Reflexões sobre a Crônica ou a
História das Duas Cidades
Ruy Afonso da Costa Nunes
Fac. Educ. Univ. São PauloI
Otão, monge cisterciense, bispo de Freising e historiador, nasceu, ao que parece, em Neuburg, perto de Viena, cerca de 1111 ou 1112, e faleceu na abadia de Morimond aos 22 de setembro de 1158. Pertenceu à alta nobreza germânica. Era filho do Margrave Leopoldo III de Áustria e de Agnes, filha do Imperador Henrique IV. Estudou em Paris na época da renovação dos estudos, quando brilhavam, no ensino das escolas episcopais e particulares, mestres famosos como Pedro Abelardo, Gilberto de La Porrée e Hugo de São Vitor. Ao terminar os seus estudos, Otão retornou à casa paterna com quinze companheiros, e ao deter-se em viagem na abadia de Morimond, à roda de 1133, ingressou na Ordem Cisterciense que a dirigia. Logo foi eleito abade de Morimond, mas em 1137 foi feito bispo de Freising. Viajou para a Itália em 1145 e visitou o papa Eugênio III. Em fevereiro de 1147, sob o comando de seu meio-irmão, o Imperador Conrado III, o seu sobrinho Frederico Barba-Roxa, e o seu irmão, o Duque Henrique “Jasomirgott”, Otão partiu de Regensburg na Segunda Cruzada, pregada por São Bernardo, e desempenhou cargos políticos e diplomáticos sob Conrado III e Frederico I Barba-Roxa. Ao visitar o seu mosteiro de Morimond, aí morreu no dia 22 de setembro de 1158. O seu secretário Rahewin, que terminou a obra escrita sobre os feitos do Imperador Frederico I, fala-nos dos seus últimos momentos no Livro IV dessa obra (4,14).
Otão de Freising deixou um espólio literário pequeno mas valioso. Primeiro, a Crônica ou História das Duas Cidades, Chronica sive Historia de Duabus Civitatibus , que citarei na edição preparada por Adolf Hofmeister, editada por Walther Lammers juntamente com a tradução alemã feita por Adolf Schmidt e publicada em Darmstadt, em 1974, pela Wissenschaftliche Buchgesellschaft. É a sua grande obra de história do mundo, desde Adão até à sua época, situada entre os anos de 1143 e 1147.
A segunda obra de Otão de Freising é Gesta Friderici I Imperatoris, composta em dois livros entre 1156 e 1158 e terminada por Rahewin em 1160, em mais dois livros. No primeiro livro Otão, de fato, reelaborou o Livro VII da Crônica, e, no segundo, apresenta a história do reino de Frederico, como sua testemunha ocular em muitos lances. O seu terceiro escrito resume-se a uma Carta a Wibald, abade de Corvey, datada de 1152, contendo uma exposição sobre os versículos 7 e 8 do Salmo 24.
Correm, ainda, algumas obras sob o nome de Otão de Freising, mas são de autenticidade duvidosa. Os escritos do Bispo Otão de Freising revelam que o seu autor foi homem de pensamento, dotado de boa formação filosófica, preocupado sobretudo com a teologia da história, nobre e discreto, piedoso e patriota, como se colhe, por exemplo, da sua descrição da cidade de Freising no Lib.V da Chronica (V, 24).
A respeito de sua personalidade e de seus escritos, há dois estudos preliminares e fundamentais: o de Hofmeister na Introdução da edição do texto da Chronica, e o de Charles Christopher Mierov na Introdução da sua tradução inglesa The Two Cities. A Chronicle of Universal History to the year 1146 D., editada por Austin P. Evans e Charles Knappe e publicada em 1966, em New York, pela Octagon Books, Inc.
II
Endosso plenamente os conceitos emitidos por J. De Ghellinck SJ em L` Essor de la Littérature Latine au XII Siècle (2e édition, Bruxelles, Desclée De Brouwer, 1954, p.328) a respeito de Otão de Freising que compôs a sua notável Chronica, aos 32 anos de idade: “Otão de Freising, juntamente com João de Salisbury, é o historiador mais pessoal e mais original do século XII. A sua Crônica, pela sua importância e pelo seu valor, destaca-se com brilho do conjunto das crônicas medievais”. De Ghellinck reconhece, através da exposição histórica e teológica feita por Otão de Freising, a personalidade de um homem “de pensamento independente, de espírito precoce, notavelmente letrado e ponderado, de nobre prosápia, inspirado por alto ideal, e proveniente de meio muito requintado”. Através de sua mãe, ele era meio-irmão de Conrado III e tio de Frederico I Barba-Roxa.
III
Iniciamos nossas reflexões sobre a Crônica ou a História das Duas Cidades pelo exame do título da obra. Antes de tudo, trata-se, como o determinou Otão de Freising, de uma crônica, uma das espécies medievais do gênero da literatura histórica, e que se distingue das outras duas espécies, a história e os anais .
Segundo bem explica Benoît Lacroix, O.P., em sua obra, L` Historien au Moyen Âge (Montréal-Paris, Vrin, 1971), a história, principal espécie literária da historiografia medieval, comporta um prólogo, um prefácio ou carta dedicatória, uma doxologia, algumas indicações geográficas e as narrações reunidas em livros divididos em capítulos, sendo os títulos de todos estes apresentados antes de cada Livro.
Os Anais latinos da Idade Média não seguem um plano nem apresentam divisão em livros e em capítulos. O analista escreve à medida que se desenrolam os acontecimentos, ano após ano.
A Crônica, por sua vez, é uma catalogação de fatos e de dados que, na forma medieval, mal se distingue dos Anais, “tende a tornar-se universal a partir de uma primeira data geralmente admitida e tirada do calendário oficial civil ou eclesiástico”, e tem por objetivo expor “a continuidade histórica e os ritmos de longa duração”. Foi a espécie histórica preferida pela Idade Média, talvez por influência das crônicas escritas por São Jerônimo e por Eusébio de Cesaréia no fim da Idade Antiga.
Atente-se para o título dado à obra de Otão de Freising por Hofmeister na sua edição magistral do texto: Ottonis Episcopi Frisingensis Chronica sive Historia de Duabus Civitatibus. Hofmeister denomina a obra crônica e história. De fato, o próprio Otão de Freising dá a entender que compôs uma lídima obra de História com aspectos típicos da Crônica.
Ele próprio chama sua obra de história em vários passos, como na carta inicial ao Imperador Frederico e nos prólogos dos Livros III, VI e VII, e de crônica, como na carta ao Imperador Frederico, no início da obra Gesta Friderici I Imperatoris em que alude à História das Duas Cidades: “Cronica quae tua sapientia digessit...”.
É crônica, porque a obra principia a partir de Adão: “Gestarum rerum ab Adam protoplasto usque ad tempus nostrum seriem executurus primo epsum, quem habitat genus humanum, orbem, sicut a maioribus accepimus breviter distinguamus” (Chron. I,1.); porque no início de quase todos os capítulos vem a indicação cronológica do acontecimento, a determinação da data. Por outro lado, trata-se, também, de história propriamente dita, como se colhe não só das referências à história que o autor faz no decurso da obra, como pela inclusão nesta de um “ proêmio” dedicado ao Imperador Frederico, pela “carta” dirigida ao chanceler Rainald von Dassel, pelos sucessivos “prólogos” antepostos a cada Livro, pelas “indicações geográficas” como, por exemplo a da diocese de Freising onde pontificaram Corbiniano no século VIII e o próprio Otão no século XII e, sobretudo, pelas compactas, fluentes e elegantes narrativas históricas que abarcam a história universal, ressaltando-se, principalmente a moderna, que compreende no Livro VII , a narração dos acontecimentos do reinado do Imperador Frederico I .
Como diz Lacroix na obra citada, “de simples assertor de datas que era, o cronólogo tornou-se, sob a pressão das necessidades e da informação, um recitator, um expositor, até mesmo um auctor”.
Considerando-se os cronistas da história universal no século XII, como Florent de Worcester (Chronicon ex Chronicis), Sigebert de Gembloux (Chronographia), Robert de Torigny (Continuatio Sigeberti sive Chronica), Robert d` Auxerre (Chronicon sive Chronologia), Guy de Bazoches (Chronografia seu Liber historiarum), Romualdo de Salerno (Chronicon), Orderico Vital ( Historia Ecclesiastica), Hugues de Flavigny (Chronicon Virdunense seu Flaviniacense ), Hugues de Fleury (História ecclesiastica) etc., a Chronica de Otão de Freising pode ser tida como lídima obra de história universal, como se podia escrevê-la na Idade Média, a expressão acrisolada de um verdadeiro auctor e historiographus, de acordo com a conceituação firmada pelo gramático Conrado de Hirsau no seu livro Dialogus Super Auctores (ed. crítica por Huyghens). O autor dá a sua própria contribuição às narrativas feitas por seus predecessores: “ auctor ab augendo dicitur eo, quod stilo suo rerum gesta uel priorum dicta uel dogmata adaugeat”. O historiador, historiographus, por sua vez, narra as coisas por ele vistas e testemunhadas, como no caso de Otão de Freising a propósito do reinado do Imperador Frederico I Barba-Roxa: “ Historia est res uisa, res gesta, historia enim grece latine uisio dicitur, unde historiographus rei uise scriptor dicitur”.
IV
Otão de Freising estudou com bons mestres na cidade de Paris, na época em que se processava a restauração dos estudos nos centros urbanos, no século XII. Pôde apreciar as lições de gramáticos e teólogos que, orientados primeiramente pelas traduções aristotélicas e pelos manuais de Boécio, e, depois, pelo afluxo de nova e completa tradução dos escritos lógicos do Estagirita, começaram a lecionar e a desenvolver a dialética que tanto concorreria para a elaboração da teologia como ciência sistemática. Aliás, conforme o depoimento de seu amigo e secretário Rahewin, na obra Gesta Friderici I Imperatoris ( Lib. IV, 11), ele foi o introdutor da “nova lógica”, das novidades dialéticas aristotélicas na Germânia: “... ut praeter sacrae paginae cognitionem, cuius secretis et sententiarum abditis praepollebat, philosophicorum et Aristotelicorum librorum subtilitatem in topicis, analyticis atque elencis fere primus nostris finibus apportaverit”.
Na dedicatória ao seu grande amigo, o chanceler Rainald von Dassel, no início da Crônica, Otão esboça a sua metodologia histórica. Diz que todo ensino consiste em duas coisas: a fuga e a seleção: a fuga dos erros e das inconveniências, e a seleção dos pontos certos e convenientes à instrução como ocorre – e Otão ilustra os seus assertos com exemplos - na gramática, na lógica, na geometria. O mesmo se passa na história onde o historiador evita a falsidade e escolhe a verdade: “Sic et cronographorum facultas habet, quae purgando fugiat, quae instruendo eligat; fugit enim mendacia, eligit veritatem”. Por isso, diz Otão, não se deve estranhar que ele escreva algo que pareça ofensivo ou atentatório aos predecessores e ancestrais do Imperador, visto ser preferível cair nas mãos dos homens a prejudicar o dever de historiador, encobrindo algum aspecto deprimente com o manto colorido de disfarce enganador, “ cum melius sit in manus incidere hominum quam tetrae fucatum superducendo colorem faciei scriptoris amittere officium”.
De seguida, Otão explica o método que seguirá na sua exposição da história universal, desde o começo do mundo até o reinado do Imperador Frederico I; enumera os quatro principais reinos que se sucederam através dos séculos, de acordo com a lei do universo, “secundum legem tocius” , como se depreende da visão de Daniel: o dos Assírios, o dos Medos e dos Persas, o dos Gregos e dos Romanos, e declara que vai citar os nomes dos seus chefes, reis e príncipes, até o presidente Imperador. Donde se infere que para Otão o reino de Frederico I prolongava o Romano, de tal modo que, aludindo apenas incidentalmente a outros povos e reinos, Otão quer salientar em sua obra a mudança das coisas, “ob ostendendam rerum mutationem disputans”. Aliás, é curiosa a preocupação constante do autor em assinalar as misérias desta vida, a inconstância das coisas, a sua mutabilidade, a transitoriedade de tudo que é terreno e humano. Essa visão pessimista transuda nítida dos primeiros sete Livros da Crônica, enquanto o oitavo é consagrado à realidade suprema, à coisa mais essencial e importante, a saber, à vida eterna, à ressurreição dos mortos e ao fim das duas cidades com a distribuição dos seus cidadãos nas moradas definitivas do céu e do inferno.
V
O Livro VIII da Crônica, com efeito, contém a chave do pensamento histórico de Otão de Freising. O erudito tio do Imperador Frederico I, o piedoso monge cisterciense da abadia de Morimond, orientou a sua vida e a sua obra histórica pela palavra e pela advertência de Jesus Cristo: “ De que serve ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma?” (Mc 8,36). Tal como Santo Agostinho, ele vê os homens divididos em cidadãos de duas cidades, Babilônia e Jerusalém, a cidade dos homens e a cidade de Deus, a cidade dos bons e a cidade dos maus, a cidade dos pecadores e a cidade dos cristãos em estado de graça. Sem dúvida, o primeiro idealizador da visão teológica das Duas Cidades foi Santo Agostinho, embora na obra que lhe tenha consagrado, sobrepaire a idéia da Cidade de Deus, De civitate Dei, expressa no seu título.
Num célebre passo dessa obra, Santo Agostinho define a natureza das duas cidades: “Dois amores fundaram duas cidades, a saber, o amor próprio levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor de Deus levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Uma gloria-se em si mesma, a outra em Deus. Aquela busca a glória dos homens, e esta tem por máxima glória de Deus, testemunha de sua consciência”. (Líb. XIV, Cap. 28).
Prossegue o Santo Doutor de Hipona a explicar que dividiu a humanidade em dois grandes grupos: os do que vivem segundo o homem, e o dos que vivem segundo Deus. “Misticamente, diz Sto. Agostinho, damos a esses grupos o nome de cidades, isto é, duas sociedades de homens, das quais uma está predestinada a reinar eternamente com Deus, e a outra a sofrer o eterno suplício com o diabo” (Lib. XV, 1). A cidadania dos habitantes das duas cidades é determinada pela sua opção existencial. “A natureza pervertida pelo pecado, explica o Bispo de Hipona, engendra os cidadãos da cidade terrena; a graça, que liberta a natureza do pecado, engendra os cidadãos da cidade celeste. Donde aqueles serem chamados de vasos de ira, e estes, vasos de misericórdia” (Lib.XV, Cap.2).
De acordo com a teologia da história de Santo Agostinho, Otão de Freising vê nas tendências das Duas Cidades a origem, a marcha e o fim da história, tendências irreconciliáveis na terra e no além-túmulo. Contudo, é preciso assinalar certa diferença ponderável entre as visões agostiniana e otoniana das duas cidades. Para Santo Agostinho há uma identificação entre a cidade terrena ou a sociedade civil, e o império pagão, enfim, com todos os que desprezam e recusam a palavra de Deus e a graça evangélica, enquanto os cidadãos da cidade celeste, que vivem de Deus e para Deus, podem conviver com os pecadores e sofrer às suas mãos na cidade terrena, enquanto viverem neste mundo. Otão , no entanto, não confunde completamente os impérios ou reinos pagãos com a Cidade do Diabo mas vê neles o âmbito terreno em que se situam e chocam as duas cidades. No prólogo do Livro VIII Otão afirma chamar de cidade de Cristo, “civitas Christi”, aquilo que Jesus Cristo denomina o seu reino, de tal modo que “chamamos, diz ele, de cidade católica de Cristo o conjunto de todas as pessoas que na igreja vivem de acordo com a fé, omnes in ecclesia fidem tenentes catholicam civitatem Christi vocamus, e só Deus sabe quem são eles verdadeiramente. Por isso, no início do prólogo desse livro VIII, Otão confessa que a sua Crônica das Duas Cidades se distingue ou divide de três maneiras ou em três partes. Uma vez que a Cidade de Cristo ou o seu Reino, quanto ao seu estado presente ou futuro, se chama de Igreja, ela existe de um modo enquanto abrange num só grêmio os bons e os maus; ela existirá de outra forma na glória do céu quando abrigará somente os bons; e existiu, ainda, de outra forma, enquanto viveu sujeita aos príncipes pagãos “até que a totalidade dos Gentios tenha entrado” (Rom.11,25). Em suma, atesta o Evangelho que a Igreja se chama de Reino de Cristo não só quando reina com Cristo, mas enquanto contém no estado presente, misturados, o joio e o trigo, o grão e a palha. Do mesmo modo três são os estados da Cidade perversa: o primeiro existia antes do tempo da graça salvífica, o segundo durante o tempo da graça, e o terceiro existirá após o tempo presente.
O Livro VIII apresenta sóbria e orgânica expressão dos pontos de vista teológicos a respeito do destino último das Duas Cidades, de acordo com a orientação de Santo Agostinho, mas sem digressões e desvios do tratamento de assunto que caracteriza a obra torrencial do Santo Doutor.
Vários autores consideram as obras de Santo Agostinho e Otão de Freising como admiráveis expressões de filosofia e história. Na verdade, essas obras só tem de comum com a filosofia a busca das últimas causas da História, do significado da existência humana, preocupações que a filosofia condivide com a teologia. A diferença, porém, entre essas ciências, reside no seu critério de discernimento para a solução das questões. Enquanto a filosofia recorre exclusivamente à razão, à reflexão, a teologia busca as suas explicações nos ensinamentos da Revelação Cristã que esclarece o destino do homem por meio da autoridade divina. Esse foi o caminho, o método escolhido em suas obras por Santo Agostinho e por Otão de Freising. As suas obras não são, pois, de filosofia, mas de teologia da história.
Em suma, à luz da mundividência cristã, a Crônica ou História das Duas Cidades de Otão de Freising divide-se em oito livros. Os sete primeiros expõem a história universal desde o tempo de Adão até o ano de 1146, e o oitavo trata dos últimos acontecimentos das Duas Cidades e do seu estado definitivo: a vinda do Anticristo, o juízo final e a vida futura no céu ou no inferno.
VI
As fontes do historiador medieval, segundo Lacroix, são três: o que viu, o que ouviu e o que leu. O próprio Otão de Freising no seu livro Gesta Friderici I Imperatoris (Lib. II, cap. 26, in Monumenta Germaniae Historica, Scriptorum T. 20, p. 410) atesta a modalidade da praxe literária histórica de seu tempo com salientar o papel do testemunho, da visão pessoal: “Com efeito, diz ele, é costume dos antigos que os narradores dos fatos sejam aqueles mesmos que os viverem pessoalmente, qui res ipsas prout gestae fuerunt sensibus perceperant. História vem de hysteron que em grego significa ver. De fato, podem contar-se coisas vistas e referir-se palavras ouvidas, tanto mais integralmente quanto não se precisa do favor de ninguém, e na indagação da verdade o autor não é levado pela ansiedade da dúvida nem pela dúvida da ansiedade. Antes, é penoso para um escritor renunciar ao seu próprio critério para se fiar do juízo alheio: Durum siquidem est scriptoris animum tanquam proprii extorrem examínis ad alienum pendere arbitrium”.
A segunda fonte do historiador é a tradição oral. Como diz Lacroix, “o isolamento, o analfabetismo, os perigos da guerra, a incerteza das fronteiras, as más comunicações, a raridade dos escritos, as longas viagens por terra e por mar, a volta das expedições, a estada nas hospedarias, as vigílias, a pregação popular, e até mesmo a memória prodigiosa dos homens da época, tudo favorece a tradição oral na Idade Média”. E esta se transmitia, de preferência, nos lugares costumeiros dos encontros pessoais, a saber, nos poços, às portas de cidades e burgos, nos postos de muda, e na hospedaria do mosteiro, onde se encontravam peregrinos ilustres, viajantes, velhos cavaleiros e até mesmo reis.
Por fim, a terceira fonte, indispensável para o conhecimento do passado, são os documentos, as obras dos escritores antigos.
Num lanço da Crônica (Lib. VII,11, in fine ), Otão alude resumidamente às suas fontes históricas com observar que até aquela altura de sua obra recorreu aos livros de Orósio, de Eusébio de Cesaréia e dos historiadores que lhes são posteriores mas que, daí em diante, para os fatos de memória recente, vai socorrer-se da tradição oral o do que ele próprio viu e ouviu: Ceterum quae secuntur, quia recentis memoriae sunt, a probabilibus viris tradita vel a nobis ipsis visa et audita ponemus.
Logo no início da Crônica, no prólogo dirigido a Insigrimo, Otão indica claramente as fontes básicas de sua obra : os escritos de Santo Agostinho e de Paulo Orósio, o De civitate Dei e os Historiarum Libri Septem: Sequor autem in hoc opere preclara potissimum Augustinum et Orosium ecclesiae lumina corumque de fontibus ea, quae ad rem propositumve pertinent, haurire cogitavi.
Minuciosa indicação das fontes usadas por Otão na Crônica ou História das Duas Cidades é feita nas respectivas edições modernas do texto, a de Adolfo Hofmeister (p. XXXIV – XXXVIII) e a de Charles Christopher Mierow (pp. 23-26). Hofmeister apresenta a lista completa das citações, feitas por Otão, de teólogos, filósofos, poetas, historiadores, assim como das lendas e leis.
Dentre os autores cristãos ressaltam a Crônica de Eusébio de Cesaréia (cerca de 260-340) e de São Jerônimo (382), e o resumo da história universal desde Adão até o ano de 416, escrito pelo sacerdote espanhol Paulo Orósio, discípulo de Santo Agostinho, Historiarum Libri Septem, Os Sete Livros de Histórias, dirigidos contra os pagãos.
A fonte principal de Otão de Freising sobre o período medieval até o início do século XII é a Crônica de Frutolfo de Michelsberg (falecido em 1103) retomada e publicada sob o nome de Ekkehard de Aura, como o afirma Hofmeister: “Als Materialsammlung benutzte der Freisinger Bischof fur die Zeit bis zum Beginn 12. Jahrhunderts vor allem die Chronik Frutolfs von Michelsberg den er aber nich nennt.”
Não resta dúvida, no entanto, de que o grande manancial de informação histórica para o Bispo de Freising é a obra de Paulo Orósio, como se colhe da leitura da Crônica. Até parece que o pessimismo de Otão, se não brotou, foi reforçado pela declaração de Orósio no início do Capítulo I de sua obra: Ego initium miseriae hominum ab initio peccantis hominis ducere institui (PL, T. 31). Orósio escreveu a história das calamidades sofridas pelos povos pagãos, a pedido de seu inspirado mestre, Santo Agostinho a fim de mostrar que os gentios, ou pagãos porque viviam em aldeias (pagi), padeceram mais flagelos antes da era cristã que após a disseminação do Cristianismo no Império Romano. Como diz espirituosamente Gilson: “Jamais histoire ne fut plus clairement écrite en vue de prouver une thèse, et celle d’Orose pourrait en effet s’ intituler Crimes et Châtiments” ( La Philosophie au Moyen Age, 2e éd., 1947 p. 170).
Paulo Orósio ensina que todo o poder, principalmente o dos reis, deriva de Deus que dispôs o aparecimento dos grandes impérios: o Babilônio, o Macedônio, o Africano e o Romano: “Quod si potestates a Deo sunt, quanto magis regna, a quibus reliquae potestates progrediuntur” (PL, T. 31, cl.744 e 745). Deus preparou a paz do Império Romano, diz ele, para o advento de Cristo, o Salvador do mundo (ib., cl.1059 – 1062), mas o Império acabou punido pelos seus crimes. Orósio, diz ainda Gilson, leva as suas Histórias até o ano 416, mas nessa data não se percebe indício algum da doutrina que, aplicando os princípios assentados pela Cidade de Deus , irá levar aos poucos à “ teocracia pontifical” da Idade Média.
VII
O Papa Gelásio I (492 – 496), bem no fim do século V, ensina que o poder temporal dos Reis e o poder espiritual dos Papas são distintos e ambos, provenientes de Deus. O rei está sujeito ao bispo no domínio espiritual, mas o bispo está sujeito ao rei no domínio temporal.
Durante a Idade Média essa doutrina certa e equilibrada será empanada, devido ao curso dos acontecimentos históricos (cristianização dos povos bárbaros, ascendência da Igreja e a idéia da restauração no Império Romano no orbe cristão com o Santo Império Romano – Germânico), e dará lugar às duas concepções extremistas e totalitárias do césaro-papismo (com Carlos Magno ) e da teocracia papal (com o Papa Gregório VII). De acordo com a primeira, o Imperador protegia e dominava a Igreja, nomeava bispos, influenciava os Papas e se imiscuía nos negócios eclesiásticos e, conforme a segunda, o Papa detinha o poder absoluto na cristandade como senhor das “duas espadas”. Gregório VII afirmou no ato solene da segunda excomunhão do Imperador Henrique IV, a 7 de março de 1080, que o sucessor de Pedro, apoiado no poder das Chaves, dispõe a seu talante dos dois poderes, o espiritual e o temporal.
A Igreja Católica levará um bom tempo para retornar à doutrina equilibrada do Papa Gelásio I. Só em 1885, o Papa Leão XIII formulou, de modo explícito, a definição do domínio dos dois poderes na encíclica Immortale Dei: “Utraque potestas, est in genere suo maxima” .Cada poder no seu domínio é soberano.
VIII
Otão, o Bispo de Freising, tio do Imperador Frederico I, viveu num ambiente político bem diferente do que fôra experimentado por Santo Agostinho e Paulo Orósio. Quando ele participou das empresas político-religiosas do imperial sobrinho, já se alastrara, há muito tempo na Germânia, o conflito do Sacerdócio com o Império, que atingira o auge entre o Imperador Henrique IV e o Papa Gregório VII na questão das Investiduras. O Imperador germânico sobre reivindicar a independência da sua autoridade temporal, considerava-se o chefe da igreja no Império com o direito de intervir nas eleições episcopais e abaciais. Entretanto, o conflito entre o Sacerdócio e o Império assumiu outro aspecto no desencontro do Imperador Frederico I, o Barba-Roxa, com o Papa Adriano IV, que dizia respeito mais ao governo de Roma e da Itália, e à independência temporal reivindicada pelo Papa. Adriano IV não considerava o Império como feudo, observa Mourret (Histoire Générale de l’ Église, T. 4, p. 397), nem tinha o Imperador como vassalo, mas não admitia que a dignidade imperial fosse concedida imediatamente por Deus nem que a coroação do Imperador em Roma fosse um dever papal.
Frederico I, por sua vez, tinha vocação totalitária e, de bom grado, açambarcaria os direitos da Igreja, haja vista a resposta que deu de improviso à Comissão de Senadores de Roma em 1155, quando afirmou resolutamente ser sucessor de Carlos Magno e de Otão, o Grande e, portanto, dono legítimo de Roma. Quem puder, exclama, que se atreva a arrancar a clava da mão de Hércules: Legitimus possessor sum. Eripiat quis, si potest, clavam de manu Herculis (Gesta Friderici I Imperatoris. Liber II, C.21. M.G.H., Scriptorum T.20, p. 405).
IX
Quando Constantino passou a reinar sozinho, e a dominar o Império, diz Otão de Freising, a Igreja sofredora alcançou, por fim, a desejada paz. Uma vez mortos os seus ímpios perseguidores, e libertados os justos da angústia, foi como se outra nuvem se tivesse dissipado e, então, um dia alegre começou a brilhar para a Cidade de Deus por toda a terra, letus dies ubique terrarum civitate Dei coruscare cepit (Chron, IV,3). Então, os católicos puderam construir e enriquecer as suas igrejas. O Imperador Constantino exaltou de tal modo a Igreja que entregou ao Papa Silvestre as insígnias imperiais, e se transferiu para Bizâncio onde estabeleceu a capital do império.
Note-se a observação seguinte feita imediatamente por Otão de Freising: “Eis a razão pela qual a Igreja de Roma reivindica para a sua jurisdição os reinos do Ocidente, já que Constantino lhos transferiu e, prova disso, é que não hesita em lhes cobrar impostos até hoje, exceto dos dois reinos dos Francos: Exhinc Romana ecclesia occidentalia regna sui iuris tanquam a Constantino sibi tradita affirmat, in argumentumque tributum exceptis duobus Francorum regnis usque hodie exigere non dubitat (ib. IV, 3).
Os defensores do Império, contudo, afirmam que Constantino não entregou o reino desse modo aos Papas Romanos mas, por reverência para com o Senhor aceitou-os como pais – tomando-os como sacerdotes do Sumo Deus - e insistiu em dizer que ele e os seus sucessores seriam abençoados por eles e sustentados pela proteção de suas orações.
O fato é que Deus quis exaltar a sua Igreja, prossegue o Bispo de Freising, e para que ela se tornassse mais garantida quanto ao prometido reino celeste, entregou-lhe um reino temporal que era o maior de todos. Vê-se, desse modo, que a Cidade de Cristo já recebeu no presente quase tudo o que lhe fora prometido, exceto a imortalidade.
Otão reconhece que está a viver numa época muito atribulada, “apud nos vero tam tetra iam videtur confusio...”(ib.,VII,34), em que pululam tantos males físicos e tantos desatinos políticos que, se não fossem as orações e os méritos dos santos, o mundo já teria perecido (ib.,VII,21).
No prólogo do Livro IV ele discorre sobre o conflito entre o Sacerdócio e o Império, “ grande e séria questão” diz ele, “sed gravis hic oritur questio magnaque de regni ac sacerdotii cristicia dissensio”. Otão expõe com muita clareza os argumentos disparados pelos dois partidos. Os defensores do Império acham que lhe assiste o direito de conceder e de dispor das dignidades, dos ducados, condados, enfim, das honrarias e dos cargos administrativos, tal como reconhecem competir ao poder espiritual o gozo dos benefícios eclesiásticos como os dízimos, as primícias e as oblações dos fiéis.
Os defensores do partido eclesiástico, empenhados no conflito, acham por sua vez, que a Igreja pode dispor licitamente dos bens imperiais, os regalia, uma vez que esse direito lhe foi concedido pelo Imperador Constantino.
Depois de expor minuciosamente esses argumentos dos dois partidos, Otão vê-se constrangido a pronunciar-se sobre a espinhosa questão, delicada situação a sua, já que, de um lado, ele é Bispo de Freinsing, monge cisterciense, da Ordem religiosa de São Bernardo, o guardião da ortodoxia e, por outro lado, é aristocrata de alto coturno, membro da família imperial, tio de Frederico I, e pessoa de confiança do partido imperial.
Otão de Freising dá a impressão de querer sair de fininho do imbróglio, dando suavemente uma no cravo outra na ferradura, mas sem que se possa pôr em dúvida a sua lealdade e o seu sincero apego à Santa Igreja. “Em resposta a isso, diz ele, confesso não achar outra escapatória senão reconhecermos que santos homens de fé apostólica e de mérito, como os Papas Silvestre I, Gregório Magno, e os bispos Ulrico, São Bonifácio, Lamberto, Gotardo, e tantos outros, tiveram essas prerrogativas. Eu, no entanto, para exprimir a minha convicção, ut de meo sensu loquar, confesso ignorar absolutamente, prorsus ignorare me profiteor, se a exaltação da Santa Igreja, que presentemente se percebe, agrada mais a Deus que a sua humilhação anterior. Com efeito, parece que o primeiro estado foi melhor mas que o presente é mais feliz”. Atente-se bem para a escolha dos termos feita por Otão, e para a sua piedosa esquiva: “Videtur quidem status ille fuisse melior, iste felicior”.
Submeto-me, entretanto, continua Otão, à santa Igreja Romana que não duvido tenha sido edificada sobre a pedra firme, e eu creio que se deve acreditar no que ela acredita, e que pode ser possuído lícitamente tudo o que ela possui”.
Otão conclui filosoficamente que, se alguém quiser argumentar de modo mais sutil e profundo, essa decisão não sofrerá absolutamente, de sua parte, restrição alguma.
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No prólogo do Livro V, Otão de Freising volta a dizer que todo poder político e toda sabedoria surgiram no Oriente e migraram para o Ocidente. O poder político passou dos Babilônios aos Medos e Persas, daí aos Macedônios, depois aos Romanos e, de novo, com o nome Romano retornou aos Gregos para chegar até aos Francos que habitam no Ocidente. Assim, também, a sabedoria nasceu primeiramente no Oriente, isto é, na Babilônia, depois passou para o Egito, e para a Grécia no tempo dos filósofos, para Roma no tempo dos Cipiões, de Catão, Cícero e, principalmente, dos Césares e, por último, muito recentemente chegou ao Ocidente, isto é, às Gálias e às Espanhas, na época dos ilustres doutores Berengardo de Tours, Manegoldo de Lautenbach e Anselmo de Laon.
Não podemos deixar de reconhecer, diz ainda Otão, que o mundo, cada vez mais trôpego, chega a soltar o último suspiro da mais extrema velhice, .... nos iam deficientem et tanquam ultimi senii extremum spiritum trahentem cernimus.
No prólogo do Livro V da Crônica, assevera Otão que, desde Constantino, as Duas Cidades converteram-se numa só com seus habitantes misturados como os grãos com a palha. A Cidade dos justos primeiro permaneceu oculta na outra até à vinda de Cristo e, desde então, progrediu pouco a pouco até ao tempo de Constantino. A partir daí, no entanto, cessadas as perseguições movidas pelos inimigos externos, ela passou a sofrer tribulações internas, por instigação do diabo, até o tempo de Teodósio, o Velho. O seu causador foi Ario, secundado pelos Augustos. Em seguida diz Otão, como o povo, e também os imperadores, exceto uns poucos, se tornaram Católicos, parece-me ter composto a história não de duas cidades mas quase apenas de uma só, videor mihi non de duabus civitatibus, sed pene de una tantum, quam ecclesiam dico, hystoriam texuisse. (Chron. V, Prologus)
Uma vez que os eleitos e os repróbos estão numa só casa, insiste Otão, não posso tomar por duas estas cidades, como o fiz acima, mas devo considerá-las uma só, composta de grãos misturadas com palha. É verdade, reconhece Otão , que ainda persiste a cidade dos infiéis judeus e pagãos, mas comparada aos reinos cristãos mais nobres, ela é inexpressiva perante Deus e o mundo.
Finalmente, no prólogo do Livro VII, Otão de Freising acrescenta que não separa o Império Cristão da Igreja, já que existem duas Pessoas na Igreja de Deus: uma sacerdotal e a outra, real, e, desde o tempo de Teodósio, não existem mais duas cidades, mas apenas uma, a Igreja, embora composta de grãos e palha, de justos e pecadores. Só Deus verdadeiramente reconhece quais são os bons e os maus existentes na sua Igreja. Uma coisa é certa, porém, os repróbos, sejam leigos ou eclesiásticos, não pertencerão à Cidade de Deus na eternidade.
Encerramos, finalmente, nossa exposição. Confesso que teria, ainda, outras reflexões a apresentar sobre a Crônica ou a História das Duas Cidades de Otão de Freising, mas acho que já bastam estas que acabo de registrar sobre o núcleo de sua obra e sobre os aspectos capitais de seu pensamento histórico e teológico.
NOTAS
ARISTÓTELES E A LÓGICA
Na Crônica das Duas Cidades (Livro II, 8), Aristóteles é apresentado como o lógico por excelência: “... logicam in sex libros ... distinxit”. Após aludir ao conteúdo de cada um deles, Otão declara que a ciência da lógica serve ao perfeito filósofo não só para conhecer a verdade como para evitar a falsidade. Platão, por sua vez, de acordo com a tradição agostiniana, é citado como precursor do cristianismo. Otão de Freising estudou em Paris exatamente na época em que ali estavam em evidência as obras da nova lógica, isto é, todos os tratados do Organon traduzidos pela primeira vez diretamente do grego para o latim. Foi com esse instrumento lógico que se começou a elaborar a ciência teológica escolástica. Otão foi testemunha em Paris desse grande acontecimento cultural. Este apontamento pode ser completado e ilustrado pela preciosa informação sobre a difusão do aristotelismo nas escolas urbanas do século XII, e sobre o ensino e a condenação teológica de Gilberto de La Porrée e de Pedro Abelardo, que se acha no Livro I, 46-47 da obra Gesta Friderici I Imperatoris ( M.G.H. ), pag.376.
A VIDA MONÁSTICA
Na Crônica das Duas Cidades (Livro VII, 35) Otão de Freising descreve a translação da vida monástica do Oriente para o Ocidente, que ele considera como parte da translação geral do Império. Esse Livro VII da Crônica conclui com bela descrição do monaquismo na época de Otão de Freising, tal como florescia na França e na Germânia.
O PRESTES JOÃO
Segundo a informação de Otão de Freising na Crônica das Duas Cidades (Livro VII, 33), o Prestes João era cristão nestoriano, rei e sacerdote, que combateu numa guerra os persas, os medos e os assírios, e os venceu. Ele seria descendente dos reis Magos mencionados no Evangelho. É curioso verificar essa referência da misteriosa figura, que tanto impressionou a imaginação dos cristãos medievais e do povo lusitano, principalmente na época dos descobrimentos.
GUELFOS E GIBELINOS
Alguém pode ter estranhado ou poderia estranhar a alusão que faço em minha Comunicação aos dois partidos políticos medievais dos Guelfos e Gibelinos que atenazaram a vida das cidades italianas, como se tal distinção fosse anacrônica, uma vez aplicada ao bispo germânico de Freising. Acontece, no entanto, que é o próprio Otão quem alude à existência desses dois partidos políticos, ele descreve a origem, no início do Livro II, 2, da obra Gesta Friderici Imperatoris: “Duae in Romano orbe apud Galliae Germaniaeve fines famosas familias hactenus, una Heinricorum de Gwibelinga, alia Gwelforum de Altorf, altera imperatores, altera magnos duces producere solita. Istae, ut inter viros magnos gloriaeque avidos assolet fieri, frequenter sese invicem aemulantes, rei publicae quietem multotiens perturbarant. Nutu vero Dei, ut creditur, paci populi sui in posterum providentis, sub Heinrico quinto factum est, ut Fridericus dux pater huius, qui de altera, id est de regum familia, descenderat, de altera Heinrici scilicet Noricorum ducis filiam in uxorem acciperet, ex eaque Fridericum, qui in praesentiarum est et regnat, generaret, Principes ergo non solum industriam ac virtutem iam saepe dicti iuvenis, sed etiam hoc quod utriusque sanguinis consors, tamquam singularis lapis, utrorumque horum parietum dissidentiam unire posset, considerantes, caput regni eum constituere adiudicaverunt, plurimum rei publicae profuturum praecogitantes, si tam gravis et diutina inter maximos imperii viros ob privatum emolumentum simultas hac demum occasione, Deo cooperante, sopiretur”. Pág.391