Chuâncio na Perspectiva da Razão Vital
Sylvio Roque de Guimarães Horta
sylviogh@usp.br
"... as coisas se apresentam sob diversas formas. Elas se transformam
umas nas outras. O seu início e fim são como um círculo, onde
nenhuma das partes é mais princípio do que as outras..."
(cap. 27 de Chuâncio[1])
Chuâncio divide com LaoZi o papel de principal representante da corrente de pensamento taoísta, uma das duas correntes fundamentais do pensamento chinês, sendo a outra o confucionismo. Poderíamos afirmar, sem muito exagero, que a história do pensamento chinês consiste na busca do equilíbrio entre essas duas escolas, exceção feita ao pensamento budista - vindo da Índia - e, recentemente, ao pensamento ocidental.
Chuâncio pertence ao grupo de filósofos da era pré-Qin, ou seja, pertence à Era dos Estados Combatentes, que se caracterizou como tempo de grandes mudanças na estrutura da sociedade chinesa. Momento de crise, propício para o surgimento da filosofia. A incerteza no agir gera a busca da certeza. A intranqüilidade, a busca da tranqüilidade interior.
Procuraremos nos aproximar da filosofia de Chuâncio, da sua visão da realidade através de perspectivas que, certamente, são estranhas a ele. Perspectivas desenvolvidas no século XX, mais de 2000 anos posteriores à sua época. Desse modo, estaremos satisfeitos em dar uma primeira investida, usando o que Ortega chamou de "método de Jericó", que são rodeios em torno de determinado tema até que consigamos derrubar a muralha que nos separa.
A maioria dos conceitos que usamos para pensar a realidade: matéria, forma, potência, ato, energia, natureza, ser, essência, substância etc., procede do pensamento grego. Mais ainda, as próprias línguas que serviram e servem de base ao pensamento ocidental, condicionam-nos a ver a realidade como coisa. Quando queremos captar o movimento, nossos artigos o definem, o substantivam. Dizemos o movimento. Há uma barreira sempre que tentamos captar, conceituar as realidades que não são coisas.
Em nosso século, pela primeira vez, a filosofia chegou a ver esses limites com clareza. Temos, agora, os recursos conceituais necessários para se chegar a uma filosofia que se fundamente a partir da perspectiva pessoal e biográfica. Mesmo assim, Ortega y Gasset comenta sobre as dificuldades que temos ao falar sobre a própria realidade - a vida de cada um: somos forçados a afirmar uma série de contradições como "a vida não é coisa nenhuma, na verdade nem é" ou que "a substância da vida é perigo" ... E se quisermos que essas afirmações não pareçam mero jogo de palavras, faz-se necessário um enorme rodeio, até que possamos vivificar esses conceitos.
E digo isso, porque me parece que é dessa intuição básica - a de que a nossa vida é um acontecimento, um drama, de que há uma interdependência entre sujeito e objeto -, que parte o pensamento de Chuâncio.
Trata-se, na verdade, da forma original de se ver o mundo dos principais filósofos clássicos da China e que parece se identificar – pelo menos em parte - com a perspectiva da filosofia de Ortega y Gasset, a filosofia da razão vital.
O fato de que a língua chinesa comum e, especialmente, a sua forma escrita clássica - usada pelos filósofos - reflita essa visão da realidade, vem a corroborar essa suposição. No chinês não há artigos para se definir, para se substantivar as palavras. Os termos se definem mais por suas relações e há uma folga maior para os sentidos. Há mais sugestividade do que delimitação. No caso de Chuâncio - como no de LaoZi - isso é levado ao extremo: questiona-se a validade da própria palavra. Compare-se os mais de 50 volumes de um típico filósofo ocidental com o pequeno Dao De Jing de LaoZi que se inicia com a seguinte frase:
O curso (dao) que se pode discorrer (dao) não é o eterno curso (dao). Diferentemente da tradição ocidental que começa com a identificação do SER com o LOGOS, LaoZi começará negando que sua grande intuição seja apreensível pela palavra. Nem mesmo a escrita clássica elaborada em função dessa visão, seria capaz dessa façanha.
Paradoxalmente, Chuâncio - que é posterior a Confúcio, Mozi, Laozi e Mêncio - é um verdadeiro mestre da palavra. Conta fábulas, faz de outros filósofos personagens para expor sua doutrina (Confúcio, por exemplo, aparece muitas vezes em sua obra defendendo idéias que, sem dúvida, não lhe pertencem). Sua prosa - poética - está impregnada de humor. É dele a conhecida história de que teria sonhado ser uma borboleta e que ao voar se viu dormindo, ficando perplexo, sem saber se sonhava ser uma borboleta ou se era uma borboleta que sonhava ser Chuâncio.
Chuâncio joga com a linguagem. Usa-a como um instrumento para levar os outros - transportá-los - a uma nova perspectiva. Sabe que a felicidade e o conhecimento comuns estão ligados sempre a alguma coisa. Por isso, são relativos, dependem sempre de algo. Em uma de suas histórias típicas, fala-nos de um sábio que era tão elevado que sabia cavalgar o vento. Mas comenta que sua felicidade era relativa, já que dependia do vento para se realizar.
Assim, Chuâncio fala também de um saber que é um não-saber. De um saber que se opõe ao saber mundano das coisas. Ele busca essa forma de não-saber que é um saber absoluto. O mesmo que nos levará à felicidade absoluta.
Trata-se da perspectiva do Dao. Instalados no Dao, estaremos em harmonia com o Universo, seremos um com ele. Já que o Dao é justamente essa mudança eterna, esse acontecer que não é coisa nenhuma, mas do qual todas as coisas participam.
Como nos diz Chuâncio: o universo é um, ao falarmos dele já somos dois, ao perceber isso, três e assim ad infinitum. Isso nos leva a perguntar se será possível escaparmos do condicionamento que nossa linguagem nos impõe.
Talvez esse caminho que nos leve para além da linguagem possa ser trilhado através de uma lógica mais ampla, onde caibam as metáforas, o simbólico no sentido jungia-no, o mitológico. E mais, onde haja algo que se assemelhe à meditação oriental, aos rituais. Há muito o que se aprender nessa área que se confunde com o misticismo. Acredito que esta vaguidade, muitas vezes, pertence mais ao nosso pouco conhecimento sobre o assunto do que à própria realidade desses métodos. Teríamos que nos esforçar para descobrir como seria a vida do eremita Chuâncio tão oposta à de Confúcio. Há referências nos textos taoístas à respiração, à técnicas de meditação. Como ignorar isso e tentar reduzi-los a um debate sobre conceitos?
Apesar de seu isolamento, Chuâncio não deixou de ter um pensamento político. Desenvolveu a idéia de LaoZi sobre a não-ação (wuwei), que não significa passividade, mas que lembra mais o Deus aristotélico que move tudo sem se mover [2]. Propôs que o governante deveria interferir o mínimo possível, apenas escolhendo os melhores para cada posição. Criticou as regras artificiais e valorizou a liberdade do indivíduo e sua espontaneidade, juntando-se à corrente taoísta que opõe-se a toda espécie de totalitarismo político.
Acabada a primeira volta em torno da filosofia de Chuâncio, deixamos para uma segunda investida o importante aspecto da semelhança que há entre o pensamento taoísta e o budismo. Será da confluência de ambos que surgirá a escola Chan (Zen), que é, poderíamos dizer, como que a interpretação chinesa do budismo.
[1]. Proponho o uso de Chuâncio para ZhuangZi, já que KongFuZi foi vertido para Confúcio e MengZi para Mêncio.
[2]. Na verdade, precisaríamos recuperar o recurso que as línguas antigas possuíam: o da voz média. Teríamos, então, como expressar esse fazer que é também um se deixar fazer. Buscar a espontaneidade de se estar no Dao. Algo entre o passivo e o ativo, ou melhor, a síntese de ambos.