JL: Inicialmente, pediria que fizesse uma breve auto-apresentação
para os leitores brasileiros de nossa recém-criada revista Notandum.
AL: Sou professor na Universidad San Pablo de Madrid,
onde leciono História do Direito. Minha formação é de medievalista e em Salamanca fui
professor de História da Idade Média. Depois dediquei-me à história do monacato e,
neste caso, sem fronteiras cronológicas. Poderia definir-me como historiador da Igreja.
Mas como a Faculdade de Direito foi a primeira que começou (na verdade é Faculdade de
Ciências Jurídicas e de Administração, mas eu continuo chamando-a de Faculdade de
Direito...) na San Pablo, nosso primeiro reitor, Dr. Sergio Rábade me convidou
para começar a trabalhar imediatamente, sem esperar que surgisse a Faculdade de
Humanidades. E aceitei lecionar História do Direito que, além do mais, não é algo
alheio a minhas outras atividades (além de professor universitário, sou notario).
A Universidad San Pablo é uma universidade jovem, mas tem um corpo docente com
muita experiência.
LJ: Poderia falar-nos um pouco de suas pesquisas sobre o
monacato?
AL: Trata-se da história dos beneditinos, mas dos beneditinos
em sentido amplo, isto é não só dos beneditinos em sentido estrito, mas também dos
cistercienses e dos camaldulenses. Neste sentido, é a única história que cobre todos os
diversos ramos beneditinos. Mas mesmo no que diz respeito aos beneditinos em sentido
estrito, aos "beneditinos negros", deixando de lado o Císter, as histórias
gerais são raríssimas. E isso por uma razão: os mosteiros beneditinos têm sido
independentes, são tradicionalmentes independentes; agruparam-se depois em
congregações, mas os vínculos não são fortes: as congregações também são
independentes e, portanto, é muito raro que alguém se dedique à história geral
beneditina; ao contrário do que ocorre, por exemplo, com os jesuítas ou com os
dominicanos, que têm uma organização central e são como corpos unitários. Por isto,
história dos beneditinos em sentido estrito - deixando de lado o Císter e a Camáldula -
anterior à minha, houve somente a do Pe. Philibert Schmitz, publicada na Bélgica, no
período que vai de 1935 (o primeiro volume) até pouco depois do fim da guerra, quando
apareceu o último volume, sobre as monjas.
LJ: Como surgiu o projeto de sua pesquisa, agora transformada em
livro?
AL: O livro intitula-se São Bento e os beneditinos. Um
título que surgiu espontaneamente para mim, mas às vezes penso que não está totalmente
de acordo com o conteúdo e talvez fosse melhor denominá-la simplesmente História dos
Beneditinos. Naturalmente, em nenhum momento procurei um apelo comercial que, no caso,
seria um esforço vão.
Uma das características que temos na cultura
espanhola - agora já vamos corrigindo isto - é a de que é muito raro que os espanhóis
se ocupem do que ocorre fora da Espanha. E assim, quando me perguntavam sobre o que estava
eu pesquisando e eu respondia "História dos beneditinos", em noventa por cento
dos casos vinha a pergunta "Sobre os beneditinos espanhóis?" e eu respondia
"Não, sobre os espanhóis e os estrangeiros". É esta característica espanhola
de que falava: para cada mil hispanistas na Inglaterra ou na França, temos aqui cinco que
se dediquem a estudar França ou Inglaterra.
O livro é fruto de um encargo que recebi em
Portugal da "Confraria de São Bento da Porta Aberta", uma confraria muito
próspera que tem um santuário perto de Braga: um santuário dedicado a São Bento, mas
que nunca foi beneditino, e foi dedicado a S. Bento por devoção. E como eles dispõem de
recursos, conceberam o projeto de publicar uma história universal da ordem beneditina. No
princípio, a idéia era de publicá-la em português e me lembro que Mons. Manuel Vaz
Coutinho, o conselheiro da Confraria e a alma de todo este projeto, quando recebeu meu
primeiro volume em castelhano, disse que seria difícil traduzir e que o publicariam só
em castelhano. Depois resolveu publicá-lo também em português. Em castelhano saíram
já os sete volumes e, em português, falta somente o último, o dos Índices.
LJ: Sua obra percorre, portanto, a história beneditina desde o
começo até os dias de hoje?
AL: Sim, S. Bento nasce no ano 480 e meu livro chega até 1992 e
recolhe até alguns dados de 1992, ano em que entreguei os originais. Neste momento estou
escrevendo um Apêndice com a Bibliografia que apareceu ultimamente e também um Resumo
sobre o monacato não beneditino e mesmo não cristão.
LJ: Que importância tiveram os beneditinos para a formação da
Europa?
AL: S. Bento é justamente o padroeiro da Europa porque, além
de toda a importância cultural, deve-se considerar também todo o trabalho agrícola e os
séculos em que os beneditinos ocuparam lugar central na história coincidem com os
séculos de formação do continente, da formação da Europa como tal. Os beneditinos,
embora tivessem vocação de claustro, há quem diga que foram fundados para o coro - propter
chorum fundati - foram grandes educadores não só porque criaram cultura, mas também
por transmiti-la: até a Baixa Idade Média, as escolas claustrais tiveram uma
importância essencial. E na Baixa Idade Média - e mesmo ainda hoje - há mosteiros
beneditinos que têm colégios: como dizia antes, os beneditinos estão agrupados em
congregações: há congregações que têm colégios e outras não.
LJ: Que relação vê entre o espírito beneditino e a
educação? Que há no espírito beneditino que os torne uma ordem educadora?
AL: Bem, a Regra diz que toda a vida é uma escola a
serviço do Senhor: sempre se deve estar aprendendo (e também ensinando...). Por outro
lado, a história do monacato está feita de paradoxos. Um paradoxo é o de que a
vocação do monge é uma vocação de retiro e, no entanto, os monges exerceram uma
grande influência social. O monge, sim, tem uma vocação de retiro, mas, para ele, é
essencial - sobretudo para o monacato beneditino - a hospitalidade: eu vejo a educação,
o ensino beneditino, de certo modo como uma emanação dessa hospitalidade. Se há o dever
de receber o forasteiro, se o monge deve receber os que não são monges, o normal é
ensinar-lhes alguma coisa também. E assim, ainda que não tivesse havido aquele
particular contexto histórico em que os monges eram os depositários da cultura (e não
tinham mais remédio que ensiná-la aos outros), necessariamente teria havido algum ensino
monástico.
LJ: Há alguma distinção entre os beneditinos da Europa e os
da América? Há características peculiares da ordem na América?
AL: Neste caso, mais do que um problema de espaço, é um
problema de tempo. É preciso pensar que na América - exceto o caso do Brasil, em que o
monacato chega praticamente com o descobrimento - os monges chegam muito tardiamente: nos
Estados Unidos chegam no século passado e na Hispano-América só neste século ou, mais
precisamente, em 1899 (sim, houve antes duas casas de Monte Serrat no México e em Lima,
mas praticamente só com a função de recolher esmolas e realizar funções litúrgicas).
Nos Estados Unidos, chegaram monges alemães e suíços, com um espírito muito
tradicional - pensou-se até em resgatar a formação da Europa medieval - e tiveram que
mudar bastante: eram uns tempos em que não se sabia o que viria a ser a América. No
Brasil, não houve muitas diferenças entre os beneditinos brasileiros e os portugueses.
Claro, os monges americanos são muito diferentes dos monges europeus de outrora, mas não
dos monges atuais, embora, sim, deva-se ter em conta o fato de que na Hispano-América, ao
se criarem mosteiros novos, ainda que o espírito dos monges seja o mesmo do que os da
velha Europa, por não ter esse peso de séculos (pense-se em Monte Serrat, por exemplo),
peso até arquitetônico, os monges americanos são, por assim dizer, mais ágeis: ainda
há pouco tempo, dizia-me um monge de Monte Serrat, que os monges hispano-americanos são
a esperança da Ordem...
LJ: A seu ver, no mundo de hoje, o monge continua sendo atual?
AL: Eu penso que sim, embora muito minoritário. A meu ver, o
que seria anômalo é que não houvesse monges: anômalo não é o monge, mas a carência
de monges. E além do mais é preciso que se tenha em conta que a Europa não pode
pretender continuar sendo o centro da história e é significativo o fato de que o lugar
onde há mais monges seja no Terceiro Mundo e inclusive em regiões de maioria
não-cristã: não estou me referindo à Hispano-América, mas à África ou ao Extremo
Oriente...
E é curioso: um beneditino de Monte Serrat -
o Pe. Raguer, um historiador da Espanha contemporânea - estava elogiando muito os
mosteiros da África Negra e eu lhe disse "- Mas parece que as vocações lá não
são estáveis" e ele me respondeu com uma observação óbvia que me pareceu
incrível não ter eu, por mim mesmo, reparado no fato: "- Bem, isso se poderia dizer
há quarenta anos, porque aqui, hoje, as vocações são igualmente inestáveis!"...
MS: Voltando ao tema da educação, não parece haver no caso
dos beneditinos - ao contrário dos jesuítas ou dos dominicanos - uma escola de
pensamento: eles se limitavam a ensinar a doutrina geral ou também pesquisavam e criavam
doutrina?
AL: Quanto à pesquisa, os beneditinos têm sido grandes
pesquisadores, por exemplo, os beneditinos mauristas - da Congregação de S. Mauro -
estão entre os principais pesquisadores de todos os tempos, inclusive com representantes
neste nosso século. Agora, quanto ao ensino, estou de pleno acordo: não tiveram uma
escola própria filosófica e teológica. Sim, houve tentativas, inclusive na Espanha - é
preciso ter em conta que na Espanha, os beneditinos tiveram menos importância por causa
da dominação muçulmana - tentou-se falar de uma "escola de teologia
beneditina", mas na verdade seu mérito, foi o de não ter sua própria doutrina e
ensinar...
LJ: ...Além de contribuições de uma educação de hábitos,
por exemplo, a introdução de horários na vida, que não é pequena contribuição para
a Educação Ocidental...
AL: Sem dúvida. O Pe. Leclerq - grande pesquisador de autores
medievais, recentemente falecido, francês, mas do mosteiro de Luxemburgo -, considerava a
sesta uma das grandes contribuições beneditinas; claro que referir-se à sesta é uma
maneira de referir-se a todo o horário... A sesta e o champagne, porque o inventor do
champagne foi um beneditino, D. Pérignon, e - ao contrário do que dizem alguns - não
foi por casualidade, mas depois de muita pesquisa com seus vinhos.
MS: Quatro pontos que me parecem importantes: falando do
monaquismo em geral, a questão da diferença entre o anacoretismo e o cenobitismo: por
exemplo, na Índia, o budismo tende ao cenobitismo e o hinduísmo muito mais para o
anacoretismo.
Também a questão do trabalho: na Índia, se
não se trabalha, pode-se viver de mendicância: o trabalho não tem o valor que tem, por
exemplo, na China. O budismo, na China, fez do trabalho um valor: por exemplo, nos
mosteiros zen quem não trabalha, não come. E depois a questão da cidade e do
campo: originalmente radicados no campo, os beneditinos acompanham o renascimento urbano a
partir do século XI. Uma quarta questão é a do sacerdócio no monaquismo, pois o
monaquismo é, no início, um movimento leigo, isto é, de pessoas que não estão
propriamente interessadas ou não se sentem chamadas ao sacerdócio e, depois, em muitos
casos, o monge se faz sacerdote.
AL: S. Bento, em sua Regra, diz que o estado eremítico
é o mais perfeito, mas, claro, está reservado a poucos. Eu me pergunto se o predomínio
do cenobitismo no Ocidente não se deve ao extraordinário êxito que teve a Regra
de S. Bento que acabou por monopolizar o monacato. Os cartuxos e os camaldulenses (estes
seguem a regra de S. Bento; aqueles, não: mas isto é antes uma questão técnica)
combinam vida eremítica e cenobítica e, isso, no Ocidente é um fato singular,
raríssimo. Já no monacato do Extremo Oriente, este é um fato muito mais normal...
Quanto ao trabalho, ele faz parte, sem dúvida, da própria vida beneditina: o Ora et
Labora... Agora, a maneira de compreender este preceito mudou muitíssimo: o Císter,
por exemplo, parte do princípio de que se deve trabalhar nos campos e, portanto, dá uma
grande importância aos conversos, aos irmãos leigos na ordem. Há as mais diversas
interpretações, mas uma constante é o equilíbrio: a vida beneditina caracteriza-se
pelo equilíbrio, sempre se procura o equilíbrio. De resto, é preciso ter em conta o que
dizíamos no início: há uma grande diversidade de mosteiros e de congregações e é
muito difícil definir a essência beneditina. Quanto ao sacerdócio, sim, o monacato foi
um movimento de leigos, mas se temos em conta o coro e a índole litúrgica que vai
ganhando mais e mais espaço, eu penso que a clericalização acaba sendo un fenômeno
natural e, de modo algum, uma contaminação.
Finalmente, quanto à questão urbana, devemos
lembrar que um dos referenciais - tanto material, quanto simbolicamente - do monacato é o
deserto: o monacato é uma vida separada. E, assim, poderia parecer que o monacato tem que
ser um monacato rural, um monacato campestre e não um monacato urbano. No entanto, há um
monacato urbano muito antigo: na Espanha visigótica, por exemplo, havia monges nas
cidades: de acordo, a vida monacal é uma vida separada, mas acaso não se pode ter uma
vida separada nas cidades? Hoje em dia, parece-me que dentro dessa solidão do homem
moderno, dessa incomunicabilidade com os outros e com os próprios vizinhos, talvez esteja
mais solitário o homem moderno nas cidades do que nos campos. François Mauriac, já
naqueles tempos, dizia que "Paris era uma solidão povoada enquanto a província era
um deserto sem solidão". Não me parece estranho que haja um mosteiro trapense em
Hong-Kong.
LJ: Certa vez manifestei a um amigo beneditino, o saudoso Dr. D.
João Mehlmann, minha estranheza ante o fato de que seu mosteiro, o Mosteiro de São Bento
em São Paulo, estivesse no ponto mais central e ruidoso de uma grande metrópole. Ele me
respondeu: "Nós estamos aqui desde o século XVI; a cidade veio depois...".
AL: Claro, outra coisa muito diferente é o caso do mosteiro do
campo que acaba englobado pela cidade: este é um fenômeno anormal do ponto de vista
concreto desse mosteiro, mas não do monacato em geral.
LJ: Outra grande contribuição dos beneditinos para a
educação talvez tenha sido o cultivo do silêncio, que tanta falta faz, hoje em dia,
para a vida intelectual e para a vida do espírito...
AL: Precisamente. Há pensadores - alguns até agnósticos como
Salvador de Madariaga - que afirmam que a grande necessidade do homem moderno é a
contemplação. Por outro lado, curiosamente, há pensadores cristãos e mesmo monges que
levados por uma atitude de "compromisso" com o mundo, procuram privar o monge
precisamente daquilo que o mundo procura no monge: o silêncio, o retiro, a
contemplação: mais um paradoxo! Claro, o silêncio e a contemplação são tanto mais
necessários hoje, até como reação contra este ritmo vertiginoso da vida. E é
paradoxal que haja monges, hoje, que se posicionem contra a contemplação, ou seja,
contra a própria essência da vida monástica: essa tendência que antes era heterodoxa
dentro do catolicismo - a posição de Harnack e de tantos protestantes que consideravam
que o monacato era uma contaminação dentro do cristianismo - isto é afirmado agora
dentro do catolicismo e dentro dos mosteiros: é paradoxal! E o mais curioso é que fora,
totalmente fora do cristianismo, haja pessoas buscando precisamente essa contemplação
monástica.
MS: Voltando ao tema da presença na cidade. Certamente, é
muito diferente a posição, digamos, de um convento franciscano, nascido para a cidade da
de um mosteiro beneditino.
AL: Claro, os mendicantes surgem já na Baixa Idade Média. Eu
estou de acordo com o Pe. Batllori quando diz que a Baixa Idade Média já "está
mais" para Idade Moderna: quando o mundo mudou, a Igreja teve também que mudar sua
vida religiosa para adaptá-la ao mundo e é natural que as antigas ordens tivessem ficado
como depositárias da tradição, mas não já no centro dos novos tempos: andar pelos
caminhos, burguesia, moeda, mercados...
LJ: Suas considerações finais e uma palavra sobre o interesse
que seu livro tem despertado no Brasil...
AL: Ao fazer esta história beneditina, eu buscava um pouco
escrever a história de uma família, a saga de uma família. Ora, numa família
encontra-se de tudo e, também nos beneditinos, encontra-se de tudo: daí o caráter tão
amplo da obra...
Nesse sentido, devo recordar uma historiadora
beneditina polonesa, Margarita Borkowska, que até me repreendeu um pouco, quando lhe
falei de "família beneditina" e me disse que a única coisa importante era a
imitação de Cristo... Mas não deixa de ser uma família. E nessa família (em que há
de tudo...), mesmo quando deixa de estar no centro da história e até mesmo nos lugares e
países em que os beneditinos são insignificantes do ponto de vista material - como
digamos nos Estados Unidos, onde numericamente são infinitesimais -, são, no entanto,
como um microcosmos, como um espelho em que se reflete tudo...
No Brasil, meu livro tem despertado muito
interesse, por exemplo, no mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro. E estou desejando ir ao
Brasil também - se me permitem contar-lhes algo que embora possa parecer frívolo não o
é: parafraseando Lacordaire, que afirmava que morreria como católico penitente, mas como
liberal impenitente, eu diria que morrerei como católico penitente, mas como barroco
impenitente - para poder visitar as igrejas barrocas de Minas Gerais. O barroco é
raríssimo aqui na Espanha...
E eu sou medievalista, mas barroco
impenitente.