Tomás de Aquino e a Metafísica
das Línguas Bantu e Tupi

 

Luiz Jean Lauand
jeanlaua@usp.br
Fac. Educ. Univ. São Paulo

 

Metafísica Bantu

            Em diversas outras ocasiões temos feito referência ao conceito lohmanniano de sistema língua/pensamento, aplicado ao caso das línguas semitas e às indo-européias. Neste estudo, consideraremos as classes gramaticais/metafísicas, um fato peculiar às dezenas de línguas bantu, línguas da África subsaariana (dando particular destaque ao kimbundo[1], a língua africana que mais influenciou o português do Brasil).

            Se toda língua traz consigo uma visão de mundo, no caso das línguas bantu, com suas classes, este fato é ainda mais acentuado. E a filosofia bantu (uma filosofia não escrita, "uma filosofia sem filósofos", no dizer de Tempels), a língua e os provérbios aparecem como elementos especialmente privilegiados: a língua, como a própria base sobre a qual se edifica o pensamento; os provérbios, como sua primeira elaboração.

            Assim, após apresentar alguns aspectos da língua/pensamento bantu - relativos, sobretudo, à nona classe e aos conceitos de Deus (Nzambi) e de Criação -, iremos estabelecendo (a partir de sugestivos provérbios africanos) um confronto com os mesmos temas na tradição filosófico-teológica clássica ocidental[2], aqui representada por Tomás de Aquino. Precisamente a acentuada diversidade dessas perspectivas torna ainda mais interessantes as coincidências.

As classes bantu

            Há um traço marcante nas línguas bantu, que imediatamente desperta a atenção do filósofo: a divisão dos substantivos em classes nominais, geralmente dez, que, ao contrário das declinações latinas (por exemplo), não se limitam a agrupar gramaticalmente as palavras. Transcendendo a gramática, as classes estabelecem uma autêntica divisão metafísica: a primeira sílaba de cada palavra é um classificador: indica em que setor da realidade[3] (ser humano, animal, rio, categoria abstrata, instrumento, etc.) situa-se[4] o ente designado[5].

            Exemplificaremos, a seguir, com o kimbundo. No kimbundo - como em geral nas línguas bantu - encontramos dez classes nominais[6]. Os classificadores de singular e plural são:

Classe                                    Classificador

                                                   (sílaba inicial)

                                    singular                                  plural

1a.                               mu                                           a

2a.                               mu                                           mi

3a.                               ki                                             i

4a.                               ri                                              ma

5a.                               u                                              mau

8a                                ku                                            maku

9a.                               variado                                  ji

10a.                             ka                                            tu

            Alguns exemplos sobre esse sistema de classes.

            A primeira classe - cujo classificador é mu/a - é a dos entes racionais, as pessoas. A palavra-chave desta classe é mutu ou muntu, pessoa (daí o plural: bantu), da qual, evidentemente, derivou o classificador mu. Assim, as palavras desta classe são, na verdade, contrações: mukongo, caçador = mu (tu), pessoa + (ku) kongo, caçar. Desta classe, passaram para nossa língua, palavras como mukama e muleke[7].

            Já a oitava classe, ku/maku, é a dos termos verbais: ku é semelhante ao to do infinitivo verbal do inglês[8]. Penetraram no português do Brasil: Kuxila, dormitar (Mendonça); Kufundu, penetrar, enterrar (Mendonça). Já em Cannecattim (196, 207), encontramos nfundu, escondido, secreto. Daí kafundó e kafuné (ação carinhosa dos dedos no cabelo). Xinga, insultar (Quintão, 35); sunga, puxar (Quintão, 35). Samba é rezar (Cannecattim, 206). Quando Vinicius de Moraes diz que "o bom samba é uma forma de oração", está afirmando algo estritamente rigoroso do ponto de vista etimológico.

            De especial interesse para as comparações que faremos com o pensamento clássico ocidental é a nona classe: seu classificador plural é ji e apresenta singular variado, mas freqüentemente iniciado por n (ng, nd, nz) ou m (mb) . A consoante que se segue ao n da classe "é eufônica, a fim de evitar que o n entre em contato direto com a vogal do radical" (Kagame, 136). É de decisiva importância a observação de Ntite Mukendi (Mukendi, 103): o classificador n é um indicador de ser. N, no caso, indicaria "o que...", "aquele que..." por excelência, ostensiva ou tipicamente, exerce tal ação. Assim, da ação de nadar (zoua), procede a palavra para pato (nzoue, aquele que, por excelência, nada); de longa (carregar), ndongo (canoa, a que carrega); de lula (ser amargo), ndululu (fel, o que, tipicamente, é amargo); de enda (andar), ngenji (viajante) etc. (Quintão, 109,110).

            Dessa classe é-nos familiar Ngambi, o linguarudo (de amba, falar). É interessante observar que o sufixo verbal -ela (Quintão, 83; Valente, 207) indica finalidade, motivação; daí deriva ngambela, engambelar, falatório para obter algo; falar e falar a fim de...

Deus, criação e falar no pensamento de Tomás de Aquino[9]

            As teses de Tomás sobre o falar e a Criação permitir-nos-ão estabelecer interessantes relações com as concepções de Deus e da Criação na filosofia bantu.

            Locutio est proprium opus rationis (I, 91, 3 ad 3); "falar -diz Tomás- é operação própria da inteligência". Ora, entre a realidade designada pela linguagem e o som da palavra proferida, há um terceiro elemento, essencial na linguagem, que é o conceptus, o conceito, a palavra interior (verbum interius, verbum mentis, verbum cordis), que se forma no espírito de quem fala e que se exterioriza pela linguagem, que constitui seu signo audível (o conceito, por sua vez, tem sua origem na realidade).

            Mas, se a palavra sonora é um signo convencional (a água pode chamar-se água, water, eau etc.), o conceito, pelo contrário, é um signo necessário da coisa designada: nossos conceitos se formam por adequação com a realidade. E a realidade, cada coisa real, tem um conteúdo, um significado, "um quê", uma verdade que, por um lado, faz com que a coisa seja aquilo que é e, por outro, torna-a cognoscível para a inteligência humana. É precisamente isto o que Tomás designa por ratio. Assim, indagar "O que é isto?" ("O que é uma árvore?", "O que é o homem?") significa, afinal das contas, perguntar pelo ser, pelo "quê" (quid-ditas, whatness, qüididade), pela ratio, pela estruturação interna de um ente que faz com que ele seja aquilo que é. Daí a sugestiva forma interrogativa do francês: Qu'est-ce que..., "que é este quê?", "que quê é isto?".

            Esta ratio que estrutura, que plasma um ente é a mesma que se oferece à inteligência humana para formar o conceito, que será tanto mais adequado, quanto maior for a objetividade com que se abrir à realidade contida no objeto.

            Dentre as muitas e variadas formas de interpretação da expressão "Deus fala"[10], há uma especialmente importante nas relações entre Deus e o homem: não é por acaso que João emprega o vocábulo grego Logos (Verbum, razão, palavra) para designar a segunda Pessoa da Ssma. Trindade que "se fez carne" em Jesus Cristo: o Verbum não só é imagem do Pai, mas também princípio da Criação (cfr. Jo 1,3). E a Criação deve ser entendida precisamente como projeto, design feito por Deus através do Verbo. Numa comparação imprecisa[11] com o ato criador divino, considero o isqueiro que tenho diante de mim. Este objeto é produto de uma inteligência, há uma racionalidade[12] que o estrutura por dentro. É precisamente essa ratio que, se por um lado, estrutura por dentro qualquer ente, por outro, permite, como dizíamos, acesso intelectual humano a esse ente[13]. No caso do isqueiro, a ratio que o constitui, enquanto isqueiro, é o que me permite conhecê-lo e, uma vez conhecido, consertá-lo, trocar uma peça etc.

            Guardadas as devidas distâncias[14], é nesse sentido que o cristianismo fala da "Criação pelo Verbo"; e é por isso também que a Teologia - na feliz formulação do teólogo alemão Romano Guardini - afirma o "caráter verbal" (Wort-charakter) de cada ser. Ou, em sentença de Tomás: "Assim como a palavra audível manifesta a palavra interior[15], assim também a criatura manifesta a concepção divina (...); as criaturas são como palavras que manifestam o Verbo de Deus" (I d. 27, 2.2 ad 3).

            Assim, para Tomás, não só Deus é, por excelência, Aquele que fala, mas as próprias criaturas são "palavras" proferidas por Deus.

            Essa concepção de Criação como fala de Deus, a Criação como ato inteligente de Deus, foi muito bem expressa numa aguda sentença de Sartre, que intenta negá-la: "Não há natureza humana, porque não há Deus para concebê-la". De um modo positivo, poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma: só se pode falar em essência, em natureza, em "verdade das coisas", na medida em que há um projeto divino incorporado a elas, ou melhor, constituindo-as.

            A "natureza", especialmente no caso da natureza humana, não é entendida pela Teologia como algo rígido, como uma camisa de força metafísica, mas como um projeto vivo, um impulso ontológico inicial[16], um "lançamento no ser", cujas diretrizes fundamentais são dadas precisamente pelo ato criador, que, no entanto, requer a complementação pelo agir livre e responsável do homem.

            Nesse sentido, Tomás fala da moral como ultimum potentiae, como um processo de auto-realização do homem; corresponde-lhe continuar, levar a cabo aquilo que principiou com o ato criador de Deus. Assim, todo o agir humano (o trabalho, a educação, o amor etc.) constitui uma colaboração do homem com o agir divino, precisamente porque Deus quis contar com essa cooperação.

            Essas considerações servirão para analisar algumas convicções da visão de mundo, expressa por provérbios bantu que, surpreendentemente, coincidem de modo profundo com o conceito cristão de criação.

Tomás de Aquino e a metafísica dos provérbios bantu

            Nas línguas bantu, encontraremos diversas designações de Deus (cfr. Kagame, 135 e ss.), como: Kalunga: aquele-que-por-excelência-junta[17]; Leza: o todo-poderoso; Molimo: o Espírito; Ruhanga: O Criador; etc. Mas é Nzambi (ou zambi), da nona classe, a forma mais freqüente e também a mais sugestiva de nomear a Deus. Nzambi é um derivado do verbo amba[18], que significa falar. E chamar a Deus de Nzambi[19], é chamá-lo literalmente de "aquele que, por excelência, fala"[20].

            Há cerca de duzentos anos, numa das primeiras gramáticas de kimbundo, Cannecattim indica que, em "língua congueza", Deus, o Criador, não só se diz Nzambi (aquele a quem compete falar) mas Nzambi-Mpungu (p. 176), forma encontrada ainda hoje em certas regiões (Kagame, 132, 145 etc.). Segundo Marie-Bernard (cit. Kagame, 145), mpungu significa "aquele que voa muito alto". Tal significado é derivado por analogia: mpungu é originalmente uma espécie de águia que voa tão alto, a ponto de tornar-se invisível a olho nu. Daí também os significados derivados de mpungu como adjetivo: o maior, o mais elevado, o supremo, o excelente (Kagame, 145). "Mpungu - segundo Laman (cit. Kagame, 145) - acompanha Nzambi ou outras palavras para expressar as qualidades mais altas". Donde Nzambi-Mpungu: aquele que eminentemente, por excelência, fala.

            Essa forma de designar a Deus, como Aquele-que-Profere, aproxima a concepção bantu do Logos (Verbum) de Jo 1,1 e da idéia de criação de Tomás de Aquino. Uma confirmação desse sentido da Criação como "falar criador de Deus" é encontrada em dois interessantíssimos provérbios kiuoio (Vaz, 178).

A kilamba não tem raízes. Mas não foi Deus quem a fez?

Chi lambu ka kambua li sina. - Bati Nzambi ku chi vanga kó?

            O provérbio - muito tradicional entre os Cabindas - refere-se à surpreendente planta kilamba, que (ao menos, aparentemente) não tem raízes. Ora, isto (que diabos: uma planta sem raiz!?!) contraria a natureza das coisas, não condiz com a Criação, que é sempre ratio. Daí a dúvida (retórica) expressa na pergunta final.

            Em outra versão, o mesmo provérbio é assim apresentado (JM, 61 e 429):

A kilamba, a que não tem raiz, não foi Deus quem a fez.

Kilamba kikambua lisina: Nzambi ka sa kivanga ko.

            Em Ciscato (p. 307), encontramos:

A serpente, por dom de Muluku[21], pode correr, mesmo não tendo patas.

Enowa evahiwé ti Muluku wi enátchimaka ehirí ni Mechó.

            Um outro provérbio, ainda mais significativo, fala da criatura como "palavra proferida por Deus"[22]:

Palavra proferida por Deus, compete ao homem completá-la.

Kambua kikamba Nzambi; muntu limonho uisesula (JM, 431).

            Do conceito de criação como pensamento de Deus, decorre o conceito de mistério para a tradição filosófico-teológica do Ocidente (e para as tribos africanas). Mistério não significa apenas não-conhecimento (fático), mas um determinado tipo de não-conhecimento: aquele que decorre do excesso (e não da falta) de luz.

            Se o mundo foi criado por Deus, isto é, projetado, concebido, falado, pensado pelo Verbo-Nzambi, então cada ente é mistério, e a realidade criada transcende a capacidade de compreensão de uma criatura como o homem. Precisamente esta é a razão pela qual Tomás de Aquino afirmou que nenhum filósofo jamais esgotaria sequer a essência de uma mosca. A essa transcendência, referem-se alguns provérbios:

Coração de Deus: guarda todas as coisas.

Ntima Nzambi: lunda mamonso (JM, 432).

            Esta sentença aplica-se como convite à paciência ("Deus é quem sabe"). Note-se o conceito de ntima (ou mutima ou murima), coração, o íntimo de cada um. Trata-se de um conceito importante na visão de mundo bantu. Embora haja variações regionais, recolhamos aqui o conceito que Laman[23] apresenta em seu dicionário kikongo: "ntima: coração, sentimento, consciência, o interior".

            Ao se afirmar que o ntima Nzambi (coração de Deus) guarda todas as coisas, afirma-se também o ato criador: só Deus conhece o ntima de cada criatura:

O que está no coração de outro, ninguém o sabe.

Make mu ntima ngana: ka mazábi ko (JM, 410)

O coração humano não se contenta com pouco... nem com muito.

Murima ohinamwéla ni ekhani, ni etókwenetho (EC, 261).

Se o coração fosse um cadeado, certamente eu o abriria.

Monti ntima nkandau: Nkanu mazibula (JM, 411)

Ah! se o coração fosse nariz...

(Que bom seria se pudéssemos, pelo "faro", saber como são as pessoas).

Murima wári ephulá... (EC, 135).

Comemos juntos e rimos juntos... O que está no coração, porém, não o sabemos (Vaz, 203).

Liá, tu seva... Ma ké mu ntima ku podi ku ma zaba kó.

Os corações diferem: há gente boa e gente má ([24]).

Ntima viakene: ike muntu mbote ike muntu mbi (JM, 411).

            E, assim, cada um é como é, como Deus o fez (o que, do ponto de vista da ética da convivência, é um chamado à compreensão).

Quando, cerrando os dentes, bates no cão: sabes o que está no coração dele?

Abu uibula mbuá ui kanga meno; ngeie zabizi ma ke mu ntima mbuá? (JM, 208)

O papagaio não pode pôr ovos em outra parte: foi Deus quem o fez assim... (JM, 360)

Nkusu kibuta longo bangana ko: naveka Nzambi uvanga buau

Fenômeno admirável o do ovo: carne por dentro; osso, por fora!

Bunkúlu bukió! Nsunha, mukati; mvese, kunganda (JM, 137).

            Aplicam-se estes dois últimos provérbios ao que está fora da regra geral. Pois, o que a inteligência de Deus cria, nem sempre a mente humana alcança (e, em qualquer caso, nunca esgota):

Embrulho que Deus amarrou, só Deus pode desamarrar.

Kifunda kikanga Nzambi: Uala lukútula Nzambi to (JM, 57).

Nó que Deus amarra, o homem não pode desamarrar.

Likova likanga Nzambi; muntu limonho podi kútula ko (JM, 139).

Questões do coração, a cabeça do homem não comporta.

Mambu manata ntima: Ntu muntu limonho kapódi ku manata ko (JM, 412).

            Mas, no geral, a Criação, enquanto fala de Deus, é "audível" pelo homem, pois as leis da Criação são fala de Deus.

Voz da terra: voz de Deus (Vaz, 17).

Mbembu nsi: mbembu Nzambi

Metafísica tupi-I: Abaeté

"Uma coisa é buriti (...a palmeira de Deus);

outra é buritirana" (Guimarães Rosa)

            Coincidência, coincidir nem sempre indicam casualidade. Pois pode ocorrer que dois (ou mais) venham a dar com o mesmo, e, portanto, co-incidam, não por obra do acaso ("Que coincidência, você por aqui?"), mas até deliberadamente, como quem, por exemplo, dissesse: "Já que há coincidência de interesses, podemos fazer uma sociedade".

            Uma dessas coincidências não-casuais é a que se dá entre duas antigas sabedorias: a da milenar tradição ocidental - representada aqui por Tomás de Aquino - e a tupi.

            "Sabedoria" tupi que deve ser procurada não em tratados filosóficos, mas - como, certa vez, disse João Guimarães Rosa, referindo-se a uma tribo do Mato Grosso - na língua: "Toda língua são rastros de velho mistério".

            A língua tupi, no seu modo singelo e transparente de olhar para a realidade, vem dar com uma das mais fundamentais convicções da doutrina clássica do Ocidente a respeito da Moral. Moral, entendida no sentido que lhe dá Tomás: o ser do homem, o máximo (ultimum potentiae) do que se pode ser enquanto homem, um processo de realização pessoal, em que se caminha para a plena realização das próprias potencialidades ontológicas.

            A moral é concebida, pois, como uma questão de ser ou não ser plenamente homem. É nessa mesma linha que se situa a pergunta fundamental de Shakespeare, por todos conhecida, mas que só nesse enquadramento pode ser compreendida, pois, à primeira vista, surpreende que Hamlet, indeciso sobre o que vai fazer (ou não fazer), não se indague: "To do or not to do?". E é que, como dizíamos, na concepção tradicional do Ocidente, o agir remete a algo de mais profundo: o ser. O que eu fizer, ou deixar de fazer, implicará o que serei ou não serei enquanto homem e, portanto, "to be or not to be?" é que é a questão.

            Na cultura tupi, evidentemente, não podemos esperar encontrar uma elaborada doutrina metafísica dos transcendentais ou fundamentos ontológicos da Moral. Mas, na língua, encontramos interessante coincidência.

            Ensinam as gramáticas que o superlativo (portanto o ultimum, o máximo), em tupi, constrói-se pela justaposição de -eté ao termo: assim, por exemplo, catu (bom) tem o comparativo catupiri (melhor) e o superlativo caturité (o melhor). Note-se que -eté pode significar não só o superlativo, mas também "verdadeiro e bom" (no sentido ontológico dos transcendentais, como quando se diz: "Amélia é que era mulher de verdade", ou que tal cheque "é bom para dia tal", isto é, vale, é em ato, a partir do dia tal).

            Em tupi, uma mesma palavra yaguar, designa de cachorro a onça. Mas yaguareté não significa cãozinho qualquer, mas somente a onça que é o yaguar-máximo, para valer, de verdade, eté.

            Já o contrário de -eté far-se-á com o sufixo -ran (ou rana). Ajuntar -ran pode significar - em primeiro lugar - mera semelhança, e é natural que uma língua primitiva como o tupi, construa muitos conceitos com base na parecença: cajarana (parece cajá), tatarana (parece fogo) etc.

            Mais interessante, porém, para este nosso estudo, é o significado derivado do sufixo -ran: parecido no sentido de falhado, fracassado, o que parece mas não é. Precisamente o oposto de -eté[25]. Um exemplo nos ajudará a comparar esse sentido de -ran com seu contrário, -eté. Terra é ibi; uma terra boa, fértil, onde basta lançar a semente e logo, sem maiores cuidados, ela germina, floresce e dá abundantes frutos é, naturalmente, ibi-eté. Já uma terra (mesmo trabalhada e adubada) em que a semente não vinga, é ibi-ran: parece terra, tem cor de terra, cheiro de terra, consistência de terra mas, na realidade, não é terra.

            Que tem tudo isto que ver com a moral clássica? Homem, em tupi, é aba. Um homem moralmente bom, honrado, digno é aba-eté (homem ao máximo, de verdade, ao superlativo, ultimum); já o canalha, o imoral é aba-ran: parece homem, mas não é. Tal como na concepção de Tomás.

Como explicar a coincidência? Talvez pelo fato de ambos incidirem sobre um terceiro fator: a realidade!

Metafísica tupi-2: Güera, Puera, Qüera.

            O filósofo ideal, diz T. S. Eliot, deveria estar familiarizado com todas as línguas. Não se trata aqui, naturalmente, da possibilidade - sem dúvida, do mais alto interesse para qualquer pesquisador - de ler as publicações estrangeiras da especialidade no original. Nesse sentido, o tupi não teria o menor relevo para o estudioso de filosofia.

            Mas, se aceitamos que o filosofar é um resgate das grandes experiências humanas que se condensam em linguagem comum, então não nos parecerá exagerada a sentença de Eliot.

            E, para nós, o tupi oferece um interesse adicional, na medida em que influenciou o português falado no Brasil.

            Na singeleza e transparência do tupi, encontram-se, como dizíamos, sugestivas peculiaridades filosóficas estranhas ao falante de línguas européias: é o caso da composição com güera.

            Ao ajuntar, a um substantivo x, a terminação -güera (qüera ou puera, de acordo com a eufonia), obtemos uma curiosa alteração semântica: x-güera é o que foi x, já não é mais (ao menos, em sentido próprio e rigoroso), mas preserva algo daquele x que um dia foi.

            Assim, anhangá é diabo, espírito com poderes; já anhangüera[26] é alguém que sem ser (mais) diabo, preserva algo do diabólico poder que um dia teve em plenitude. Ibirapuera é o que resta daquilo que um dia foi mata (Ibirá)[27]; Itaqüera, o mesmo para pedreira (ita, como se sabe, é pedra); e Piaçagüera é porto em ruínas, que já não se usa mais.

            A composição com -güera é freqüentíssima no tupi e está continuamente a recordar-nos - algo, hoje, tão esquecido - que há uma conexão entre o presente e o passado, entre o futuro e o presente; que há leis naturais regendo o desenvolvimento das coisas e que as ações têm conseqüências: projetam-se, deixam um rastro, um güera.

            Cutucagüera (cicatriz), por exemplo, faz lembrar, imediatamente, que aquele sinal no corpo é o que ficou como resíduo de uma espetada (cutuc é ferir com ponta); capuera, roça abandonada; tapuera (taba-puera), os escombros que lembram que aquilo um dia foi taba. De pay (como o índio chamava o padre), procede paycuera (o que deixou de ser padre) etc.[28].

            O português não distingue a carne integrada no vivente, da que se vende no açougue; nem a pele do animal vivo da que está na bolsa ou artefato. Porém, para a sensibilidade, em face da natureza, que há no tupi: soó é a carne viva do animal, mas a que está na panela ou churrasqueira é algo diferente: é soóqüera; a pele, no corpo do animal vivo, é pi; uma vez extraída, porém, é pipera[29]. E peruca é abagüera (aba é cabelo vivo); enquanto de canga (osso), forma-se cangüera, ossada, esqueleto de animal e pepocoera é a pena (pepó), uma vez arrancada do pássaro.

            Interessante é observar que güera não se aplica só a realidades físicas (como aquelas com que, até aqui, temos exemplificado), mas também à realidade propriamente humana e até moral.

            Assim, mbaé tem o sentido amplo de coisa; já mbaépuera é somente intriga, fofoca, mexerico... Nheen é falar, a fala viva da voz - forma originária de toda comunicação -, nheengüera é o recado, o escrito.

            Dizíamos que esta articulação x-güera do tupi pode ser de grande alcance moral. A ética clássica ocidental apóia-se na constatação de que o ato humano não se esgota no momento em que a ação foi praticada; projeta-se, criando na alma, uma pré-disposição (um güera) para o vício ou para a virtude. Precisamente este é um dos sentidos de güera: o hábito, a disposição para praticar novos atos no sentido dos anteriores. Assim, o viciado em aguardente (kauim) é kaugüera; o metido a falar é jurugüera (juru é boca); o risonho, pukagüera etc.[30].

            E também o conceito filosófico-teológico de reato de culpa poderia ser - se S. Tomás tivesse conhecido o tupi - facilmente caracterizado como pecado-güera.

Metafísica tupi-3: Putári / cy

            No clássico pensamento ocidental, há, por assim dizer, dois níveis de querer, naquele sentido de que fala Platão no Górgias: o homem injusto que faz o que "quer", mas não faz o que quer.

            Assim, uma conduta egoísta, interesseira, motivada pelo afã de poder, injusta, por muito que possa favorecer as realizações periféricas do ser humano, necessariamente não conduz à realização fundamental: a do ser. Com isto se diz que não somos senhores daquele querer mais profundamente enraizado no coração humano: querer ser feliz. E que, pela criação, já estão previamente traçadas as diretrizes fundamentais dessa nossa realização.

            Em outras palavras, por natureza, isto é, por nascença, o homem já conta com uma dinâmica apetitiva fundamental que o move em busca de sua plenitude. Nossa liberdade só atua no outro nível: o das decisões aqui e agora que - mais ou menos acertadamente - traduzem em ação, aquela inclinação natural[31]. Evidentemente, cada passo neste nível pode ser um passo que nos aproxime ou nos afaste (conforme a ação seja boa ou má) daquela realização definitiva e profunda, à qual, por natureza, estamos chamados.

            No que se refere ao nível fundamental, Tomás afirma: "querer ser feliz não é objeto de livre escolha" e "o homem, por natureza e necessariamente, quer a felicidade"[32]. Não é, pois, de estranhar que classicamente se compare a busca da felicidade às necessidades naturais de beber e comer[33].

            Precisamente essa não-possibilidade de escolha sobre o fim último da existência, essa anterioridade (o homem já está lançado em busca do seu bem objetivo), é um dos pontos chaves da cosmovisão de S. Tomás. Porém, ao traduzir a realidade em linguagem, não encontramos nas línguas européias, reflexos nítidos dessa dualidade de níveis: dizemos indiscriminadamente: "eu quero isto", "eu quero aquilo", "eu quero um sorvete de creme" ou "eu quero ser feliz".

            Uma vez mais, como faz notar Couto de Magalhães[34], encontramos agudas intuições metafísicas na língua tupi. O tupi vale-se, muito freqüentemente, do verbo putári (querer, desejar): Xa u putári pirá, eu quero comer peixe; ou Xa u putári soóqüera, eu quero comer carne. E putári percorre um mais amplo espectro de desejos[35], sendo mesmo levado a extremos semânticos e inclusive ao superlativo putári-reté: quero muito mesmo, preciso disto. Quando, porém, se trata de desejo que é fruto não de escolha, mas de imposição da natureza, então não dizem putári mas cy ou cey, palavras que indicam dor, desestruturação do ser[36], se a necessidade não for satisfeita: Xa iumacy, quero comer (não já comer isto ou aquilo, peixe ou carne, mas a necessidade natural de alimentar-me). Igualmente, ter sede é y cey e não putári.

            Com esta distinção do tupi, é-nos muito mais fácil conceber e expressar a bem-aventurança humana que, como se sabe, já foi descrita como coroamento da fome e sede... de verdade e justiça.

Metafísica tupi-4: Poranga/Catu - O transcendental belo

            Bom, em tupi, é catu; belo, poranga (ou porã, em guarani). Duas palavras que aos brasileiros são familiares, especialmente a última, pelos topônimos, como por exemplo, Botucatu (vento bom, bons ares); Ponta-Porã (híbrida: ponta bonita). E há, pelo menos, oito estados[37] com cidade chamada Itaporanga.

            No tupi descrito por Couto Magalhães, há uma interessante peculiaridade, assim descrita por esse autor: "Em vez de dizerem alguma coisa boa, eles dizem alguma coisa bonita (poranga). Bondade física para eles é o mesmo que boniteza e vice-versa. A palavra catu, bom, exprime ou qualidades morais ou bondade que não se veja, como a de uma planta eficaz para uma moléstia"[38].

            E, assim, uma vez mais, a língua indígena vem ao encontro da filosofia de S. Tomás.

            O belo é um transcendental do ser, algo idêntico (na coisa) ao ente (e ao bem), e com ele conversível[39], embora tenha uma razão de definição diferente: "O belo é idêntico ao bem, só dele difere pelo aspecto que enfatiza"[40]. E este algo, que o belo acrescenta ao bem, é uma certa relação com o conhecimento: neste ponto, S. Tomás faz notar (sempre a linguagem comum!) que dentre as coisas sensíveis, chamamos belo ao que vemos e ouvimos (um quadro belo, uma melodia bela), mas não aos aromas ou sabores. E conclui: "Chama-se bem ao que absolutamente (simpliciter) apraz ao apetite; belo àquilo cuja apreensão nos apraz"[41].

            Essa intuição metafísica do tupi, curiosamente ocorre também - embora seja menos evidente - nas línguas latinas e, especialmente, no português: "bonito" e "belo" são ambos derivados de "bom" (e acabaram por suplantar "pulcher", cuja forma portuguesa, "pulcro", também caiu em desuso na linguagem corrente).

            Ensinam Ernout e Meillet[42] que bellus nada mais é do que um diminutivo familiar de bom, empregado em todas as épocas (inicialmente aplicado somente a mulheres e crianças - algo assim como o pretty inglês) e, por seu caráter afetivo, acabou por superar pulcher na língua do povo.

            Se, no tupi, "bonito" ocupa parte do espaço semântico de "bom", no português, são formas originariamente afetivas e derivadas de "bom" que expressam o bonito.

            Nos dois casos, o fundamento é o mesmo: que, na realidade, bom e belo são idênticos[43], diferenciando-se apenas no apelo que o belo faz ao conhecimento de formas[44], daquilo que, portanto, é formoso.

Bibliografia

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CISCATO, Elia  Masiposhipo, proverbi, detti, espressioni idiomatiche del popolo lomwe, Milano, Segr. Missioni.

JAHN, Janheinz  Muntu: Las culturas neoafricanas, México-Buenos Aires, F. de Cult. Econ., 1963.

KAGAME, Alexis  La philosophie Bantu comparée, Paris, Présence Africaine, 1976.

KUKANDA, Vatomene  Esquisse Grammaticale du Kimbundu, (diss.) Univ. Nationale du Zaire, 1974.

MARTINS VAZ, J.  Filosofia Tradicional dos Cabindas (volume II), Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1970.

MARTINS, Joaquim  Sabedoria Cabinda. Símbolos e Provérbios, Lisboa, Junta de Investigações de Ultramar,1968.

MENDONÇA, Renato  A influência africana no Português do Brasil, 4a. ed. Rio de Janeiro, Civ. Bras., 1973.

MUKENDI, Ntite  "Langues Africaines et vision du monde" art. publ. em Présence Africaine, 103, 3o. trim., 1977.

QUINTÃO, José Luiz  Gramática de Kimbundo, Lisboa, Descobrimento, 1936.

TEMPELS, Placide  La philosophie bantoue, Paris, Présence Africaine, 1965, (orig. holand. 1948).

VALENTE, José Francisco  Gramática Umbundu, Lisboa, Junta de Investigações de Ultramar, 1964.



[1]. Falado em certas regiões de Angola. Referir-nos-emos também a duas outras línguas angolanas: o umbundu e o kiuoio. A coletânea de provérbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe, de Moçambique.
[2]. Esse confronto com o pensamento europeu é tema tratado por autores como Kagame, Tempels e Jahn. Todos os autores e lexicógrafos citados neste estudo, encontram-se na Bibliografia apresentada ao final. Citaremos pelo sobrenome, seguido da página (quando não indicarmos a página, trata-se de referência a dicionários ou listas em ordem alfabética). O livro de Joaquim Martins será abreviado por JM.
[3]. Este fato é independente das diversas interpretações sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade. Como se sabe, há diversas teorias a esse respeito. A realidade, para os bantus, na interpretação pioneira de Tempels (cap. II), está centrada não no ser, mas na força, na força vital: "Para o bantu, a força não é um acidente; é muito mais até do que um acidente necessário, é a própria essência do ser em si". Já Kagame (pp. 210 e ss.) faz sérias críticas à teoria da "força vital".
4. Advirta-se, desde logo, que o observador europeu ou americano encontrará nessas classes muitas "exceções", intromissões e permeabilidades inter-classes, imprevistas para quem supõe que uma lógica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da língua e, principalmente, para quem ignora o fenômeno da formação de palavras por extensão de sentido, ou ainda o particular ângulo de observação do homem africano.
[5]. Para além desta primeira divisão em dez classes, há o que Kagame designa por "quatro noções unificadoras últimas" que, por sua vez, remetem a uma única raiz transcendental: -ntu, ser (Kagame, 121 e ss.). Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretações da filosofia subjacente à linguagem bantu (suas classes e categorias). Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizá-las com Tempels. As quatro "noções unificadoras últimas" - misto de ser, força e substância - são assim apresentadas por Jahn: "Muntu = homem, Kintu = coisa, Hantu = lugar e tempo, Kuntu = modalidade. São as quatro categorias da filosofia africana. Tudo o que é, todo ente, qualquer que seja a forma sob a qual se apresente, pode se incluir numa destas quatro categorias. Fora delas, nào há nada de imaginável. Ntu é a força universal em si, mas que jamais aparece separada de suas formas fenomênicas: Muntu, Kintu, Hantu e Kuntu" (Jahn, 136-137).
[6]. Palavras da 6a. e da 7a. classes são muito raras. Já a nona classe interessar-nos-á particularmente. Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado, do ponto de vista da língua, em "Linguagem-Filosofia Bantu e Tomás de Aquino", Cadernos de História e Filosofia da Educação, EDF- FEUSP vol I, No.1. 1993, pp. 15-28.
[7]. Em kimbundo, kuamua (Quintão 34, 77), ou em umbundu, kamwa (Valente, 396) é a forma passiva de mamar, chupar. Muleke - menino (Cannecattim, 193).
[8]. Ku (ao contrário de ki, 3a. classe, que aponta para ação intermitente) indica ação contínua. Nesses termos verbais, o classificador ku não é conjugado. Da 8a. classe procedem diversas palavras. Nos exemplos que seguem, omitiremos, por vezes, o ku.
[9]. Boa parte dos conceitos apresentados neste tópico recolhem idéias do excelente capítulo de Josef Pieper "Was heisst Gott Spricht?" in Über die Schwierigkeit heute zu Glauben, München, Kösel, 1974, que deve ser consultado para uma exposição mais ampla do assunto.
[10]. Deus fala, gerando eternamente o Verbo; fala também na inspiração ou na iluminação mística do homem, hagiógrafo ou profeta; fala ainda, pela luz da fé que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradição, a palavra do Senhor, verbum Domini. Fala de Deus, em um outro sentido, é a Encarnação do Verbo, com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua máxima realização (cfr. Hbr I, 1).
[11]. Imprecisa, pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligência divina, e no outro, de um objeto artificial projetado pelo homem.
[12]. Inteligentemente o designer articulou a pedra, a mola, o gás etc.
[13]. Não por acaso, Tomás considera que inteligência é intus-legere ("ler dentro"): a ratio do conceito na mente é a ratio "lida" no íntimo da realidade.
[14]. Infinitas, no caso do ato criador de Deus.
[15]. O conceito, a idéia.
[16]. Ou melhor, "principial".
[17]. À primeira vista, surpreende que Kalunga, Deus, seja da 10a. clas-se (a dos diminutivos, ka). Na verdade, o africano, muitas vezes, vale-se do diminutivo para aumentar.
[18]. Forma muito comum às línguas bantu. Como já vimos em tópico anterior, ngambi é o linguarudo; e samba é orar: oração, também em latim, procede de os, oris: boca.
[19]. O N, como dizíamos, é o prefixo da 9a. classe que significa: aquele que, por excelência,...
[20]. A transformação do a final de amba no i de Nzambi é absolutamente exigida pela fonética
[21]. Muluku (cfr. EC, p. 86) é transcendente (e, ao mesmo tempo, imanente) livre e soberano, eixo profundo da moral e da religião, presidindo a vida, a consciência e a natureza.
[22]. Note-se, no original, que o radical amb se repete por três vezes.
[23]. Cit. por Kagame, p. 245
[24]. Dentre as expressões idiomáticas dos lomwe, destacamos: Orú-wana etchekú (EC, 1625), girar o coração ("mudar de atitude"). É interessante observar que também na tradição bíblica e oriental, o coração é um girador. Em árabe, esta concepção verifica-se até etimologicamente: qalb, coração procede do verbo qalaba: virar, girar, oscilar. Daí que o ser humano, girando em seu centro volitivo e existencial, seja inconstante: ora volta-se para uma coisa; ora, para outra... Também a nossa canção popular registra o verso: "Ai, gira, girou, meu coração navegador...".
[25]. Contou-me Dito Quevedo, futebolista matogrossense (que também jogou no Paraguai), que quando um jogador perde um "gol feito" por querer "enfeitar", a torcida de seu time (entre muitas outras coisas...) o chama de Peré-ran: um Pelé que não deu certo, um pseudo-Pelé, que parece Pelé mas não é, um Pelé falhado.
[26]. Salvo quando explicitamente citarmos outra fonte, os termos tupis a que referimos, podem ser encontrados em Silveira Bueno Vocabulário tupi-guarani-português, S. Paulo, Brasilivros, 3a. ed., 1984.
[27]. Ibirá ou Ubirá (lembre-se que o U tupi -ü- é grafado i ou u em português), como por exemplo em Ubirajara - senhor da mata).
[28]. Nem sempre güera indica decomposição ou corrupção, como até aqui indicam os exemplos; pode-se deixar de ser o que foi, preservan-do algo, em outro estado transformado: por exemplo ypuera é suco de fruta; manipuera, suco de mandioca.
[29]. Estes exemplos encontram-se no curso de Tupi que se apresenta em Couto de Magalhães O Selvagem, ed. fac-sim. Edusp-Itatiaia, 1976, p. 12.
[30]. Edelweiss, F. Estudos tupis e guaranis.  Rio, Brasiliana, 1969, pp. 258-259.
[31]. Há, portanto, uma dúplice voluntariedade: a necessária, no primeiro nível; a de escolha, no segundo.
[32]. I, 18, 10 e I, 94, 1 resp.
[33]. Cfr. por exemplo Pieper Glück und Kontemplation.  cap. VI.
[34]. Op. cit.  pp. 81, 84-85.
[35]. Nas lendas indígenas recolhidas por Couto de Magalhães, mesmo o ardente desejo de relações sexuais é expresso por putári.
[36]. No inglês, encontramos o sugestivo advérbio badly, para necessidades prementes.
[37]. BA, GO, MS, PB, SP, SE, MG, CE; ocorrendo por vezes as variantes: Itapurã ou Itapuranga.
[38]. Op. cit.  p. 65-66.
[39]. S. Tomás  S. Theol.  I-II, 27, 1, ad 3.
[40]. Ibidem, loc. cit.
[41]. Ibidem, loc. cit.
[42]. Verbete bonus. Dictionnaire Etynologique de la Langue Latine, Paris, Klinksieck, 1951, 3éme ed..
[43]. Na linguagem que se dirige às crianças, é freqüente designar o mal (sobretudo o mal moral, real embora invisível) pela sua versão sensível: "Não mente que é feio", ou ironicamente "Muito bonito! Foi assim que a mamãe ensinou?"

[44]. Formas que, por sua vez, remetem, em última instância, ao ser.

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