. Uma homenagem que tem duas faces, conforme veremos.
O episódio contém todos os elementos necessários à composição de um cenário dramatizado: culto, rituais, peregrinação do povo em procissão, canto, descrição das personagens, celebração da imagem do santo. A identificação do “santo” a uma figura mítica e tirânica fica evidenciada na expressão “Senhor do Mar”, com maiúsculas, numa clara alusão ao poder manipulador representado por esse arquétipo secularmente cultuado: sustentar a ideologia de um nacionalismo garantido pelas conquistas obtidas por via marítima. Esse “Senhor” ou santo às avessas, que se impôs ao país como saída (literal e figurada) para o encontro de outros espaços e à custa de abandonos e perdas, exerce a mais cruel das tiranias: a que afoga lentamente a consciência e a esperança. Essa é a voz do mar: “entrega-te ao meu poder e dorme em minhas águas, um povo de afogados, sem revolta(...)” (1982: 109)
Interessante é a confluência, criada pela narrativa, das duas forças injustamente colocadas em confronto: o exercício tirânico do poder do Senhor do Mar se opõe à prática ilimitada do imaginário associado à euforia mística. Maior “tirania” não há que essa correspondência entre a violência com que o Mar se apossou historicamente do povo e a violência apaixonada e deformante do culto a esse arquétipo. Assim, o mito da grandeza ou vocação marítima do país oculta o mito da opressão desse desígnio imposto ao povo, por isso é que vem representado pela figura de um santo a ser celebrado.
A dramatização se acentua pelo fato de toda a cena vir envolvida por uma mescla de diferentes vozes que se vão alternando para articular o substrato ideológico, qual seja, o da exploração e manutenção de domínio. Desse modo, vão se sobrepondo a prece/canto do povo, o discurso da pregação e a voz do mar. Mesmo que dessa polifonia desponte uma “litania confusa” como confessa o narrador, é possível identificar essas diferentes falas, marcadas por traços distintivos.
A prece do povo se faz como fala coletiva, posta entre parênteses, registro gráfico que figurativiza a clausura que cerca essa voz sem ressonância, a esbarrar em seus próprios limites, com uma indignação que não encontra saídas nem respostas: “(tudo o que temos não é ainda, talvez, suficiente, diz-nos qual é o preço do resgate e nós o pagaremos, mas não há talvez preço, porque tu não tens limite, leva também as nossas vidas (...) tens de ter um limite para que possamos existir, mas tu não tens limite e é isso que nos enlouquece)” (1982:108)
Já o outro discurso, o da pregação, se faz como atitude condenatória por um enunciador indeterminado mas que representa uma entidade que critica a história portuguesa: “Pelos vossos pecados padeceis (...) Povo ingrato e maldito, do vosso coração soltaram-se demônios, que andam entre vós, fazendo a sua obra; estais possessos do demônio e sois a perdição da vossa raça.” (1982:109). Discurso que funciona como intertexto, na medida em que recolhe outro, o da voz poética do poema épico camoniano. É possível lermos nessa fala ecos da fala do gigante Adamastor, em Os lusíadas, que também amaldiçoa a ousadia e ambição dessa gente que “por trabalhos vãos nunca repousa[s].”
Mas a tais vozes se sobrepõe outra, bem mais poderosa – a fala do mar – que castra e corta ao povo a manifestação de sua consciência, operando de modo semelhante à voz de O S.: “cala-te, cala-te, não fales, não grites, disse o mar, tapa com as mãos a tua boca (...) deita-te de bruços e enterra no chão a tua voz, mas faz uma cova bem funda, para que a tua voz não se ouça nunca.” (1082:109) Voz da interdição, afogando palavras e ações, a sua força está também na apropriação estratégica do discurso bíblico para melhor conseguir seu intento, o de impor seu domínio. Não é mais e somente o mar que fala, mas Deus, portanto, a voz do mando conjugada à onipotência do Criador: “não queiras entender os meus desígnios, porque eles são imperscrutáveis, nem lutes contra mim, porque eu sou mais forte, por cada filho teu que cai sempre um outro teu filho se levanta, e a vida que perderes em mim estará (...) porque eu sou o princípio e o fim e não há saída do meu reino (...)”(1982:109)
No momento-clímax da celebração, isto é, aquele em que o povo está prestes a se curvar aos prodígios do Senhor, ocorre uma total ruptura com o previsível, transformando a celebração no seu avesso. A imagem do santo é quebrada, os homens despem suas fantasias, correm, pisoteiam, rasgam as rosas de papel, rompem o andor: “mas de repente, no extremo da falésia, a imagem cai (...) os homens surgem à luz do dia (...) os anjos tiram as asas e são apenas crianças (...) a música muda e há uma outra voz no altifalante, é um milagre, diz o povo, e acorre, porque a festa se alterou e nada do que acontece era previsível, nos termos do programa” (1982:114)
Essa súbita alteração do real ou o milagre, segundo a voz popular, pode ser lida como uma epifania, na medida em que se dá a revelação de uma verdade só agora visível para o povo. A atitude transgressora por parte deste resulta da percepção do absurdo de um culto que só trouxe malefícios, por isso, deve se converter no seu contrário. A sacralização transmuta-se em profanação. É então que se dá o desvendamento de uma verdade há séculos ocultada pela figura mítica do mar: a terra pertence ao povo, que não precisa partir mais, basta inverter a rota de seu destino em relação ao que lhe fora imposto. A obediência aos rituais – o caminhar lento, o culto apaixonado da imagem, a peregrinação mecânica e passiva – cede lugar à ruptura: “deitam ao chão os festões e as luzes e arrancam as rosas de papel, o andor quebrou-se ao meio e o pálio está rasgado,” (1982:114)
Ao fanatismo do culto contrapõe-se o fanatismo da revolta, a subserviência se transforma em revolução. E, como todas as revoluções, a do povo português usurpado em seus direitos também assume uma natureza desmedida, pois inspirada pelo ideal profético, tão “tirânico” quanto o poder contra o qual se insurge. Lembro, a propósito, os comentários de Octavio Paz em “Revolta e Ressurreição”, capítulo IV de O tempo nublado: “Todos os movimentos revolucionários se propõem a fundar uma ordem nova ou restaurar uma ordem imemorial.” (1986: 129). Mesmo que essa nova ordem ainda espelhe o mito do mando, internalizado no inconsciente: “(...) ele caiu do seu trono e somos nós agora os senhores do mar e os senhores da terra, desvendamos o enigma e encontramos a saída do seu reino, não partiremos mais porque esta terra é nossa, (...) ele não tinha limite, e por isso o derrubamos, e doravante faremos nós a lei,” (1982:114)
Concluindo com Octavio Paz, “as revoltas e revoluções são mitos encarnados.” (1986: 129)
É interessante recuperar também as colocações do ensaísta mexicano sobre a festa, considerada por ele como “estética da perdição”, na qual se dá a coexistência de vida e morte, celebração e destruição. Em Teolinda: “era a festa da morte, gritam, mas doravante é a festa da vida (...)” (1982:114). Enquanto ato coletivo e alimentado por uma natureza ritualística, a festa propicia a projeção simbólica dos universos apocalíptico e dionisíaco, impulsos com funções e significados complementares. Por um lado, há a transformação ou a virada do mundo indesejado pelo avesso, por meio da destruição da imagem e morte do arquétipo marítimo, o que corresponde a uma ruptura criativa; por outro, a presença de elementos demoníacos como o monstruoso, o caótico, os pesadelos, o delírio, associados a uma religiosidade deformante, geradora de sentimentos de culpa e pecado.
E mais um ritual se acrescenta a toda essa encenação focalizada pela narrativa: a queima da imagem do santo, após ter sido desnudada. Uma epifania sacrílega, portanto. Digamos que se trata de uma recriação moderna do auto de fé medieval, enquanto fato histórico (mais um mito nocivo entranhado na História) que deve ser queimado, literalmente. O que o leitor presencia, afinal, é uma “inquisição” posta em cena para ser desmistificada, queimada, como uma uma imagem que não deve servir como modelo, dado o monstruoso de sua natureza. Eis o mito reatualizado e ritualizado, de maneira crítica, pela narrativa. É o que nos ensina a ficção de Teolinda: cultuar modelos só pode se fazer, nos tempos atuais, como ritual grotesco alimentado por uma consciência irônica que esvazia a fonte ou revira-a para mostrar seu absurdo. Se nos autos de fé queimavam-se hereges, representantes da heterodoxia, na festa do Senhor do Mar queima-se a ortodoxia ou a ideologia imposta por um sistema opressor. Uma inversão, portanto.
Para usarmos uma expressão de Walter Benjamin, digamos que esse episódio de Paisagem com mulher e mar ao fundo funciona como verdadeira “iluminação profana”, em que o visionarismo assume duplo papel: compromisso com o real para modificá-lo (homenagear o santo e destruí-lo) e compromisso com o imaginário, o qual fornece símbolos vitais à revolução (fogo, música, canto, foguetes, vestes, imagem). Novamente, é o caráter ambivalente da festa encenada pela linguagem, para a qual confluem impulsos complementares: o imaginário se reveste de uma dimensão política, ou seja, é por meio dessa visão profética que o espírito revolucionário se atualiza. Enfim, o olhar visionário é libertador, não apenas porque contraria o poder instituído, mas principalmente porque se apóia em figurações que (des)realizam o real, permitindo que este revele novas faces. Compactuo, neste sentido, com as observações de José Miguel Wisnik sobre tais questões, analisadas em “Iluminações profanas - poetas, profetas, drogados” (1988:283-300). Reaproveitando Benjamin, o que a ficção exibe, nessa insólita alegoria criada pela autora portuguesa, são as “ruínas” ou escombros deixados pela História para serem exorcizados pela força do imaginário, sobretudo quando este atende a uma voz/consciência coletiva.
O fogo, substância primordial, é outro arquétipo presente no episódio em questão, atuando como instrumento necessário à encenação festiva em que mergulha o povo, então liberto da divindade opressora. A natureza ambivalente do fogo também concorre para a força criadora instaurada no espaço, na medida em que propicia a destruição e a renovação do mundo. Morte e ressurreição. Queima do santo, queda de imagens, revolta e blasfêmia, são representações da negação da religião, da morte de Deus, um tema de inspiração romântica da qual a modernidade é herdeira, mas a que dá um tratamento singular. Retomo, aqui, as colocações de Octavio Paz, tratadas sobretudo no capítulo “Os filhos do barro”, homônimo ao título de sua obra. A afirmação de um mundo sem deus significa o corte da ligação com uma tradição apegada a arquétipos e mitos, para que seja assumido o presente histórico. Tempo de um mundo que faculta ao homem lidar com o Poder, desfigurando-o para exibir sua feição demoníaca. Não é por acaso a presença, no final do episódio do Senhor do Mar, de um cenário intensamente marcado pelo caos: correria, gritos, confusão, enlouquecimento, olhar deslumbrado para a imagem desfeita – tudo isto sinaliza um mundo sem hierarquias, onde prevalecem as formas do excesso, desestabilizadoras da ordem e do poder. Um mundo, afinal, carnavalizado, nos termos bakthinianos, em que é preciso revirar as camadas e misturá-las. Uma maneira burlesca de desacomodar a sedimentação ideológica.
Todo esse ritual místico mesclado à profanação tem, na verdade, uma função crítico-purgativa, pois o objeto de ataque é um outro arquétipo incrustado na tradição portuguesa. Trata-se da religiosidade deformante, mais uma herança do mundo medieval, onde o pecado, o monstruoso, a sexualidade e a bruxaria se tramam numa aliança demoníaca. Nesse contexto, fé e inferno acabam se aproximando como imagens do medo, pela força distorciva com que atuam sobre os homens. E se nos lembrarmos do papel da mulher em meio a esse cenário, então o diabólico parece afiar mais ainda suas garras. A associação do feminino ao ser demoníaco e feiticeiro só pode levar a uma visão deformada, habilmente retratada pela ficção: “Havia quem assegurasse que tal mulher da aldeia dava guarida aos demônios em sua casa, que dormia na cama com o maior de todos eles, e que os seus risos ecoavam sobre as campas até ao romper da aurora.” (1982:107) O perigo representado pela mulher no imaginário medieval, vista como agente sedutor de práticas perversas e como figura enigmática, é resgatado pela ficção de Teolinda, que lhe dá um tratamento crítico.
Em obras posteriores, como O cavalo de sol (1989), por exemplo, a religiosidade macabra, responsável por obsessões traumáticas persistindo nas personagens, ressurge como mito a ser exorcizado.
Mesmo adulta, a personagem central, Vitória, não está livre de demônios trazidos da infância. A vivência num ambiente religioso impregnado de um “cheiro a suor e a mofo, a alho e a cera queimada” (1989:41) faz o coração ficar pequeno, como afirma a voz narradora. Santos e anjos são figuras grotescas e maléficas, infundindo terror: “parados, no vazio, como à espera” (1989:41); “com aquele seu ar de decadência e de idiotia, chorando por terem perdido os seus poderes e servirem apenas para alumiar a escada.” (1989:55) Mas se essa aprendizagem do mal foi imputada à personagem, o desejo de apagá-la ou, no dizer de Álvaro de Campos em “Tabacaria”, de “descer dela pela janela das traseiras da casa” (1976: 363), é mais intenso que os malefícios causados por esses seres estranhos. Em seu exercício de desaprendizagem, o imaginário de Vitória alça vôos para dar outra forma aos anjos do passado: “(...) os anjos maléficos que vogavam no ar e no vento e povoavam os sonhos, os que cresciam no ventre liso da água, no bafo dos animais e no vaivém dos insetos, onde estavam esses, os maléficos, os verdadeiros, os que ela via andar, transparentes, brilhantes, no meio do rebanho, quando ia ao campo e falava com Aprígio?” (1989:55-56)
Curiosamente, onze anos depois, esses anjos se corporificam numa nova versão, como se acordados por essa visão imaginária e criadora aí anunciada. Trata-se de Os anjos (2000), a mais recente obra de Teolinda Gersão, em que o mito da religiosidade nociva, castradora, parece definitivamente expurgado. É então que esses novos anjos adquirem outra função no tecido narrativo. Mas esta já seria uma outra história, de que eu gostaria de tratar em outro ensaio.
Por ora, o que importa é salientar a presença da “mitogenia”, uma das componentes da “arqueologia da tradição portuguesa”, proposta por Antonio Quadros (1986) e considerada por ele como visão fundamental e necessária para se resgatar o projeto áureo de uma pátria em seu destino supratemporal. Contrariamente a essa visão ancorada em princípios auráticos (e que não cabe aqui discutir), procurei mostrar nesta análise a outra face da mitogenia, valendo-se das colocações de Eduardo Lourenço, Roland Barthes, Walter Benjamin e Borges.
Apegar-se excessivamente à mitogenia, representada, por exemplo, por figuras tutelares ou totêmicas, seja o Mar, a Nação, D.Sebastião, a Religião... só pode levar ao entorpecimento e à alienação, a um enterrar cabeça e voz numa cova bem funda, como ordena o Senhor do Mar, personagem da narrativa de Teolinda. Sendo assim, é preciso romper com o culto apaixonado aos mitos para que seja vivido o risco da ausência, da perda e do vazio. Negar a sacralidade e a tradição cristalizada dos arquétipos é assumir-se como sujeito agente da História, mesmo que feita de “ruínas” (Benjamin) ou de “ritualismos degradados” (Mircea Eliade).
Voltemos à imagem do quadro de Paul Klee.
Esse “anjo novo” que o pintor exibe nos fascina e nos perturba, justamente pela ambigüidade de seu olhar. Seus olhos arregalados, a boca e as asas abertas imobilizadas apontam para o duplo desejo de olhar e se afastar do que vê, conforme a leitura que dele fez Benjamin. Ora, é esse mesmo gesto que a ficção de Teolinda nos exibe, ao descrever os atos e vontades do povo em seu confronto com o espaço português: “Voltar as costas ao mar e encontrar a terra.” (1982:61). O enfrentamento com o passado e o desafio do futuro se conjugam num momento suspenso, que é assumido com intensidade mas também precariedade. A dificuldade de abandonar o conhecido, porém insustentável, não é menor que a necessidade de buscar outro caminho, seja qual for. Recusar o espaço imposto como saída do país e ir ao encontro de outro espaço. Onde estão os mitos? Não há como não arregalar os olhos e não ficar com as “asas” suspensas.
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Referências Bibliográficas:
BARTHES, Roland. Mitologias. 3 ed., São Paulo, Difel, 1978.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas - Magia e técnica, arte e política. 4 ed., São Paulo: Brasiliense, 1985.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas, 7 ed., Buenos Aires: Emecé, 1974
GERSÃO, Teolinda. Paisagem com mulher e mar ao fundo. Lisboa: O Jornal, 1982.
_______. O cavalo de sol. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
_______. Os anjos. Lisboa: Dom Quixote, 2000.
LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. 4 ed., Lisboa: Dom Quixote, 1991.
NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
PAZ, Octavio. Tempo nublado. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
________. Los hijos del limo. Barcelona: Seix Barral, 1974.
QUADROS, Antonio. Portugal: razão e mistério. Lisboa: Guimarães, 1986.