Oliveira Martins em Alexandria - A Patrística
em 'O Helenismo e a Civilização Cristã'
Mário A. Santiago de Carvalho
(Universidade de Coimbra)
"Oh! A História! A Penélope sombria,
Que leva as noites desmanchando a teia
Que suas mãos urdiram todo o dia!"
(A. de Quental, Odes Modernas[1])
Ainda está por fazer a história e o exame dos estudos sobre a Patrística em Portugal, particularmente no âmbito alheio ao Universitário e/ou no ambiente romântico. O historiador Oliveira Martins é autor de um contributo interessante nessa área, tão sensível adentro desse estranho continente que é o da história da filosofia, por isso que — à semelhança do que sucede com o Renascimento — não tem sido devidamente consi-derada pelos cultores da filosofia. Repare-se que até à intervenção de Nietzsche e de Heidegger, acontecia quase o mesmo, agora com os im-propriamente chamados pré-socráticos.
Em 1878, ou seja, no ano em que Herculano refunde O Bobo, Zola publica A Taberna e Teófilo Braga, os Traços Gerais da Filosofia Positiva, sai do prelo o livro de O. Martins O Helenismo e a Civilização Cristã, uma reflexão sobre o passado escrita (como é hoje timbre na melhor produção filosófica) sem voltar as costas às preocupações do presente[2]. Aliás, o modo como O. Martins justificava semelhante perspectiva, em Portugal Contemporâneo, a propósito de Herculano, que "era demasiado convicto e apaixonado para poder prescindir de si, das suas crenças, das suas opiniões", o que explicava a ligação às preocu-pações do presente, cai bem para o nosso próprio autor: "porque essas preocupações eram a essência da sua vida moral"[3]. Por esta razão, acerca de uma obra histórica que se dirige às almas e não ao espírito, como a de O. Martins, dizia José Marinho, com propriedade, estarmos perante "um subtil liame entre querer e ver"[4], ligação que acontece porém a um nível moral antes de qualquer outro. Assim, logo na "Introdução", O. Martins vê uma "semelhança (...) entre os antigos fenómenos e os de hoje!"[5], e se é, portanto, o presente e não o passado que o nosso autor procura no olhar retrospectivo, isto explica a perspectiva da "solução religiosa" presente nesta obra particular para a crise de "anarquia moral", que a norteia: o regresso à unidade originária em que religião e filosofia se conformavam cabendo à inteligência o papel de "observar e descrever os fenómenos do mundo constituindo o edifício das ciências segundo o critério da razão individual ou filosófica"[6]. Dentro desta perspectiva, nenhuma surpresa nos assaltará, pois, ao vermos O. Martins terminar a sua obra consideran-do Hegel "o último doutor da Igreja"[7].
É sabido, porém, que esta produção do autor não foi muito bem acolhida por Joaquim de Carvalho. Em estudo sobre a "evolução da histo-riografia filosófica em Portugal" — cujo nascimento via no Apparatus ad Philosophiam et Theologiam ad usum lusitanorum adolescentium (Roma, 1751) de L. A. Verney —, J. de Carvalho considerava a "atitude mental" de O. Martins "a negação do historiador da Filosofia, pois em vez de procurar penetrar objectiva e equanimemente na índole e no âmbito das diversas concepções filosóficas, assumiu a atitude militante de quem opõe ideias pessoais às de outrem. Por isso — continuava o mestre de Coimbra — , as suas opiniões histórico-filosóficas, além da fragilidade intrínseca, não exprimem rigorosamente a assimilação crítica de pensamentos alheios, mas a ofensiva militante ou apologética"[8]. Em suma, se as "páginas fluentes" de O Helenismo e a Civilização Cristã "manifestam a pujança do talento literário e a fogosidade da inteligência, também não escondiam a fragilidade do saber". E Joaquim de Carvalho conclui, reconhecendo tão-só: "Se as conjunturas epocais e pessoais lhes houvessem sido propícias", O. Martins, e também Antero de Quental, poderiam ter, pelos seus dotes, constituído uma verdadeira história da filosofia. No Prefácio que escreveu para a Antologia de Textos de O. Martins, onde aliás, a fim de ilustrar as concepções da história do antologiado, se transcreve, justamente, a Introdução de O Helenismo..., Guilherme de O. Martins lembrava, porém, que no apreço a Herculano reconhecia, o seu antologiado, a especificidade daquela disciplina de que a prática da História necessitava[9]. Sem querer voltar a esta vexata quaestio, que José Marinho supunha no Estudo apenso à mais moderna edição da obra[10], julgo ser contestável, de facto, aquela apreciação de J. de Carvalho. E uma vez que ela apareceu na Biblos, em 1946, nada nos impede de pensar que, precisamente em 1947, nas páginas de Prometeu, o filósofo Delfim Santos — esse mesmo que considerava Aristóteles e Hegel como os únicos historiadores da filosofia dignos de meditação — a tal opinião desfavorável procurava dar resposta. Fazia-o nos termos seguintes: "Criticar Oliveira Martins por não ter dado o aspecto de exactidão científica aos seus estudos de história, como criticar outros por não terem dado aspecto artístico aos temas históricos que expõem, vale, equivalentemente, o mesmo. Isto é: nada. Este género de acusações é um vício típico da crítica que só valoriza o que lhe é afim, e só aprecia o que, de certo modo, lhe pode servir como elemento precursor dos seus seguros e inabaláveis pontos de vista. Todavia, mesmo acerca deste assunto, haveria algo a dizer sobre o talento profético do historiador que, como nenhum outro, sentiu e viveu profunda e dramaticamente uma hora sombria da vida nacional"[11].
Também não julgo que O. Martins pretendesse que as suas consi-derações se enquadrassem numa história da filosofia (o mesmo não diria quanto a uma certa filosofia da história[12]), mas o eminente mestre de Coimbra andou pelo menos bem avisado em aproximar Martins e Quental. Desde logo porque O Helenismo..., no dizer de alguém, se integra "na sequência de uma antiga discussão com Antero"[13], divididos ambos por Cournot, ou seja, interpretando O. Martins a regra do acaso de acordo com a qual "o encontro de duas séries independentes não dá lugar a uma evolução normal, nem a um simples desenvolvimento". Ela deverá antes dar lugar a um "choque" que "produz sempre uma comoção violenta e traz consigo o estabelecimento de um estado diverso, dum tipo novo, que não é a continuação de nenhum dos anteriores, mas sim um composto dos elementos contidos neles"[14]. Eis-nos perante uma ideia algo cara, na sua superficial expressão, ao espírito post-moderno dos nossos dias! Ora, contra a teoria das causas acidentais no advento da Idade Média e a consequente atribuição de um eminente papel às grandes personagens, melhor ainda, contra um modelo teórico muito sensível ao estado — dir-se-ia: quase negativamente evolutivo — da crise, estaria, de facto, Antero de Quental ao escrever, por exemplo, o seguinte, nas páginas do Diário Popular e em crítica à Teoria do Socialismo: "... não se deu na Idade média uma interrupção do desenvolvimento, mas sim uma daquelas crises orgânicas que são próprias e expontâneas na evolução dentro do mundo dos organismos (...). Crises tais são um resultado do mesmo desenvolvimento dessa ordem de forças complexas (que não são independentes e apenas paralelas, mas convergentes e solidárias) que actuam segundo leis análogas, tanto nos organismos como nas sociedades e no espírito"[15]. Mas não valerá a pena separar demasiadamente estes dois pensares, em múltiplos aspectos inquietantemente afins; sabemos mesmo, por uma carta de Antero datada de 13 de Outubro de 1877, que O. Martins começou por mandar a primeira parte das provas tipográficas de O Helenismo... a fim de o Poeta — como seria timbre de uma comum "procura partilhada"[16] — sugerir alguma emenda aproveitável. Antero recusou-se a lê-las, dizendo reservar-se o prazer epicurista de "ler o livro todo, inteiro e acabado"[17].
Acrescentaria, contudo, e como pela nossa parte também veremos, que Joaquim de Carvalho teve razoáveis motivos para menoscabar o contributo de O. Martins no estrito campo historiográfico. Mas dito isto, pessoalmente, já não quereria acompanhar o eminente mestre coimbrão num absoluto rebatimento daquela contribuição. As páginas do historiador autodidacta carecem de ser lidas no quadro de uma concepção filosófica da história, contestável mas definida, conforme aliás o teste-munhava o livrinho de Francisco d'Assis d'Oliveira Martins, pelo qual se detecta que aquilo que separa o nosso autor de Antero (que no entanto confessa concordar quanto ao fundo e às ideias fundamentais[18]), e também de Júlio de Vilhena, outro dos que entraram na liça — aliás notável pelo seu tom, sempre elegante — , é uma imagem que da Idade Média e do catolicismo (injustamente confundidos porém) já não quer ser romântica sem contudo se saber separar, com suficiente radicalidade e objectividade, do terreno que critica. No caso destes três autores, está, naturalmente, o testemunho de que é na Idade Média que a Europa moderna se funde, isto mesmo se O. Martins data a civilização moderna a partir do concílio de Niceia ou do Helenismo, que é dito reaparecer na Renascença[19]. Ora, esta é, precisamente, uma outra forma de "sonhar a Idade Média" (para recorrermos ao mot d'esprit de U. Eco[20]), época simultaneamente sempre tão próxima e tão distante[21], um sonho de uma irónica nostalgia, e portanto indefectivelmente "romântico", ainda que a contra-gosto por se querer "classicista" à sua maneira (se tomarmos esta palavra no tom equívoco que lhe deu Winckelmann). Não era, porém sobre a Idade Média que quereríamos falar, mas antes sobre a Patrística, na forma e em quase todo o seu conteúdo um período vincadamente da Antiguidade.
A fim de reavaliar o contributo de O. Martins em O Helenismo... considerarei, exclusivamente, esta área (com a sua importância na economia da obra), a da Patrística. Sem ocultar as naturais lacunas, deficiências e equívocos na aproximação que a ela fez o autor do Sistema dos Mitos religiosos, não me esquivarei a salientar como, alheio à mera historiografia, certas fogosidades mentais do autor comportam algum in-teresse. E isto porque, naturalmente, ao enquadrar a Patrística sob a figura do "choque" ou da "comoção violenta" originadora "de um estado diver-so, dum tipo novo", como recordámos, O. Martins tinha a seu favor, pelo menos à partida, a sensibilidade teórica suficiente para reconhecer a espe-cificidade crísica daquele momento tão complexo da história das ideias e da filosofia, além de o poder ver numa híbrida expressão de perplexa multiplicidade e saudosa unidade. Estaria ele, depois, afinal, não a fazer história, mas a apontar no sentido da filosofia (estratégia que, na mesma área, embora naturalmente com um outro talento e fôlego, E. von Ivánka preferiu em 1964), tudo isso na esteira, bastante mediada e transtornada embora, daquela maneira hegeliana de ver no Helenismo a forma de a Razão escapar ao particularismo judaico através da universalização.
Acontece porém que isto se dá, no nosso autor, através do predomínio de uma sensibilidade ética sobre uma ontológica. Oliveira Martins opera com a clivagem entre Helenismo e Cristianismo/Idade Média. Ela justifica a que no interior da Patrística se distinga um Tertuliano, Hermias, Lactâncio, a pretensa doutrina de S. Agostinho sobre a escravidão — "o verdadeiro Padre da igreja latina" cujo misticismo estaria nos antípodas das ideias de um Clemente de Ale-xandria[22], como veremos —, e o próprio Justiniano "prescrevendo o estu-do da filosofia"[23], se distingam estes autores, dizia, de Alexandria, com o seu "primeiro padre Fílon"[24] (uma ideia porém que se não encontra em Hegel[25]), mas melhor ainda com S. Justino, Aristides de Atenas, Atenágoras e Clemente de Alexandria[26]. Comecemos por reparar que esta separação, ideográfica e não historiográfica, ainda que algo atabalhoada, para além de colher no quadro interpretativo do seu autor, e do espírito da época que cindia de alguma forma "Religion" e "Kultur", exprime ou dá conta da distinção que é comum fazer-se entre aqueles Padres que mais ou menos explicitamente menosprezaram a filosofia e as capacidades da razão humana no âmbito das matérias de fé e aqueles que apostaram (ou de forma aberta ou moderada) na utilização da filosofia ao serviço da reflexão sobre o dogma. Este tópico da helenização do Cristianismo está também aqui presente, e valeria a pena lembrarmo-nos, à guisa de interessante, mas não totalmente conseguido, contraste, do anti-judaísmo do seu proponente, o amigo de Nietzsche, na juventude influenciado por Schopenhauer, A. von Harnack[27]. Independentemente deste aspecto, aquele é, todavia, o primeiro problema que ainda hoje qualquer investigador deverá enfrentar se quiser tratar com algum sucesso da clássica questão Helenismo vs. Cristianismo, cujo primeiro exemplar explícito em Portugal julgo ser esta obra de O. Martins. Ora, a primeira particularidade do tratamento desta questão por parte do nosso autor (que teve ainda o mérito acrescido de entre nós haver salientado a importância nuclear deste período histórico na configuração da cultura europeia) esteve em ter procedido a uma específica redução como meio comum explicativo de aproximações e dissociações entre os autores antigos. Entre "orientalistas" e "helenistas", como poderíamos interpretá-lo (sendo os primeiros os responsáveis pela barbarização, que lamenta[28]). Esta redução é ainda consonante com a tese — nuclear — de que não existe antagonismo essencial entre filosofia e religião[29]. Embora semelhante asserção carecesse de ser explicada, enquadrada e devida-mente ponderada, quer no âmbito da cisão "Religion"/"Kultur" quer no das implicações com uma filosofia da religião, ela integra-se nos filoso-femas de O. Martins relativos à interpretação da história e da cultura. De facto, ela exprime a busca do ponto de fuga original, mas perdido, a partir do qual, organicamente, identidade e diferença, religião e filosofia, se articulariam sem tensão e em unidade. Também é nesta linha que o inte-resse de O. Martins pela Patrística e pelo Helenismo se subordina à sua contemporaneidade, nota que está em consonância com a História do Dogma praticada pela inteligentzia dos fins do século XIX, pelo menos na Alemanha. Descontado o lastro idealista e o erro de paralaxe histórico subjacente à quota-parte da dicotomia que nos é proposta, O. Martins apresenta-nos, pois, ainda, uma aparente afinidade com certa historio-grafia moderna sensível ao pressuposto de ordem religiosa e cultural eventualmente comum à filosofia grega e ao pensamento cristão.
Num claro resumo de toda esta problemática, Jean Pépin aludia porém a uma terceira dimensão — a do "revestimento expressivo"[30] — em relação à qual O. Martins parece ter permanecido indiferente. Isto explica o facto de as páginas dedicadas a Corinto, Atenas e a Éfeso, bem como à acção de Paulo nessas urbes[31], ser tão injusta. Atente-se, por exemplo, no retrato de Paulo em Atenas, e no que o nosso autor escreve relativamente ao célebre discurso no Areópago da cidade: "A sua temeridade cegava-o, e com a rudeza bárbara da sua energia iluminada, via apenas ídolos nas incomparáveis estátuas, e pagãos nos representantes da filosofia e da cultura clássicas. Bárbaro, reduzia tudo à estreita craveira da sua inteligência inculta; judeu, via em redor de si pecadores; e confiado no êxito que a sua missão obtinha nas cidades já preparadas para o receber, não era capaz de apreciar as diferenças entre as sociedades de Éfeso e de Corinto e de Atenas"[32]. Examinar o discurso do Areópago (citado a partir do original, Act. XVII, 16- 34), desatentando na evolução mental do seu autor (entre Atenas e Corinto, v. gr.) e desprezando o método de dissumulação das divergências, método que nos levaria a frisar, ainda com Pépin[33], que se trata de um discurso que quase poderia ter sido proferido por um filósofo profissional, é sintoma de uma leitura apressada feita na exclusiva confirmação de uma tese indiscutida. Na realidade, São Paulo reconheceu as diferenças dos vários ambientes culturais a que se dirigiu, como exemplarmente se compro-varia por uma mera comparação dos conteúdos e da forma do discurso do Areópago com a primeira carta aos Coríntios (I, 17 - II, 16). E se O. Mar-tins tivesse prestado mais atenção a este último texto poderia eventual-mente ter reforçado a sua tese, improvável na sua tão seca enunciação, de um Paulo fideísta, a que entretanto alude a propósito da sincrética igreja de Corinto[34]. É afinal Renan que aqui se nos apresenta, mas Renan ignorava toda a complexa teologia paulina.
É no segundo apartado do capítulo sobre o "Estabelecimento do Cristianismo", intitulado "Constituição da teologia", que O. Martins se refere com maior detença à escola alexandrina, com Clemente à cabeça. Se a São Paulo tinha chegado via Renan, ao autor do Pedagogo aproximava-se Martins pela monografia do abade Cognat (Paris, 1859), sem se poder conjecturar que o nosso autor cita o Pedagogo e os Stromata compulsando bibliografia primária; à semelhança, é claro, do que a Júlio de Vilhena alega ter feito em relação a Santo Agostinho e a São Tomás[35]. Da mesma invulgar curiosidade devem ter merecido as páginas que dedicou a Fílon, salientando-se porém aqui o apoio pelo menos em F. Delaunay (Paris, 1874) e em E. Havet (ibid., 1872), monografias das mais modernas na época.
É perfeitamente actual o relevo que Martins dá ao judeu Fílon de Alexandria, figura que julga cimeira na escola dos judeus helenistas[36]. Por um lado, reconhece que nos tratados de Fílon se mostra o adiantado da combinação judeo-helena — uma "conjectura" que um recente trabalho de Richard Goulet, onde se procurou reconstituir um comentário filosófico pré-filoniano ao Pentateuco, veio tornar mais consistente[37]. O método alegórico privilegiado, a literalidade do texto desvalorizada, o filão que se denota nestes percursores de Fílon não é o de uma síntese filosófica coerente, mas o de uma insistência nos grandes temas morais e metafísicos intimamente relacionados com as tomadas de posição dos pensadores gregos da mesma época. Esta perspectiva, como é óbvio, o nosso historiador ainda não poderia conhecer tal qual. Porém, paralela-mente à direcção pré-filoniana para que aponta já, O. Martins procura identificar este alegado "primeiro exemplar do pensamento cristão" através da "combinação da ideia do Logos platónico com a visão do Cristo profético"[38]. Por outras palavras: o Verbo é filho de Deus já para Fílon, "mas esta doutrina dogmatizada pelo cristianismo é no pensamento do judeu heleno ainda apenas uma forma poética de estilo: o Verbo é filho porque num certo sentido descende de Deus mas ao mesmo tempo ele próprio é Deus"[39]. Ora, conforme sabemos hoje, em relação ao grupo dos Terapeutas, o platonismo, dir-se-ia mais radical, de Fílon, atribui ao logos uma posição intermédia. A Razão já não é um "princípio racional transcendente (em todo o caso em relação aos indivíduos humanos, sem dúvida, mais do que ao cosmo) e universal do comportamento huma-no"[40], mas desocupou esse lugar supremo mantendo porém os traços gerais das suas origens mais gregas do que realmente bíblicas. É aqui, justamente, que a já referida dicotomia metódica de O. Martins claudica, porque aquilo que ele desconfiava ser o traço de orientalismo de Fílon deve ser visto, em relação à comunidade dos Terapeutas, em termos de uma aproximação ao "platonismo". É esta a razão pela qual, a exegese filoniana, em tantos pontos tão afim à posterior exegese cristã, não reconhece nunca papel central a Cristo. Quer dizer: se comparado com os seus predecessores Fílon representa um retrocesso qualquer na combinação do logos com o profetismo cristão e isso acontece precisamente graças ao seu helenismo. Esta inevitável e justificável falha na interpretação de O. Martins não é apenas acidental mas estrutural, ou seja, ela não decorre dos textos que compulsa, mas da tese de que parte, a-histórica na sua essência, porquanto embora trabalhe com a categoria da crise se mostra desconhecedora da elevada temperatura em que as fusões e as sinuosas transferências inter-culturais (e — porque não dizê-lo? — intra-culturais[41]) se davam, tudo isto em nome de uma interessante ideia filosófica, hegeliana no seu fundo que não na profundidade da sua enunciação verdadeira. Bastaria lembrar que na historiografia de Hegel, Fílon, apesar das concessões que fez à imaginação em detrimento do pensamento puro, tem o papel de elevar a consciência universal a cons-ciência filosófica, trânsito no qual nos é dito o logos cristão se distinguir do filoniano pela figura da determinação da essência de Deus ultrapas-sando a mera circunscrição do ser[42].
Julgo que se pode caracterizar a passagem de Fílon a Clemente de Alexandria — e notamos a grande ausência de Orígenes nas páginas de O. Martins, ausência inexplicável uma vez que o nosso autor mostra conhecer E. von Hartmann em versão francesa — dizendo que com ela se assiste a uma história ou a um universo regido pelo modelo da criação a ser substituído por um outro dominado pela ideia de aliança ou de salvação. O. Martins dá-se eco, neste ponto, à ideia de tradução da razão em Vontade, cujas consequências funestas, a seu ver, seriam a negação da independência da razão, e o dualismo moral prático que absorve a liberdade e a moral no seio de um misticismo panteísta[43]. Trata-se de uma leitura afim ao projecto de solução almejada. Se poderia ser feliz, à sua maneira, embora não original, o modelo da tradução da Razão em Vontade (há mesmo quem hoje veja na preponderância da doutrina da vontade sobre a doutrina da inteligência o novum do Cristianismo[44], e nem será preciso lembrar, para assinalarmos a actualidade da questão, as teses opostas de A. Dihle ou de Ivánka contra as de J. Rist), já o elenco das consequências, ou melhor, o estabelecimento de uma relação de nexo causal entre aquela tradução e as consequências apontadas, me parece indefensável. E isso em virtude, precisamente, de a um modelo "histórico" interpretativo O. Martins ter preferido um esquema de leitura "sócio-política" dedutiva e metodologicamente dicotómica (para não dizer culturalmente maniqueísta). Deixando porém este aspecto, concen-tremo-nos em particular no Clemente de Alexandria de O. Martins[45].
Ao começar por opor Clemente a Fílon — o primeiro um platónico cristianizado e este um judeu helenizado, aquele teria moldado a letra do Testamento ao idealismo enquanto que Fílon se teria servido do idealismo grego como "chave para decifrar os enigmas bíblicos"[46] — o nosso autor, aproximando-se embora destas duas personagens pelo prisma ainda hoje fulcral da exegese, tanto sobreavalia o helenismo de Clemente quanto desvaloriza o helenismo de Fílon. Concentremo-nos, pois, também nós, nos "pontos principais ou mais aparentes" do "génio de Clemente", tal como o nosso autor os vê[47]. Creio que se pode dizer a este respeito que tanto interesse comportam as indicações de O. Martins como as suas omissões, porque, em relação às suas fontes, o autor parece fazer uma leitura radicalmente selectiva na estrita observação das suas teses. Penso até que haveria que dar uma maior e mais sistemática atenção às fontes do nosso autor, designadamente ao modo como ele as compulsa, enquanto um meio ou método privilegiado de acesso ao esclarecimento da sua estrutura mental e da sua concepção da História.
Destaque, em primeiro lugar, para a reacção clementina ao desprezo da sabedoria pagã. A seguirmos O. Martins, Clemente "atribuía no espírito humano um lugar próprio e livre à especulação científica, delimitando a esfera natural e superior do conhecimento de Deus"[48]. Servindo-se da tripla categorização com que os gnósticos ordenavam os homens — pneumáticos, psíquicos e gnósticos — atribui-lhes uma "psicologia profunda", precisamente a mesma que deveria mostrar que essas categorias não são uma divisão dos homens traduzindo antes a constituição do espírito humano[49]. Eis-nos perante o elogio do homem "racional", "livre", "capaz de investigação e de saber", cuja defesa, por parte de Clemente, se oporia "às precedentes ideias cristãs" segundo as quais a vinda do Messias e o desaparecimento das nações pela conversão religiosa e social no Testamento "cortava pela base o valor próprio da filosofia e das ciências"[50]. Racionalista e hegeliano, avant la lettre, Clemente de Alexandria ter-se-ia servido do estoicismo e da sua doutrina da liberdade da razão para uma redução da Revelação a um fenómeno de psicologia transcendente. Por este facto, Clemente não teria entendido a letra da Revelação como lei de um povo particular, mas como "o espírito disperso em todas as leis e todos os livros"[51]. Também São Justino, na Apologia, pensaria (escreve o nosso autor em laivos remotamente hegelianos, mas que em rigor são estóicos) que "as leis, as instituições, os cultos de todos os povos são outras tantas revelações da divindade"[52]. É preciso ver-se neste elogio do homem racional e livre, inscrito na unidade da divindade de que leis, cultos e instituições são uma manifestação, um dos sentidos da solução da "anarquia moral" que se procura abalar. Mas a ser assim, o "regresso" a S. Justino ou a Clemente afiguram-se-nos mais do que a mera expressão da nostalgia de uma origem perdida, pela trans-mutação ou superação e liquidação do mal du siècle ligado à "pequenina Idade Média" (nome pelo qual O. Martins aludia ao Romantismo[53]).
Encontramos depois, em segundo lugar, e directamente derivado do primeiro ponto, a posição clementina acerca das "relações entre ciência e fé, e a esfera própria de cada uma, por forma — lemos em tom desconcertante de irónico lamento — que o espírito moderno, apesar de munido de instrumentos bem mais delicados, não pôde acaso ainda exceder"[54]. Relativamente a este ponto, O. Martins considera ter Clemente duas doutrinas. Uma exotérica contra os gnósticos, outra esotérica contra os fideístas[55]. Aos Stromata, muito citados em passos devidamente respigados, foi buscar o nosso autor a ilustração destas duas interpretações; tratar-se-ia de mostrar, alegadamente, e contra os fideístas, a indispensabilidade dos ditames da razão ("pelo que a fé peca desde o momento em que pela intervenção arbitrária, irracional, milagrosa, duma Revelação divina, pretenda destruir a estabilidade das coisas da razão condenando o homem ao aniquilamento e lançando-o no misticismo"[56]), e contra os gnósticos, a necessidade da "verdadeira fé", "reconhecendo os limites naturais da razão humana"[57]. Não é difícil vermos na reivindicação do respeito das esferas da razão e da fé a admissão simul-tânea de ambos os domínios, desde que, naturalmente, a fé se não des-tempere de misticismo e a razão se não dogmatize desconhecendo os seus limites. Esta não é senão a expressão histórica interpretativa daquela posição, já aludida, à qual repugna a antinomia religião/filosofia, meta-física/positivismo.
O terceiro tema é o da liberdade estóica, liberdade da razão como tentativa, levada a cabo por Clemente, como se alega, de conciliar o racionalismo e a transcendência[58]. Neste ponto, O. Martins distancia-se daqueles que viam uma proximidade real entre Plotino e o Padre alexandrino, concedendo apenas antes uma semelhança "puramente exterior"[59]. É que, segundo o nosso autor, estaria em confronto o emanatismo vs. a transcendência, bem como a absorção contemplativa do neoplatonismo contra a qual Clemente teria reagido com a tese estóica da independência da razão humana. Se era este o estado de recíprocas correcções e compensações da sociedade alexandrina, tivesse ela seguido exclusivamente uma via neoplatónica e o resultado teria sido este: a Europa encontrar-se-ia num estado análogo ao da India[60]. Todavia, a combinação, equilibrada na esfera da moral, que Clemente realiza — o homem une-se a Deus sem deixar de ser homem, Deus pode ser compreendido sem que o homem perca aquilo que o torna um ser real e vivo[61] — é, porém, menos sólida do ponto de vista metafísico. Deve-se isso — explica O. Martins — ao facto de ela descender em linha recta das ideias dualistas que abriram a porta à vitória inevitável do misticismo, e que o génio de Clemente, por maior que fosse, não conseguiu obstar.
Duas serão, depois, fundamentalmente, as falhas desta tentativa alexandrina de coordenação das oposições que saem dos princípios cristãos. Primeiramente, o dualismo alma/corpo ou espírito/carne, com o pessimismo e as monstruosidades ascéticas como consequência. Se nas ideias de Clemente — continua o autor — existe harmonia e unidade entre os dois princípios, o que sai da sua doutrina "é a ideia de um corpo inerte, de uma carne incapaz de pecado nem de virtude"[62]. Em segundo lugar, está a ideia de predestinação, directamente derivada — explica o autor — da ideia de um "Deus omnipotente e omníparo, Vontade criadora e directora do Universo"[63]. Ora, na tentativa de conciliação da esfera racional e da liberdade humana com essa ideia do Deus bíblico, o movimento alexandrino acaba por mostrar o seu carácter "inorgânico ou ilógico"[64]. Se Clemente tivesse permanecido estóico em vez de ter aderido ao cristianismo — é esta a tese de O. Martins — não se teria perdido a ideia de basear o pecado no livre arbítrio humano, de banir a possibilidade de falta na alma puramente virtuosa[65], em vez de se ter caminhado para a doutrina do pecado original, que Agostinho defende num acto de "barbarização das ideias religiosas"[66]. Por outras palavras, e ao jeito de prova: repetindo Epicuro e Aristóteles na definição da fé como "antecipação do pensamento" e "adesão" do espírito, reconhecendo portanto que a fé em Deus é matéria de três níveis, a intuição (enphasis), a dedução (diaphasis) e o sentimento (peripahsis), porque lhe correspondem três faculdades — inteligência (nous), razão (logos) e coração (pistis) — , Clemente teria conjugado o ocidente com o oriente, a ciência com a evidência: "o fiel está tão certo da verdade daquilo que crê, como o está o sábio do que sabe; mas a certeza científica assenta sobre provas, a certeza da fé assenta sobre a autoridade. E como a fé se não funda sobre a razão, dispensa provas quanto à sua verdade intrínseca. Há obrigação de submeter a inteligência logo que está estabelecido que Deus falou, mesmo quando se não compreenda como isso pudesse ter-se dado"[67]. A submissão à autoridade, à letra, à tradição, eis, em suma, o pecado do teólogo alexandrino segundo O. Martins.
Tal como ainda está por fazer a história dos estudos e das produções que em Portugal se fizeram sobre a patrística, também ainda ficará por fazer um estudo sério sobre a interpretação de O. Martins da obra e das ideias de Clemente de Alexandria, em particular. Esta despretenciosa contribuição apenas poderá ser um primeiro passo nessa direcção. Concluirei, portanto, dizendo algo sobre o estado da questão patrística (embora exclusivamente apenas sobre os três pontos acima referidos), e finalizarei tecendo algumas considerações retiradas deste confronto.
É indubitável a elevada estima de Clemente pela filosofia, mas é também inquestionável que ela a vê como um caminho para Cristo, aspecto a que O. Martins não dá o devido relevo. Sucede mesmo, que o universalismo estóico que Justino acolhe (Apol. X, 10, 2) e que lhe permite valorizar o que os filósofos e legisladores disseram segundo uma parte do Logos total, ou quando Tertuliano (de an. 2) bebe no mesmo estoicismo o conceito de Deus, a noção de alma e outros princípios morais, que semelhante gesto cultural mais do que traduzir uma helenização do cristianismo serve antes para "actualizar expressa e formalmente possibilidades de intelecção interior ao Cristianismo"; trata-se de uma transformação vocabular provocada e executada pela mensagem cristã[68], o que, a nosso ver, se opõe totalmente à mera "justaposição" de pensares, o que O. Martins apenas admite[69]. A partir de Clemente (c. 150- c. 215) o estoicismo (que é sempre impregnado, nessa época, de platonismo médio e de neoplatonismo) cede o lugar ao platonismo, mas, não obstante as cisões entre sistemas tão acentuadas pelo historiador português, que portanto não colhem, não deixam de ser estóicas ideias como a do homem, animal rationale[70], composto numa unidade, aonde O. Martins talvez procurasse fundar o apreço pela liberdade da razão. O privilégio da Moral em O. Martins explica parcialmente o seu apreço por um estoicismo idealizado ou mitificado, o que o leva a falar da "bela tradição estóica da antiga Igreja na qual — lemos — a fé não destrói a moral, nem a liberdade, nem a justiça, e que sabe como se conciliam superiormente a razão subjectiva e a objectiva, a esfera da religião e a esfera do pensamento ou da filosofia, mantendo a independência do indivíduo no seio da unidade do espírito absoluto[71]". É porém certo que é em termos de platonismo que sobretudo se deve falar a propósito de Clemente. Num exame dos primeiros capítulos do Pedagogo, já se despistou, evidentemente, a presença do estoicismo tardio (Musónio Rufo, Séneca ou Epicteto), salientando-se, em todo o caso, a figura de Fílon como transmissor dessa corrente, mas apesar destas presenças é Platão quem leva a palma. Exemplificativo disto é o facto de, muito mais do que S. Justino, Clemente louvar Platão, cuja concordância com Moisés assinala em vários passos[72], e louvar a sua sublime concepção da vida contemplativa, homoiosis theo. Simultaneamente, para além desta veneração por Platão, e também por Pitágoras, não deixamos de encontrar em Clemente a condenação do materialismo estóico, de Epicuro e da doutrina aristotélica da providência, aspectos que longe de serem específicos deste Padre pertencem à koiné do platonismo médio. Um aspecto em particular contraria toda a interpretação de O. Martins. Estou a pensar na tese da subordinação da filosofia à teologia, que como mostrou S. Lilla deriva já de Fílon e uma vez mais do mesoplatonismo[73]. O mesmo deve dizer-se, aliás, das ideias clementinas sobre a gnosticismo[74], sobre a doutrina das ideias como pensamentos da mente de Deus[75], e sobre alguns dos motivos da concepção transcendente de Deus (a distância, superioridade, inefabilidade, a via negativa), que também são filonianos, médio-platónicos e neoplatónicos[76]. É portanto arbitrariamente dedutiva, a-histórica e trai algum maniqueísmo interpretativo a acentuação da diferença entre estoicismo e neoplatonismo, a propósito da Patrística, tal como O. Martins a sustenta. Foi também por esta razão, pelo alegado triunfo do neoplatonismo sobre o estoicismo que O. Martins não foi capaz de enunciar qualquer aspecto positivo fundamental em Stº Agostinho, que em O Helenismo... é encarado quase exclusivamente em termos jurídico-civilizacionais desprezando-se, não direi já o seu neoplatonismo, mas também o seu precioso estoicismo[77].
Relativamente à fé, está hoje estabelecida a ligação clementina a uma teologia de orientação bíblica, baseada em Isaías (VII, 9). A sua definição da fé é, curiosamente, apresentada contra os filósofos e nela se lê que foi denegrida pelos Gregos como fútil e bárbara, sendo porém, na verdade, uma premissa (prolepsis) livremente adoptada e um consentimento (synkatathesis) reverente: "Houve quem lhe chamasse um assentimento intelectual (synkatathesis) a uma realidade não manifesta, tal como uma demonstração é um assentimento a uma realidade ainda desconhecida (...) A elas aplicamos o estudo da fé até que se torne conhecimento (episteme) baseado numa sólida fundação", ou seja, a gnose[78]. Tem razão O. Martins ao referir-se a uma combinação da definição aristotélica, estóica e epicurista, mas não colhe qualquer leitura dicotómica (esoterismo vs. exoterismo). Os reais oponentes do alexandrino nesta matéria são, antes, Valentiniano e Basilides, contra os quais, respectivamente, se insiste na fé dos simples (physici) e na fé como assentimento intelectual da alma no exercício da sua livre vontade[79]. Também aqui a dicotomia de O. Martins falha redondamente e tem, acerca do estatuto da fé, uma concepção apesar de tudo limitada.
Uma vez aqui chegados, não se conclua que damos razão a J. de Carvalho. Se ele a pode ter, D. Santos não a terá menos. Parece-me patente que o principal interesse destas reflexões de O. Martins sobre a Patrística não se podem já integrar na história deste domínio, mas devem, outrossim, considerar-se ilustrativas de um bastante apreciável e inusitado modo particular, filosófico e político, da recepção portuguesa desta componente da filosofia grega antiga. E mais ainda: o seu principal interesse residirá, finalmente, como testemunho dos filosofemas de O. Martins sobre a filosofia da história, matéria para que nos falta competência.
Apesar desta nossa lacuna, não quereríamos terminar sem tecer ainda algumas considerações, brevíssimas[80]. Esta viagem de Oliveira Martins a Alexandria passa sobretudo por França tendo porém no horizonte a Alemanha, entre Hegel e Hartmann. Da literatura francesa colhe as principais informações históricas, literárias e interpretativas sobre a Patrística, que depois lê integrando-as numa vaga solicitação metafísica alemã. Esta sua "plasticidade às múltiplas correntes de ideias que atravessaram o século"[81] se é certo não traduzir um banal e indecifrável sincretismo, revela contudo uma gravíssima dificuldade. De facto, apostar-se numa solução "religiosa"[82] para a crise do estado moral, solução que se traduza na revelação do Espírito consciente[83], implica postular o fim da história, a realizar precisamente naquele último dia em que "a unificação de todas as raças e a civilização de todos os povos estiverem consumadas"[84]. Digamos de outra forma, no dia em que toda a civilização for "helénica" (i. e., nem grega, nem latina, nem semita, nem celta, nem germânica[85]), desprezados que tiverem sido os tipos fenomenais e explicitamente inferiores resultantes do encontro fortuito da Grécia com Israel e suas posteriores metamorfoses históricas. Mas, justamente, a consecução de um tal projecto não pode ser mais "religioso", por definição, nem cristão por essência. Independentemente do facto de o monismo (Monismus) ou do panmonoteísmo (Panmonotheismus) de E. Hartmann, invocado por O. Martins logo na preciosíssima Introdução de O Helenismo...[86], ser demasiadamente "oriental" (o que o autor parece desconhecer), a ideia de unificação que subjaz ao projecto do historiador português pisa quer o terreno ambíguo de uma religião sem verdadeiro sentido da Transcendência quer o terreno de uma moral sem o verdadeiro sentido do humano. Ao contrário do que o autor pretende falta-lhe uma verdadeira e séria ontologia por isso que o estoicismo que ele conhece é aquele "senhor abstracto" de que nos falava Hegel, a propósito desta escola filosófica, na Fenomenologia do Espírito[87]. Quer dizer: representa a aniquilação do ser do mundo e assinala a concepção de uma liberdade sem realidade[88]. O sábio estóico que vive a sua liberdade em conformidade com a razão atém-se ao conhecimento racional das leis da natureza e da história, mas a coerência do seu universo está assinalada pela consciência infeliz que se repercute na saudade ontológica de uma origem perdida e que por ser apenas a vinculação da indiferença original agudiza a dor que uma metafísica de estatuto ambíguo é chamada a cicatrizar. Por outro lado, a concretização de um projecto moral no seio magmático de uma física indiferentista (em que physis é o nome de Deus e do Fogo artesão) jamais pode ser suficientemente atenta ao mundo da Vida, não sendo preciso sequer insistir no facto de que a existência humana vivida põe constantemente a razão perante problemas que ela é incapaz de resolver nos limites e nos contornos estritos da sua luz. Não estranhamos, por isso, que o tom adoptado por O. Martins para fazer e escrever História seja muitas vezes afim ao parenético, já que também exortação enquanto estilo é uma velha forma (igualmente estóica) de retirar à Razão o aspecto inumano com que ela é vista em sistemas quejandos.
É evidente que com isto estamos longe de pensar que no seu contexto histórico-cultural e político-nacional esta produção de O. Martins não tivesse podido ser autenticamente um oásis fremente de provocação teórica e social. Por outro lado, e no que toca ao caso particular da Patrística, procurámos mostrar que o seu trabalho merece apreciável destaque e louvor, pelo carácter brilhante e inusitado como esta peça, tratando um período tão definido, se apresentou no paupérrimo contexto da cultura portuguesa. Cingiria sobretudo a "actualização" científico-literária do seu autor, e o projecto levado a cabo com brilho de a integrar num complexo interpretativo respeitável. Mas ao acabarmos de mostrar que a nossa imagem da Patrística pode e deve dispensar a leitura de O. Martins, apenas verificámos aquela inquietante dor e tragicidade, por E. Jünger associada ao ofício do historiador[89], por isso que lida com o tempo e com a eternidade. Em qualquer caso, e nesta ocasião, gostaríamos de ter destacado bem como é por respeito ao Eros associado àquele ofício tão distintamente vivido por O. Martins, que nos parece ser um dever assinalar a contribuição deste autor para o conhecimento da Patrística em Portugal.
[1]A. de QUENTAL, Odes Modernas, Porto, 3ª ed., 1898. O presente estudo é a versão escrita da comunicação que apresentámos ao "Colóquio Internacional Oliveira Martins - Literatura, História, Política" (Universidade de Coimbra) em Abril de 1995. Ele integra-se num projecto que tem um paralelo no nosso outro estudo desse mesmo ano, "O ‘Santo Agostinho’ de Pascoaes", Nova Renascença 17 (1997), 317-332.[2]O. MARTINS, O Helenismo e a Civilização Cristã. Prefácio do Dr. José Marinho, Lisboa, 1985 (Citaremos a partir da ed. mais moderna, indicando o número da página antecedido apenas da sigla HCC, mas tivemos de recorrer também à edição original: J. P. OLIVEIRA MARTINS, O Hellenismo e a Civilisação Christan, Lisboa, 1878.[3]O. MARTINS, "Alexandre Herculano", in As melhores Obras de Alexandre Herculano, Lisboa, vol. I, 1986, 35.[4]J. MARINHO, "Oliveira Martins e o sentido da História", in HCC X- XI.[5]HCC 22.[6]HCC 30.[7]HCC 320.[8]J. de CARVALHO, in Obras Completas de Joaquim de Carvalho, Lisboa, 1981, II, 151[9]J. P. Oliveira Martins. Antologia de Textos. Prefácio, organização e notas de Guilherme de Oliveira Martins com a colaboração de Maria Manuela d'Oliveira Martins, Lisboa, 1981, 11; cf. também J. MARINHO, Oliveira..., XIV.[10]Cf. J. MARINHO, Oliveira..., X- XI.[11]D. SANTOS, "A Actualidade de Oliveira Martins", in Delfim Santos. Obras Completas, Lisboa, 1971, I, 492.[12]Guilherme de O. MARTINS punha, porém, assim a questão, na Antologia já citada (9- 10): "No fundo, em que medida é que Oliveira Martins pode ser considerado um historiador? Decerto que o não foi num sentido científico (...). Mas não deixa de ser verdade que a crítica dos factos e dos fenómenos históricos é um complemento natural da investigação. Daí que Oliveira Martins tenha de ser considerado mais como um ensaísta de temas históricos — como o viria a ser António Sérgio — do que como um historiador no sentido científico do termo. E nem se diga que o autor do 'Portugal Contemporâneo' é um filósofo da História — 'oncle philosophe' era-o apenas para os filhos de Eça — posto que a reflexão produzida ao longo das suas obras não é tanto de índole especulativa, posto que existe, a maior parte das vezes, a preocupação não tanto de fazer teoria, mas apenas de interpretar acontecimentos, retratar personagens e tirar lições concretas". Por sua vez, Pedro CALAFATE ( "História e Filosofia da História em Oliveira Martins", Prelo 7: Abril/Junho, 1985, 51) constatava uma "estreita ligação entre História e Filosofia da História no pensamento de Oliveira Martins"[13]A. J. SARAIVA e O. LOPES, História da Literatura Portuguesa, 7ª ed., Porto, [s.d.], 942. Note-se, no entanto, que a discussão não seria tão "antiga", uma vez que ela surge, como lembra Francisco d'Assis d'Oliveira MARTINS (A Edade-Média na Historia da Civilisação. Polémica entre Antero de Quental, J. P. Oliveira Martins e Dr. Júlio de Vilhena, Lisboa, 1925, 5) a propósito da Teoria do Socialismo, facto que mereceu uma primeira carta de Quental, publicada no Diário Popular de 24 de Fevereiro de 1873.[14]HCC 11- 12.[16]Cf. A. M. A. MARTINS & G. D'O. MARTINS, "Uma procura partilhada", Prelo 7 (1985), 101- 13, para a publicação das cartas anterianas.[17]Cf. ibid., 108: "Quanto ao 'Helenismo' não li ainda, nem conto ler, por duas razões. Primo, porque a vida que aqui levo bestifica-me a ponto de me fazer quase perder a noção e inteligência daquelas coisas: e em segundo lugar, porque prefiro ler o seu livro todo, inteiro e acabado, como se lê um livro, e não fragmentariamente, o que me faz perder todo o gosto e até certo ponto inabilita para depois julgar bem: Não me mande pois mais folhas. Se eu estivesse aí, a leitura que fosse fazendo das provas podia ser útil, sugerindo alguma emenda aproveitável. Daqui, já não ia a tempo e eu perdia um verdadeiro prazer, que me reservo com epicurismo".[18]Cf. Edade-Média... 157.[19]Cf. HCC 18- 19.[20]Cf. U. ECO, Sobre os espelhos e Outros Ensaios, trad., Lisboa, 1989, 90- 103; vd. também, K. POMIAN, Tempo/Temporalidade (Enciclopédia Einaudi 29), trad., Lisboa, 1993, passim.[21]Cf. P. ZUMTHOR, Parler du Moyen Age, Paris, 1980, 35 sg.[22]Cf. HCC 304.[24]HCC 253.[25]Cf. G. G. F. HEGEL, Lezioni sulla Storia della Filosofia, vol. III, 1, trad., Florença, 1934, 14- 24, 129- 153.[26]Cf. HCC 305.[27]Cf Carl-Friedrich GEYER, Religion und Diskurs. Die Hellenisierung des Christentums aus der Perspektive der Religionsphilosophie, Estugarda, 1990, 39, 72.[28]Cf. J. MARINHO, Oliveira..., XX, que se refere antes a "dois princípios: o hebraico, que [O.M.] identifica com místico, o helénico, que identifica com idealista", rematando: "Estranho se afigura ver em autor de um livro sobre mitologia defesa de tese tão simplista. Mas é o espírito do tempo..."[29]Cf. HCC 37.[30]Cf. J. PÉPIN, "Helenismo e Cristianismo", in F. Châtelet (ed.), A Filosofia Medieval do séc. I ao séc. XV, trad., Lisboa, 1974, 15- 20.[31]Cf. HCC 289- 99.[32]HCC 294.[33]J. PÉPIN, op. cit., 22.[34]Cf. HCC 292.[35]Edade-Media..., 126: "Acredite S. Ex.a, que eu tive a paciência de ler Santo Agostinho e S. Tomás nos originais; não agora, há muito tempo..." (o sublinhado é do Autor)[36]Cf. HCC 255.[37]Cf. R. GOULET, La Philosophie de Moïse. Essai de reconstitution d'un commentaire préphilonien du Pentateuque, Paris, 1987.[38]HCC 256.[39]HCC 259.[40]R. GOULET, La Philosophie...,154[41]Cf. M. FATTAL, Pour un nouveau langage de la Raison. Convergences entre l'Orient et l'Occident, Paris, 1987.[42] Cf. G. G. F. HEGEL, Lezioni..., 14- 19.[43]Cf. HCC 260- 61.[44]Cf. J. C. GONÇALVES, Humanismo Medieval, Braga, 1971, 188-89.[45]Para um útil e recente exame, embora restrito aos primeiros capítulos do Pedagogo, das relações de Clemente com a filosofia grega, cf. José Mª BLÁSQUEZ, "El uso del pensamiento de la filosofía griega en 'El Pedadogo' (I - II) de Clemente de Alejandría", Anuario de Historia de la Iglesia 3 (1994), 49- 80.[46]HCC 303.[47]HCC 313.[48]HCC 304.[49]Cf. HCC 304- 305.[50]HCC 305.[51]HCC 306; vd. também 305[52]HCC 305.[53]Cf. Edade Media..., 62.[54]HCC 306.[55]Ibid. Refira-se aqui, a necessidade de corrigir, neste passo, a edição mais recente, cuja descuidada actualizacão ortográfica não distingue "exotérico" de "esotérico" (cf. ed. oiginal, 306).[56]HCC 307.[58]HCC 309.[60]Cf. HCC 310.[61]Cf. HCC 312.[62]HCC 315.[63]HCC 315.[64]HCC 316.[65]Cf. HCC 317- 18.[66]HCC 317.[67]HCC 318.[68]Cf. J. Mª BLÁSQUEZ, El uso..., 79- 80 (a expressão citada entre parêntesis é de X. ZUBIRI, El problema filosófico de la Historia de las Religiones, Madrid, 1993, 264); veja-se ainda, e para o caso sem dúvida nenhuma o mais extremo, o de Tertuliano, J. Cl. FREDOUILLE, Tertullien et la conversion de la culture antique, Paris, 1972. Marcia L. COLISH (The Stoic Tradition from Antiquity to the Early Middle Ages, vol. 2, Leida, 1990) fez um exame ao estoicismo na literatura filosófica latina cristã.[69]Cf. HCC 17.[70]Cf. SÉNECA, Ep. 41, 8.[71]HCC 32.[72]CLEMENTE de ALEXANDRIA, Strom. I, 25;II, 100, 2; V, 29, 3- 4.[73]Cf. S. LILLA, Clement of Alexandria, Oxford, 1971, 41- 59.[74]Cf. S. LILLA, Clement...,144- 173[75]Cf. CLEMENTE de ALEXANDRIA, Strom. IV, 155, 2; V, 16, 3; V, 73, 3[76]Cf. S. LILLA, Clement..., 212- 24.[77]HCC 321- 323. Veja-se todo o cap. IV do texto de M. COLISH, já assinalado, acerca do estoicismo de Stº Agostinho.[78]CLEMENTE de ALEXANDRIA, Strom. II, 2, 8-9. Para uma interpretação deste tema nas suas relações com a filosofia, vd. o nosso "Para um outro modelo de investigação das relações entre Razão e Fé no século XIII", Itinerarium (no prelo).[79]Cf. CLEMENTE de ALEXANDRIA, Strom. V, 1, 3.[80]Cf. P. CALAFATE, História..., 45- 58.[81]P. CALAFATE, História..., 46.[82]Cf. HCC 23 sg.[83]Cf. HCC 5.[84]HCC 13.[85]Cf. HCC 20. Em conformidade com HCC 32, também se poderia chamar "civilização cristã".[86]Cf. HCC, 15; cf. Eduard von HARTMANN, Die Selbstzersetzung des Christenthums und die Religion der Zukunft (Berlim, 1874, 2ª ed.); na nota 2 (HCC 326) O. Martins remete para a tradução francesa de 1875, com o título La religion de l'avenir. Para além do elogio ao autor alemão que se lê na nota indicada, veja-se em HCC 29- 30, uma apresentação sumaríssima da tese de Hartmann.[87]G. W. F. HEGEL, Phénoménologie de l'Esprit, trad. , Paris, 1939, t. 1, 169- 171.[88]Cf. J. BRUN, O Estoicismo, trad., Lisboa, 1986, 100.[89]Ernest JÜNGER, Eumeswil, trad., Lisboa, [s.d.], 64.