Entrevista
  Raimundus Lullus Institut - Freiburg
Fernando Domínguez Reboiras

(diretor da edição crítica latina no Raimundus Lullus Institut
 
da Univ. Freiburg im Br. Entrevista realizada em São Paulo, 19-10-98.
Entrevista, edição e tradução: Jean Lauand)

 

JL: Gostaríamos que falasse um pouco sobre o Institut: como surgiu, como está estruturado etc.

FD: O Institut tem uma história relativamente simples. Seu começo está relacionado com um professor - muito importante nos meios da ciência histórica alemã e catalã e que lecionou quarenta anos na Universidade de Freiburg - o doutor Heinrich Finke.

Finke foi indiscutivelmente uma figura notável para os estudos medievais na Alemanha na primeira metade do século e foi, por assim dizer, o descobridor dos fundos do arquivo da Coroa de Aragão em Barcelona. Ele soube reconhecer a importância desses fundos para o estudo da história medieval do século XIV. Com essa descoberta, houve uma radical transformação na história dos papas de Avignon e na história do Mediterrâneo.

Ele publicou três tomos famosos: as Acta Aragonensia. Era um filo-catalão apaixonado - orientou cento e vinte teses de doutoramento sobre a história de Catalunha - e naquele tempo, em que a Catalunha não tinha um governo independente -, foram a Freiburg muitos historiadores - como Fernand Soldevila - e até musicólogos, como Higini Anglès... Enfim, para a geração da Segunda Renascença catalã, Finke foi muito importante: e parece-me que influenciou muito toda a historiografia catalã: muitos historiadores foram seus alunos e fizeram a tese com ele.

Ao redor de Finke formou-se um grupo de catalanistas e um deles, Ludwig Kleiber, foi diretor da biblioteca da universidade. Era um especialista em Juan Manuel, escreveu muito sobre Lúlio e fez a primeira tradução ao alemão do Livro do Amigo e do Amado. Kleiber era muito amigo dos pesquisadores que trabalhavam nas obras de Lúlio em Mallorca, principalmente de Salvador Galmés, cujo sonho era - depois de editar as obras catalãs - editar as obras latinas de Lúlio. Havia um trabalho imenso - e também um problema econômico: boa parte das edições catalãs foram custeadas pelo próprio Galmés - e Kleiber propôs a um conhecido medievalista, Friedrich Stegmüller, que era professor na Faculdade de Teologia da Universidade de Freiburg, que colaborasse nessa tarefa. Stegmüller era um desses trabalhadores incansáveis - por exemplo, seu trabalho foi decisivo nos estudos medievais para o reconhecimento de autores desconhecidos - e aceitou a proposta de iniciar a edição das obras latinas de Lúlio, pois já estava entusiasmado com a originalidade desse autor...

Houve um contrato formal: Galmés passou oficialmente ao Prof. Stegmüller seu programa de edição das obras latinas. Isto foi em 1957, o momento do primeiro boom econômico alemão, o Estado tinha dinheiro e criou o Raimundus Lullus Institut, com três postos fixos de trabalho: dois mantidos pelo governo de Stuttgart e outro pela Deutsche Forschung Gemeinschaft, o conselho alemão de pesquisas. Atualmente, o Institut só dispõe de um posto de pesquisador.

Stegmüller, que era muito trabalhador e exigente, começou a edição com um ritmo impressionante: em 1962 já estavam publicados três tomos e outros cinco já preparados. A edição foi interrompida por um fato curioso: no primeiro contrato de Galmés e Stegmüller, Mallorca se comprometia a publicar os livros e os primeiros cinco tomos foram impressos em Mallorca; mas já para o sexto não havia dinheiro... e a edição se interrompeu de 1965 a 1975.

Em 1974, decidimos mudar o processo: começamos a procurar editoras que publicassem as obras de Lúlio e - este é um fato muito curioso - nenhuma editora da Catalunha se interessou!

A editora Gredos de Madrid fez uma oferta, mas ficamos com a Brepols. A Brepols estava interessada em estender a Continuatio do seu Corpus Christianorum até o século XV (a patrologia de Migne não passa do ano 1100), mas tinham um certo receio e usaram precisamente um volume de Lúlio como teste: enviaram-no aos assinantes, não houve reclamações e, desde então, publicam até autores do século XV.

Stegmüller não queria mudanças na estrutura da edição - ele queria continuar publicando em Mallorca -, mas em 1968 sofreu um ataque cerebral e ficou paralítico. Foi um caso muito trágico porque era um homem muito dinâmico e, embora perfeitamente lúcido, ficou sem poder falar e sem poder escrever. Veio a falecer em 1981. Com seu sucessor, o Prof. Helmut Riedlinger, implantamos as mudanças: a edição no Corpus Christianorum. Riedlinger foi diretor do Institut até 1989: Peter Walter, seu sucessor na cátedra, é quem, hoje, oficialmente o dirige. Isto porque o Institut está vinculado à cátedra de Teologia Dogmática e, oficialmente, o diretor é quem ocupa a cátedra. No tempo de Riedlinger quem exercia na prática as funções de direção era o americano Charles Lohr, que se aposentou em 1990 e, a partir de então, eu o substituí.

Este é um resumo da história administrativa de nosso instituto.

JL: Em que fase se encontra a edição das obras latinas de Lúlio?

FD: É muito importante o fato da edição não depender do que possa durar a vida e o empenho de uma pessoa: o Institut, precisamente por ser uma instituição, com um orçamento fixo, levará o projeto até o fim: estamos já no vigésimo terceiro dos cinqüenta e cinco ou sessenta tomos que perfazem a obra latina de Lúlio, que, como se vê, era um escritor muito fecundo, que produziu, só em latim, cerca de vinte e seis mil páginas.

Para esta edição, Stegmüller teve uma idéia genial: começar pelas obras tardias inéditas; pois as primeiras obras, os grandes livros - a Ars inveniendi veritatem, Liber de gentili, Liber contemplationis - já estavam publicados: a famosa edição moguntina, feita na Alemanha nos anos 1721-1742.

Enfim, teremos toda a obra de Lúlio impressa. Isto é muito importante porque o problema grave das pesquisas lulianas era: como se pode falar de um autor, sem conhecer suas obras (que estavam em manuscritos dispersos...)?

Em futuro próximo, publicaremos uma obra importantíssima: os três tomos da Arbor Scientiae, editado por - outro trabalhador incansável - Prof. Pere Villalba da Universidade Autônoma de Barcelona. Isto é importante, o Institut não só produz, mas procura colaboradores em outras instituições: pomos à disposição todo o material e coordenamos um pouco o trabalho. De tal modo, que muitas das obras publicadas não foram feitas por membros do Institut, mas por pesquisadores que trabalham conosco.

JL: Como se formou o corpus luliano do Institut?

FD: O plano de Stegmüller era, desde o princípio, muito bom: ele fez um repertório muito completo de todos os manuscritos de todas as obras lulianas que não estavam publicadas. E com esse repertório, foi procurando manuscritos por todas as bibliotecas européias que, em geral, naquela época (anos 50 e 60) não dispunham de serviços de reprodução fotográfica: ele ia com dois assistentes e uma maleta, fotografando manuscritos. E obtivemos uma coleção praticamente completa: com dois mil e seiscentos manuscritos lulianos. Lúlio é o único autor medieval que tem um instituto dedicado a ele e com todo o material manuscrito facilmente acessível e manuseável.

Há um fato interessante. Os autores medievais comentavam livros, sagrados ou consagrados; o intelectual medieval não escrevia livros como autor, mas como comentador da Bíblia, de livros de sentenças dos Padres - como o de Pedro Lombardo - ou de Aristóteles. A originalidade de Raimundo Lúlio está em que ele escreve um livro - e ele acha que tem que ser o melhor do mundo - para a conversão dos infiéis: o Livro de Ramón. Ele era considerado louco por muitos de seus contemporâneos, mas estava convencido de que a posteridade reconheceria seus méritos e quis que todos seus livros se conservassem em bom estado e fez três depósitos de suas obras: um em Gênova, na casa do burguês Perceval Spinola; outro, em Paris, na cartuxa de Vauvert; e uma terceira coleção - provavelmente financiada por seu genro - em Mallorca, no mosteiro cisterciense de La Real.

Destas três coleções, alguns manuscritos se perderam e outros foram se dispersando por toda a Europa. E ainda que não as possamos reconstruir com toda a exatidão, elas representam uma base sólida para a tradição posterior; eram de uma qualidade extraordinária e, assim, dispomos de uma rica base de manuscritos. E podemos saber quase sempre de que coleção procede.

JL: Além das obras em catalão e latim, há obras árabes de Lúlio?

FD: Não se dispõe hoje de nenhum original árabe. Mas a tradição árabe é importante porque há um pano de fundo árabe presente nas estruturas de alguns de seus livros. E há obras - como o Libre de Contemplació e a Disputatio Raymundi christiani et Homer saraceni - que dizem expressamente terem sido primeiramente escritas em árabe e depois traduzidas.

JL: Qual sua trajetória acadêmica até chegar ao Institut?

FD: Em 1963 fui para a Universidade de Tübingen estudar História e Teologia e, após concluir meus estudos, estive três anos trabalhando na Herder Verlag e, depois, o Prof. Riedlinger me convidou para ser assistente no Institut e estou lá até hoje...

JL: Que outras linhas o Institut pesquisa?

FD: O Instituto tem oficialmente um segundo título que é Instituto de Estudo das Fontes da Teologia Medieval. E uma seção importante (e muito completo...) da biblioteca é dedicada a essas fontes. Nossa biblioteca é muitíssimo procurada pela riqueza do acervo e também pela inovação organizacional: o consulente tem acesso direto às obras e não é necessário preencher papeladas para consultar um livro... É um instituto muito visitado por pesquisadores estrangeiros, precisamente por suas condições ideais de trabalho.

JL: Há um brasileiro que trabalhou com Stegmüller nos começos do Institut?

FD: Stegmüller começou com dois assistentes: Johannes Stöhr - hoje, professor na Universidade de Bamberg -, que se encarregou de estabelecer todo o repertório que está na base de nossas edições - e Alois Madre, que esteve no Institut até 1980, e exerceu as funções de diretor antes de Lohr. Stegmüller solicitou à ordem franciscana - a ordem se sente muito unida a Lúlio - que enviasse estudiosos para trabalhar no Institut e os franciscanos enviaram um guatemalteco, Abraham Soria Flores, e um brasileiro - que está atualmente no Paraná - Hermógenes Harada, que foram os editores de quatro tomos publicados.