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Entrevista Antonio Linage Conde
Os Beneditinos e sua História

Entrevista em Madrid, 7-4-98. O Dr. Antonio Linage publicou uma alentada história geral dos beneditinos, cuja edição em português está quase concluída. Sobre essa pesquisa, o Prof. Linage discute com os Profs. Jean Lauand e Mario Sproviero. Tradução e edição: Jean Lauand.

 

JL: Inicialmente, pediria que fizesse uma breve auto-apresentação para os leitores brasileiros de nossa recém-criada revista Notandum.

AL: Sou professor na Universidad San Pablo de Madrid, onde leciono História do Direito. Minha formação é de medievalista e em Salamanca fui professor de História da Idade Média. Depois dediquei-me à história do monacato e, neste caso, sem fronteiras cronológicas. Poderia definir-me como historiador da Igreja. Mas como a Faculdade de Direito foi a primeira que começou (na verdade é Faculdade de Ciências Jurídicas e de Administração, mas eu continuo chamando-a de Faculdade de Direito...) na San Pablo, nosso primeiro reitor, Dr. Sergio Rábade me convidou para começar a trabalhar imediatamente, sem esperar que surgisse a Faculdade de Humanidades. E aceitei lecionar História do Direito que, além do mais, não é algo alheio a minhas outras atividades (além de professor universitário, sou notario). A Universidad San Pablo é uma universidade jovem, mas tem um corpo docente com muita experiência.

LJ: Poderia falar-nos um pouco de suas pesquisas sobre o monacato?

AL: Trata-se da história dos beneditinos, mas dos beneditinos em sentido amplo, isto é não só dos beneditinos em sentido estrito, mas também dos cistercienses e dos camaldulenses. Neste sentido, é a única história que cobre todos os diversos ramos beneditinos. Mas mesmo no que diz respeito aos beneditinos em sentido estrito, aos "beneditinos negros", deixando de lado o Císter, as histórias gerais são raríssimas. E isso por uma razão: os mosteiros beneditinos têm sido independentes, são tradicionalmentes independentes; agruparam-se depois em congregações, mas os vínculos não são fortes: as congregações também são independentes e, portanto, é muito raro que alguém se dedique à história geral beneditina; ao contrário do que ocorre, por exemplo, com os jesuítas ou com os dominicanos, que têm uma organização central e são como corpos unitários. Por isto, história dos beneditinos em sentido estrito - deixando de lado o Císter e a Camáldula - anterior à minha, houve somente a do Pe. Philibert Schmitz, publicada na Bélgica, no período que vai de 1935 (o primeiro volume) até pouco depois do fim da guerra, quando apareceu o último volume, sobre as monjas.

LJ: Como surgiu o projeto de sua pesquisa, agora transformada em livro?

AL: O livro intitula-se São Bento e os beneditinos. Um título que surgiu espontaneamente para mim, mas às vezes penso que não está totalmente de acordo com o conteúdo e talvez fosse melhor denominá-la simplesmente História dos Beneditinos. Naturalmente, em nenhum momento procurei um apelo comercial que, no caso, seria um esforço vão.

     Uma das características que temos na cultura espanhola - agora já vamos corrigindo isto - é a de que é muito raro que os espanhóis se ocupem do que ocorre fora da Espanha. E assim, quando me perguntavam sobre o que estava eu pesquisando e eu respondia "História dos beneditinos", em noventa por cento dos casos vinha a pergunta "Sobre os beneditinos espanhóis?" e eu respondia "Não, sobre os espanhóis e os estrangeiros". É esta característica espanhola de que falava: para cada mil hispanistas na Inglaterra ou na França, temos aqui cinco que se dediquem a estudar França ou Inglaterra.

     O livro é fruto de um encargo que recebi em Portugal da "Confraria de São Bento da Porta Aberta", uma confraria muito próspera que tem um santuário perto de Braga: um santuário dedicado a São Bento, mas que nunca foi beneditino, e foi dedicado a S. Bento por devoção. E como eles dispõem de recursos, conceberam o projeto de publicar uma história universal da ordem beneditina. No princípio, a idéia era de publicá-la em português e me lembro que Mons. Manuel Vaz Coutinho, o conselheiro da Confraria e a alma de todo este projeto, quando recebeu meu primeiro volume em castelhano, disse que seria difícil traduzir e que o publicariam só em castelhano. Depois resolveu publicá-lo também em português. Em castelhano saíram já os sete volumes e, em português, falta somente o último, o dos Índices.

LJ: Sua obra percorre, portanto, a história beneditina desde o começo até os dias de hoje?

AL: Sim, S. Bento nasce no ano 480 e meu livro chega até 1992 e recolhe até alguns dados de 1992, ano em que entreguei os originais. Neste momento estou escrevendo um Apêndice com a Bibliografia que apareceu ultimamente e também um Resumo sobre o monacato não beneditino e mesmo não cristão.

LJ: Que importância tiveram os beneditinos para a formação da Europa?

AL: S. Bento é justamente o padroeiro da Europa porque, além de toda a importância cultural, deve-se considerar também todo o trabalho agrícola e os séculos em que os beneditinos ocuparam lugar central na história coincidem com os séculos de formação do continente, da formação da Europa como tal. Os beneditinos, embora tivessem vocação de claustro, há quem diga que foram fundados para o coro - propter chorum fundati - foram grandes educadores não só porque criaram cultura, mas também por transmiti-la: até a Baixa Idade Média, as escolas claustrais tiveram uma importância essencial. E na Baixa Idade Média - e mesmo ainda hoje - há mosteiros beneditinos que têm colégios: como dizia antes, os beneditinos estão agrupados em congregações: há congregações que têm colégios e outras não.

LJ: Que relação vê entre o espírito beneditino e a educação? Que há no espírito beneditino que os torne uma ordem educadora?

AL: Bem, a Regra diz que toda a vida é uma escola a serviço do Senhor: sempre se deve estar aprendendo (e também ensinando...). Por outro lado, a história do monacato está feita de paradoxos. Um paradoxo é o de que a vocação do monge é uma vocação de retiro e, no entanto, os monges exerceram uma grande influência social. O monge, sim, tem uma vocação de retiro, mas, para ele, é essencial - sobretudo para o monacato beneditino - a hospitalidade: eu vejo a educação, o ensino beneditino, de certo modo como uma emanação dessa hospitalidade. Se há o dever de receber o forasteiro, se o monge deve receber os que não são monges, o normal é ensinar-lhes alguma coisa também. E assim, ainda que não tivesse havido aquele particular contexto histórico em que os monges eram os depositários da cultura (e não tinham mais remédio que ensiná-la aos outros), necessariamente teria havido algum ensino monástico.

LJ: Há alguma distinção entre os beneditinos da Europa e os da América? Há características peculiares da ordem na América?

AL: Neste caso, mais do que um problema de espaço, é um problema de tempo. É preciso pensar que na América - exceto o caso do Brasil, em que o monacato chega praticamente com o descobrimento - os monges chegam muito tardiamente: nos Estados Unidos chegam no século passado e na Hispano-América só neste século ou, mais precisamente, em 1899 (sim, houve antes duas casas de Monte Serrat no México e em Lima, mas praticamente só com a função de recolher esmolas e realizar funções litúrgicas). Nos Estados Unidos, chegaram monges alemães e suíços, com um espírito muito tradicional - pensou-se até em resgatar a formação da Europa medieval - e tiveram que mudar bastante: eram uns tempos em que não se sabia o que viria a ser a América. No Brasil, não houve muitas diferenças entre os beneditinos brasileiros e os portugueses. Claro, os monges americanos são muito diferentes dos monges europeus de outrora, mas não dos monges atuais, embora, sim, deva-se ter em conta o fato de que na Hispano-América, ao se criarem mosteiros novos, ainda que o espírito dos monges seja o mesmo do que os da velha Europa, por não ter esse peso de séculos (pense-se em Monte Serrat, por exemplo), peso até arquitetônico, os monges americanos são, por assim dizer, mais ágeis: ainda há pouco tempo, dizia-me um monge de Monte Serrat, que os monges hispano-americanos são a esperança da Ordem...

LJ: A seu ver, no mundo de hoje, o monge continua sendo atual?

AL: Eu penso que sim, embora muito minoritário. A meu ver, o que seria anômalo é que não houvesse monges: anômalo não é o monge, mas a carência de monges. E além do mais é preciso que se tenha em conta que a Europa não pode pretender continuar sendo o centro da história e é significativo o fato de que o lugar onde há mais monges seja no Terceiro Mundo e inclusive em regiões de maioria não-cristã: não estou me referindo à Hispano-América, mas à África ou ao Extremo Oriente...

     E é curioso: um beneditino de Monte Serrat - o Pe. Raguer, um historiador da Espanha contemporânea - estava elogiando muito os mosteiros da África Negra e eu lhe disse "- Mas parece que as vocações lá não são estáveis" e ele me respondeu com uma observação óbvia que me pareceu incrível não ter eu, por mim mesmo, reparado no fato: "- Bem, isso se poderia dizer há quarenta anos, porque aqui, hoje, as vocações são igualmente inestáveis!"...

MS: Voltando ao tema da educação, não parece haver no caso dos beneditinos - ao contrário dos jesuítas ou dos dominicanos - uma escola de pensamento: eles se limitavam a ensinar a doutrina geral ou também pesquisavam e criavam doutrina?

AL: Quanto à pesquisa, os beneditinos têm sido grandes pesquisadores, por exemplo, os beneditinos mauristas - da Congregação de S. Mauro - estão entre os principais pesquisadores de todos os tempos, inclusive com representantes neste nosso século. Agora, quanto ao ensino, estou de pleno acordo: não tiveram uma escola própria filosófica e teológica. Sim, houve tentativas, inclusive na Espanha - é preciso ter em conta que na Espanha, os beneditinos tiveram menos importância por causa da dominação muçulmana - tentou-se falar de uma "escola de teologia beneditina", mas na verdade seu mérito, foi o de não ter sua própria doutrina e ensinar...

LJ: ...Além de contribuições de uma educação de hábitos, por exemplo, a introdução de horários na vida, que não é pequena contribuição para a Educação Ocidental...

AL: Sem dúvida. O Pe. Leclerq - grande pesquisador de autores medievais, recentemente falecido, francês, mas do mosteiro de Luxemburgo -, considerava a sesta uma das grandes contribuições beneditinas; claro que referir-se à sesta é uma maneira de referir-se a todo o horário... A sesta e o champagne, porque o inventor do champagne foi um beneditino, D. Pérignon, e - ao contrário do que dizem alguns - não foi por casualidade, mas depois de muita pesquisa com seus vinhos.

MS: Quatro pontos que me parecem importantes: falando do monaquismo em geral, a questão da diferença entre o anacoretismo e o cenobitismo: por exemplo, na Índia, o budismo tende ao cenobitismo e o hinduísmo muito mais para o anacoretismo.

     Também a questão do trabalho: na Índia, se não se trabalha, pode-se viver de mendicância: o trabalho não tem o valor que tem, por exemplo, na China. O budismo, na China, fez do trabalho um valor: por exemplo, nos mosteiros zen quem não trabalha, não come. E depois a questão da cidade e do campo: originalmente radicados no campo, os beneditinos acompanham o renascimento urbano a partir do século XI. Uma quarta questão é a do sacerdócio no monaquismo, pois o monaquismo é, no início, um movimento leigo, isto é, de pessoas que não estão propriamente interessadas ou não se sentem chamadas ao sacerdócio e, depois, em muitos casos, o monge se faz sacerdote.

AL: S. Bento, em sua Regra, diz que o estado eremítico é o mais perfeito, mas, claro, está reservado a poucos. Eu me pergunto se o predomínio do cenobitismo no Ocidente não se deve ao extraordinário êxito que teve a Regra de S. Bento que acabou por monopolizar o monacato. Os cartuxos e os camaldulenses (estes seguem a regra de S. Bento; aqueles, não: mas isto é antes uma questão técnica) combinam vida eremítica e cenobítica e, isso, no Ocidente é um fato singular, raríssimo. Já no monacato do Extremo Oriente, este é um fato muito mais normal... Quanto ao trabalho, ele faz parte, sem dúvida, da própria vida beneditina: o Ora et Labora... Agora, a maneira de compreender este preceito mudou muitíssimo: o Císter, por exemplo, parte do princípio de que se deve trabalhar nos campos e, portanto, dá uma grande importância aos conversos, aos irmãos leigos na ordem. Há as mais diversas interpretações, mas uma constante é o equilíbrio: a vida beneditina caracteriza-se pelo equilíbrio, sempre se procura o equilíbrio. De resto, é preciso ter em conta o que dizíamos no início: há uma grande diversidade de mosteiros e de congregações e é muito difícil definir a essência beneditina. Quanto ao sacerdócio, sim, o monacato foi um movimento de leigos, mas se temos em conta o coro e a índole litúrgica que vai ganhando mais e mais espaço, eu penso que a clericalização acaba sendo un fenômeno natural e, de modo algum, uma contaminação.

     Finalmente, quanto à questão urbana, devemos lembrar que um dos referenciais - tanto material, quanto simbolicamente - do monacato é o deserto: o monacato é uma vida separada. E, assim, poderia parecer que o monacato tem que ser um monacato rural, um monacato campestre e não um monacato urbano. No entanto, há um monacato urbano muito antigo: na Espanha visigótica, por exemplo, havia monges nas cidades: de acordo, a vida monacal é uma vida separada, mas acaso não se pode ter uma vida separada nas cidades? Hoje em dia, parece-me que dentro dessa solidão do homem moderno, dessa incomunicabilidade com os outros e com os próprios vizinhos, talvez esteja mais solitário o homem moderno nas cidades do que nos campos. François Mauriac, já naqueles tempos, dizia que "Paris era uma solidão povoada enquanto a província era um deserto sem solidão". Não me parece estranho que haja um mosteiro trapense em Hong-Kong.

LJ: Certa vez manifestei a um amigo beneditino, o saudoso Dr. D. João Mehlmann, minha estranheza ante o fato de que seu mosteiro, o Mosteiro de São Bento em São Paulo, estivesse no ponto mais central e ruidoso de uma grande metrópole. Ele me respondeu: "Nós estamos aqui desde o século XVI; a cidade veio depois...".

AL: Claro, outra coisa muito diferente é o caso do mosteiro do campo que acaba englobado pela cidade: este é um fenômeno anormal do ponto de vista concreto desse mosteiro, mas não do monacato em geral.

LJ: Outra grande contribuição dos beneditinos para a educação talvez tenha sido o cultivo do silêncio, que tanta falta faz, hoje em dia, para a vida intelectual e para a vida do espírito...

AL: Precisamente. Há pensadores - alguns até agnósticos como Salvador de Madariaga - que afirmam que a grande necessidade do homem moderno é a contemplação. Por outro lado, curiosamente, há pensadores cristãos e mesmo monges que levados por uma atitude de "compromisso" com o mundo, procuram privar o monge precisamente daquilo que o mundo procura no monge: o silêncio, o retiro, a contemplação: mais um paradoxo! Claro, o silêncio e a contemplação são tanto mais necessários hoje, até como reação contra este ritmo vertiginoso da vida. E é paradoxal que haja monges, hoje, que se posicionem contra a contemplação, ou seja, contra a própria essência da vida monástica: essa tendência que antes era heterodoxa dentro do catolicismo - a posição de Harnack e de tantos protestantes que consideravam que o monacato era uma contaminação dentro do cristianismo - isto é afirmado agora dentro do catolicismo e dentro dos mosteiros: é paradoxal! E o mais curioso é que fora, totalmente fora do cristianismo, haja pessoas buscando precisamente essa contemplação monástica.

MS: Voltando ao tema da presença na cidade. Certamente, é muito diferente a posição, digamos, de um convento franciscano, nascido para a cidade da de um mosteiro beneditino.

AL: Claro, os mendicantes surgem já na Baixa Idade Média. Eu estou de acordo com o Pe. Batllori quando diz que a Baixa Idade Média já "está mais" para Idade Moderna: quando o mundo mudou, a Igreja teve também que mudar sua vida religiosa para adaptá-la ao mundo e é natural que as antigas ordens tivessem ficado como depositárias da tradição, mas não já no centro dos novos tempos: andar pelos caminhos, burguesia, moeda, mercados...

LJ: Suas considerações finais e uma palavra sobre o interesse que seu livro tem despertado no Brasil...

AL: Ao fazer esta história beneditina, eu buscava um pouco escrever a história de uma família, a saga de uma família. Ora, numa família encontra-se de tudo e, também nos beneditinos, encontra-se de tudo: daí o caráter tão amplo da obra...

     Nesse sentido, devo recordar uma historiadora beneditina polonesa, Margarita Borkowska, que até me repreendeu um pouco, quando lhe falei de "família beneditina" e me disse que a única coisa importante era a imitação de Cristo... Mas não deixa de ser uma família. E nessa família (em que há de tudo...), mesmo quando deixa de estar no centro da história e até mesmo nos lugares e países em que os beneditinos são insignificantes do ponto de vista material - como digamos nos Estados Unidos, onde numericamente são infinitesimais -, são, no entanto, como um microcosmos, como um espelho em que se reflete tudo...

     No Brasil, meu livro tem despertado muito interesse, por exemplo, no mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro. E estou desejando ir ao Brasil também - se me permitem contar-lhes algo que embora possa parecer frívolo não o é: parafraseando Lacordaire, que afirmava que morreria como católico penitente, mas como liberal impenitente, eu diria que morrerei como católico penitente, mas como barroco impenitente - para poder visitar as igrejas barrocas de Minas Gerais. O barroco é raríssimo aqui na Espanha...

     E eu sou medievalista, mas barroco impenitente.