No campo amplo e generoso da Sociologia da
Educação, a variedade de interesses e intervenções cresce paralela à velocidade e à
complexidade das mudanças culturais - entendidas em todas as suas expressões - nas
sociedades contemporâneas. Assim, pretendo discutir um tema que, a meu ver, melhor reúne
as reflexões de uma socióloga no trato com a "coisa pública", com a política
e suas inarredáveis relações com a educação e os sistemas de ensino: o tema da educação
para a democracia.
Porque escolhi esse tema ? Por vários
motivos, mas o principal deles diz respeito à realidade brasileira. Além da persistente
cultura política oligárquica, durante o regime militar (1964-1985) o Brasil viveu um
período de redução dos direitos de cidadania e de minimização da atividade política.
Isso correspondeu a uma concepção economicista/produtivista da sociedade, na qual a
única função meritória dos indivíduos é produzir, distribuir e consumir bens e
serviços. Com o movimento de democratização do país e com o reconhecimento universal
de que não há desenvolvimento exclusivamente no campo econômico, sem concomitante
desenvolvimento social e político, a questão da educação política se tornou de
fundamental importância. Hoje podemos afirmar que a cidadania é uma idéia em expansão;
no entanto, a ação política continua desvalorizada e o cidadão pode ser visto apenas
como o contribuinte, o consumidor, o reivindicador de benefícios individuais ou
corporativos, e não do bem comum. E sequer o princípio constitucional de escola
para todos consegue ser cumprido.
É sabido, também, que existe, no sistema de
ensino brasileiro, um "espaço" para a educação do cidadão - na maioria das
vezes como mero ornamento retórico ou, então, confundida com um vago civismo ou
"patriotismo", o qual, evidentemente, varia muito de acordo com as concepções
dos principais dirigentes educacionais.
Além disso, a "educação para a
cidadania", presente como objetivo precípuo em todos os programas oficiais das
secretarias de Educação, estaduais e municipais, independe do compromisso explícito dos
diversos governantes com a prática democrática. Mas não existe, ainda, a educação
para a democracia, entendida, a partir da óbvia universalização do acesso de todos
à escola, tanto para a formação de governados quanto de governantes. Ao contrário,
aqui ainda persiste, como no exemplo criticado por Alain no sistema francês, "um
ensino monárquico, ou seja, aquele que tem por objetivo separar os que serão sábios e
governarão, daqueles que permanecerão ignorantes e obedecerão". Aliás, o grande
educador brasileiro Anísio Teixeira também deve ser evocado em sua crítica à
"escola paternalista, destinada a educar os governados, os que iriam obedecer e
fazer, em oposição aos que iriam mandar e pensar, falhando logo, deste modo, ao conceito
democrático que a deveria orientar, de escola de formação do povo, isto é, do
soberano, numa democracia".
Além do exemplo brasileiro, é crucial a
advertência de Norberto Bobbio, para quem a apatia política dos cidadãos compromete o
futuro da democracia, inclusive no chamado primeiro mundo. Dentre as "promessas não
cumpridas" para a consolidação do ideal democrático, aponta ele o relativo
fracasso da educação para a cidadania como transformação do súdito em cidadão.
Bobbio recorre, ainda, às teses de Stuart Mill para reforçar a necessidade de uma
educação que forme cidadãos ativos, participantes, capazes de julgar e escolher -
indispensáveis numa democracia, mas não necessariamente preferidos por governantes que
confiam na tranqüilidade dos cidadãos passivos, sinônimo de súditos dóceis ou
indiferentes.
Para discutir o tema valho-me de obras
clássicas e de autores contemporâneos, tanto específicos da área de educação quanto
das áreas afins. É evidente que estou ciente das limitações desta conferência para
tema tão ambicioso - mas mantenho o olhar indagativo, algumas vezes perplexo, mas sempre
apaixonado pela riqueza do tema, pelo menos tão antigo e fascinante quanto o próprio
tema da democracia, desde o esplendor da polis grega.
Democracia é o regime político fundado na
soberania popular e no respeito integral aos direitos humanos. Esta breve definição tem
a vantagem de agregar democracia política e democracia social. Em outros termos, reúne
os pilares da "democracia dos antigos" - tão bem explicitada por Benjamin
Constant e Hannah Arendt, como a liberdade para a participação na vida pública - aos
valores do liberalismo e da democracia moderna, quais sejam, as liberdades civis, a
igualdade e a solidariedade, a alternância e a transparência nos poder (contra os arcana
imperi de que fala Bobbio), o respeito à diversidade e a tolerância. Educação é
aqui entendida, basicamente, como a formação do ser humano para desenvolver suas
potencialidades de conhecimento, julgamento e escolha para viver conscientemente em
sociedade, o que inclui também a noção de que o processo educacional, em si, contribui
tanto para conservar quanto para mudar valores, crenças, mentalidades, costumes e
práticas.
Ao criticar a democracia existente - "um
rascunho do que poderia ser" - John Dewey afirmava que uma sociedade democrática
não requeria apenas o governo da maioria, mas a possibilidade de desenvolver, em todos os
seus membros, a capacidade de pensar, participar na elaboração e aplicação das
políticas públicas e julgar os resultados. O filósofo americano estava falando, sem
dúvida, em educação para a democracia.
Na seqüência do prodigioso pensamento da
antigüidade clássica, seguindo a orientação aristotélica, cabe destacar a
originalidade da tese de Montesquieu sobre as "leis da educação", aquelas que
recebemos em primeiro lugar e são decisivas sob todos os aspectos. Montesquieu estabelece
uma relação indispensável entre o tipo de regime político e o sistema educacional. É
impossível, diz ele, uma república sem educação republicana, uma educação
igualitária num regime que não seja igualitário.
No Brasil, com a tradicional oposição entre
o "país legal" e o "país real", a aproximação entre a realidade
política e o regime democrático consagrado na Constituição vai depender,
essencialmente, do esforço educacional.
O que entendo por educação para a
democracia ?
A educação para a democracia comporta duas
dimensões: a formação para os valores republicanos e democráticos e a formação para
a tomada de decisões políticas em todos os níveis, pois numa sociedade verdadeiramente
democrática ninguém nasce governante ou governado, mas pode vir a ser, alternativamente
- e mais de uma vez no curso da vida - um ou outro.
Três elementos são indispensáveis e
interdependentes para a compreensão da EPD:
1. A formação intelectual e a
informação - da antigüidade clássica aos nossos dias trata-se do desenvolvimento
da capacidade de conhecer para melhor escolher. Para formar o cidadão é preciso começar
por informá-lo e introduzi-lo às diferentes áreas do conhecimento, inclusive através
da literatura e das artes em geral. A falta, ou insuficiência de informações reforça
as desigualdades, fomenta injustiças e pode levar a uma verdadeira segregação. No
Brasil, aqueles que não têm acesso ao ensino, à informação e às diversas expressões
da cultura lato sensu, são, justamente, os mais marginalizados e
"excluídos".
2. A educação moral, vinculada a uma
didática de valores que não se aprendem intelectualmente apenas, mas sobretudo pela
consciência ética, que é formada tanto de sentimentos quanto de razão; é a
conquista de corações e mentes.
3. A educação do comportamento, desde
a escola primária, no sentido de enraizar hábitos de tolerância diante do
diferente ou divergente, assim como o aprendizado da cooperação ativa e da
subordinação do interesse pessoal ou de grupo ao interesse geral, ao bem comum.
Sem participação dos interessados no estabelecimento de metas e em sua execução, como
já afirmava Dewey, não existe possibilidade alguma de bem comum. É preciso tempo para
sacudir a apatia e a inércia, para despertar o interesses positivo e a energia ativa
(Dewey). Ora, é evidente que essa é uma tarefa para a educação para a democracia.
À luz da interdependência desses três
elementos para a formação democrática, deve ser salientado, aqui, a grave carência que
tem representado, nos últimos tempos, o rebaixamento da educação literária
comparativamente ao ensino das ciências exatas ou biológicas. Nosso mestre Antonio
Candido salientou a esse respeito, com muita propriedade, o papel pedagógico da
literatura como um processo de humanização, isto é, "o que confirma no
homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a
aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções,
a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da
complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a
quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade, o semelhante".
A educação para a democracia difere,
também, da simples instrução cívica, que consiste no ensino da organização do Estado
e dos deveres do cidadão, bem como difere da formação política geral, que visa a
facilitar aos indivíduos a informação política, qualquer que seja o regime vigente. Em
decorrência, a EPD nunca se fará por imposição, como uma doutrina oficial, mas pela
persuasão, até mesmo porque um dos valores fundamentais da democracia é a liberdade
individual, que não pode ser sacrificada em nome de uma ideologia nacional.
A EPD consiste, portanto, em sua primeira
dimensão, na formação do cidadão para viver os grandes valores democráticos que
englobam as liberdades civis, os direitos sociais e os de solidariedade dita
"planetária".
A educação como formação e consolidação
de tais valores torna o ser humano ao mesmo tempo mais consciente de sua dignidade e da de
seus semelhantes - o que garante o valor da solidariedade - assim como mais apto para
exercer a sua soberania enquanto cidadão.
Em sua segunda dimensão, a EPD consiste na
cidadania ativa, ou seja, a formação para a participação na vida pública. Isso
significa participar como cidadão comum ou como governante. A educação não consiste
apenas no processo social que permite ao indivíduo, enquanto governado, ter conhecimento
de direitos e deveres e deles dar conta com escrúpulo e inteligência - mas sim capacitar
a todos para a posição de governante em potencial (Calvez). Essa educação tem uma
metodologia própria, cuja estrutura é dada pelas regras da argumentação, com
sua lógica própria, bem diversa da lógica da demonstração científica.
O pensamento clássico, como é sabido,
qualificava a educação como uma instituição política - isto é, como elemento da
organização do Estado. A principal tarefa dos governantes - no mundo greco-romano - era,
justamente, propiciar a educação de cidadãos ativos e participantes. Essa era
considerada a principal virtude - a aretê- de um regime político. A formação da
sociedade pressupunha um povo adulto na política, e não tutelado ou meramente
indiferente. Era este, certamente, o leitmotiv de Platão, no diálogo com os
sofistas e, certamente, o de Aristóteles, em Política e em Ética a Nicômaco.
A educação, segundo Aristóteles,
deveria inculcar o amor às leis - elaboradas com a participação dos cidadãos -, mas a
lei perderia sua função pedagógica se não se enraizasse na virtude e nos costumes:
"a lei torna-se simples convenção, uma espécie de fiança, que garante as
relações convencionais de justiça entre os homens, mas é impotente para tornar os
cidadãos justos e bons". Daí, a ligação estreita entre costumes democráticos e
regime democrático, assim como a importância da educação pública para a salvaguarda
da ética e do respeito às instituições. Aristóteles admite, dentro da categoria dos
cidadãos ativos, a possibilidade de o governado tornar-se governante, "pois os mais
nobres valores morais são os mesmos, para todos os indivíduos e para a coletividade.
Cabe à Educação inculcá-los". Ora, se isso é razoável e desejável, a
educação para a democracia é necessária também para formar govermantes.
Em Da Republica, Cicero defende a
educação específica para o governo, "para servir o Estado". Considerava, por
exemplo, estranho que os sábios, leigos na arte da navegação, se declarassem aptos a
comandar um navio em situação de turbulência, embora jamais o houvessem tentado em
mares tranqüilos. Justificavam o desprezo pelo estudo e o ensino das coisas do governo,
da res publica, porque acreditavam poder assumi-lo em caso de crise. Ora, argumenta
o cônsul romano, a simples possibilidade da responsabilidade pública exige a aquisição
"de todos os conhecimentos os quais ignoramos, se, algum dia, precisarmos deles nos
valer".
A EPD na dimensão de formação de
governantes significa, concretamente, a preparação para o julgamento político
necessário à tomada de decisões. Trata-se de enfrentar problemas - dos mais variados
tipos - e o critério para o julgamento será sempre o da justiça - decorrente dos
valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade.
Logo, a EPD é uma formação para a
discussão, para a argumentação, com o pressuposto da tolerância.
Nesta ordem de considerações, deve-se
entender por valores republicanos, basicamente:
a) o respeito às leis, acima da
vontade dos homens, e entendidas como "educadoras", no sentido já visto na
antigüidade clássica. "Todo verdadeiro republicano", ensinava Rousseau, "
bebia no leite de sua mãe o amor da pátria, isto é, das leis e da liberdade";
b) o respeito ao bem público, acima do
interesse privado e patriarcal. Em nosso país trata-se de romper a tradição doméstica,
tendente ao despotismo, que moldou nossos costumes (vale a pena lembrar que despotes,
em grego, é pai de família, e que a família antiga, como bem observou Benjamim
Constant, representava a negação de direitos e liberdades individuais);
c) o sentido de responsabilidade no
exercício do poder, inclusive o poder implícito na ação dos educadores, sejam eles
professores, orientadores ou demais profissionais do ensino. Em política, a
responsabilidade tem dois significados, melhor compreensíveis na língua inglesa: accountabillity
e responsibility. O primeiro termo significa o dever de prestar contas,
englobando todos os mandatários, isto é, os que exercem o poder em nome de outrem; o
segundo terno significa a sujeição de todos, governantes ou governados, ao rigor das
sanções legalmente previstas. Em ambos os casos, a responsabilidade é da essência do
regime democrático.
E por valores democráticos,
estreitamente ligados aos republicanos, entendem-se:
a) a virtude do amor à igualdade, de
que falava Montesquieu, e o conseqüente repúdio a qualquer forma de privilégio;
b) o respeito integral aos direitos humanos,
cuja essência consiste na vocação de todos - independentemente de diferenças de raça
e etnia, sexo, instrução, credo religioso, julgamento moral, opção política ou
posição social - a viver com dignidade, o que traz implícito o valor da solidariedade;
c) o acatamento da vontade da
maioria, legitimamente formada, porém com constante respeito pelos direitos das minorias,
o que pressupõe a aceitação da diversidade e a prática da tolerância.
A virtude da tolerância, aliada à arte da
argumentação, não significa levar ao extremo o temor do etnocentrismo e bloquear todo
julgamento ético em nome do relativismo cultural.
Pascal já ironizava a distinção entre
verdade e erro, conforme se estivesse de um ou de outro lado da linha dos Pirineus. Mas o
respeito à diferença não significa esterilidade de convicções. Ao relativismo
cultural, Karl Popper opõe o pluralismo crítico, no sentido de que a velha ética,
fundada no saber pessoal e seguro, decorrente da autoridade, deve ser substituída por uma
nova ética, fundada na idéia do saber objetivo e, necessariamente, inseguro.
Necessitamos de outras pessoas para o descobrimento e correção de nossos erros -
especialmente de pessoas que foram educadas em culturas diferentes - e isso conduz à
tolerância, o que não implica na aprovação incondicional de práticas que violentam
nossos próprios valores.
Em sua veemente defesa da democracia, Dewey
também se manifesta contra a "consagração" do relativismo cultural, pois a
sua plena aceitação, inclusive de práticas opressoras em outras culturas, significaria
admitir que os direitos fundamentais de igualdade, liberdade e dignidade devem variar
conforme as civilizações e as coordenadas geográficas.
O que não significa, evidentemente, propugnar
algum tipo de uniformidade cultural. A própria educação, segundo ele, deveria garantir
o direito à informação, permitir a hipótese de que, talvez, outros povos ou setores
sociais numa mesma sociedade, podem ser beneficiados por conhecerem formas alternativas de
vida, concepções diferentes das suas raízes. E ter, enfim, a liberdade de escolher.
Nesse sentido, a educação para a democracia é entendida como a educação para saber
discutir e escolher.
A didática dos valores supõe, como já
visto, a lógica da argumentação. Aqui é importante voltar ao tema de Antonio Candido,
quando insiste que "nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento
poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um
como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que
considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da
poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e
combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é
indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os
poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas
predominante".
Os direitos implícitos nos valores são
definíveis intelectualmente, mas o seu conhecimento não é suficiente para que eles
sejam respeitados, promovidos e protegidos. Os direitos são históricos: é preciso
entendê-los nas suas origens, mas também no seu significado atual e universal, assim
como é mister compreender as dificuldades políticas e culturais para sua plena
realização.
Vale lembrar como Montesquieu já situava os
direitos da humanidade acima de todos os outros. Numa luminosa reflexão, infelizmente
pouco divulgada, por pertencer aos seus escritos esparsos, ele afirma: " Se eu
soubesse de algo que me fosse útil e prejudicial à minha família, eu o rejeitaria de
meu espírito. Se soubesse de algo que fosse útil à minha família e não à minha
pátria, procuraria esquecê-lo. Se soubesse de algo que fosse útil à minha pátria e
prejudicial à Europa, ou então útil à Europa e prejudicial ao gênero humano, eu
consideraria isso um crime".
É conhecida a relação muitas vezes vista
como dilemática entre igualdade e liberdade. Ora, os direitos civis e políticos exigem
que todos gozem da mesma liberdade, mas são os direitos sociais que garantirão a
redução das desigualdades de origem, para que a falta de igualdade não acabe gerando,
justamente, a falta de liberdade.
Por sua vez, não é menos verdade que a
liberdade propicia as condições para a reivindicação de direitos sociais. Já em abril
de 1792, Condorcet alertava, no Relatório sobre a Instrução Pública apresentado à
Assembléia Legislativa: "os direitos humanos permanecerão formais se não se
firmarem na base da igualdade efetiva dos indivíduos em relação à Educação e
à Instrução".
É nesse sentido que se posicionam todos os
críticos das "mistificações igualitárias", presentes nas teses das
"oportunidades iguais" na escola, apesar do abismo das diferenças sociais.
Dewey, por exemplo, é bastante claro ao considerar completamente "absurda" a
idéia de que a liberdade poderia ser igual para todos, sem que se levem em conta as
diferenças prévias em matéria de educação, condições sócio-econômicas, controle
social caracterizado pela instituição da propriedade.
Ao discutir os valores democráticos é
importante, no entanto, estabelecer certos pontos e destacar o valor da solidariedade. A
liberdade e a igualdade estão, como se vê, estreitamente ligadas à tolerância. Mas
esta é uma virtude passiva, ou seja, é a aceitação da alteridade e das diferenças.
Enquanto que a solidariedade é, em si mesma, uma virtude ativa - por isso muito mais
difícil de ser cultivada -, pois exige uma ação positiva para o enfrentamento das
diferenças injustas entre os cidadãos.
A educação para esses três valores deve ser
diferenciada. Não basta educar para a tolerância e para a liberdade, sem o forte vinculo
estabelecido entre igualdade e solidariedade. Esta implicará no despertar dos sentimentos
de indignação e revolta contra a injustiça e, como proposta pedagógica, deverá
impulsionar a criatividade das iniciativas tendentes a suprimi-la, bem como levar ao
aprendizado da tomada de decisões em função de prioridades sociais.
Nos Propos de Alain está explícita
esta prioridade, quando o autor denuncia a preferência dos professores pelos
"aristocratas", quando deveriam alegrar-se muito mais por um camponês que
aprende um pouco do que por um elegante matemático que chega às Grandes Écoles. "
Todo esforço dos poderes públicos deveria ser empregado para a educação das massas, ao
invés de fazer brilhar algumas exceções, alguns reis nascidos do povo e que dão um ar
de justiça à desigualdade".
Onde deve ser desenvolvida a educação para a
democracia?
A escola é o locus privilegiado,
embora sofra, atualmente, a concorrência de outras instituições - como os meios de
comunicação de massa. A escola continua sendo a única instituição cuja função
oficial e exclusiva é a educação.
É evidente que existem outros espaços para a
educação do cidadão, dos partidos aos sindicatos, às associações profissionais, aos
movimentos sociais, aos institutos legais da democracia direta. Mas a escola não deve
substituir a militância, pois forma cidadãos ativos e livres, e não, como alertava
Fernando de Azevedo, homens de partido, de facções virtualmente intolerantes.
O principal paradoxo da democracia persiste:
ela não existe sem uma educação apropriada do povo para fazê-la funcionar, ou seja,
sem a formação de cidadãos democráticos. E a formação de cidadãos democráticos
supõe a preexistência destes como educadores do povo, tanto no Estado quanto na
sociedade civil (Mougniotte).
Quem educa os educadores? Bobbio responderia
que as duas coisas andam juntas, que a política é sempre, como queria Maquiavel, cosa
a fare, pois a formação de educadores se dará concomitantemente ao desenvolvimento
das práticas democráticas.
E a escola pode ser o grande instrumento para
a formação democrática, mas também o teste decisivo sobre o êxito e o desenvolvimento
- sempre dinâmico - da democracia como regime político (Mougniotte). O paradoxo continua
posto.
Concluindo, a EPD é um processo de longa
duração; exige continuidade e, como diria Weber, paciência, paixão e precisão - como
para "furar tábuas duras de madeira". Não é objetivo de um governo ou de um
partido.
Aliás, a Constituição Brasileira prevê um
Plano Nacional de Educação, a ser estabelecido por lei e, portanto, como um programa de
toda a comunidade nacional, e não de um determinado governo. É, pois, objetivo de um
extenso programa de transformação da sociedade. Assim foi e ainda é nos países que já
têm, minimamente consolidados, direitos, liberdades e práticas de cidadania ativa, pois
o processo democrático é dinâmico e supõe a possibilidade, sempre em aberto, de
criação de novos direitos e novos espaços para sua reivindicação e seu exercício.
Nas palavras de Rousseau, um clássico
educador político: "A pátria não subsiste sem liberdade, nem a liberdade sem a
virtude, nem a virtude sem os cidadãos (...) Ora, formar cidadãos não é questão de
dias, e para tê-los adultos é preciso educá-los desde crianças" (Sur
L´économie politique).