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Tomás de AquinoEstudo introdutório, seleção e tradução por Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br
Apresentamos aqui uma seleção de sentenças de Tomás de Aquino, sobre temas fundamentais para a moral e para a Antropologia filosófica.
Ordem
Ordem é uma palavra que, em Tomás, expressa relação e dinamismo de realidade. Curiosamente, porém, no uso comum, ordem passou a significar principalmente um estado imóvel, estático: "Ordem na corte!", impera o juiz, quando ao som do martelo impõe emudecimento e imobilidade; a "ordem" dos livros numa estante é um arranjo estático; dizer que Fulano é um homem muito "ordenado" é dizer que ele tem uma rotina de vida de pessoa pacata e metódica; sem falar na "ordem política e social" das agências de repressão.
Que ordem, classicamente, guarde relação com "estar certo", estar "de acordo com a dinâmica que deve ser", expressa-se, por exemplo, no nosso "tudo em ordem", como resposta à pergunta: "Como vai?". "Tudo em ordem" significa que a saúde, as finanças, a família etc. estão cumprindo bem seu papel na dinâmica existencial de minha vida.
Os antigos falam de ordem também como ordem moral, a dinâmica do agir humano de acordo com a realidade, de acordo com a natureza. E, portanto, o pecado aparece como um ato desordenado, ao qual falta ordem (actus inordinatus I-II,71,1); um ato não só contrário à ordenação de Deus, mas em que o próprio homem - em si mesmo, em seu interior - se desordena. Pois, como dissemos, ordo é algo dinâmico, "em direção a", ordo ad...: ordo ad finem, ordo ad invicem, ordo ad alterum (dirigido a um fim, dinâmica recíproca, dirigido a outrem).
O sentido de ordo que se aplica à moral é, pois, o de boa integração e estruturação dinâmica. Nesse sentido, o discurso ecológico contemporâneo, simplesmente está recuperando o conceito clássico de ordo, aplicado à natureza.
Um exemplo nos ajudará a compreender: pense-se num time de futebol (ou de vôlei) "engrenado", jogando "como uma orquestra". E, de repente, um gol contra (ou um saque desperdiçado!) e, em seguida, o time se desestrutura (perde sua ordo): começam a suceder-se passes errados; o zagueiro, que deveria estar dando cobertura, estava na ponta esquerda; o centro-avante, na lateral direita; todos vão des-ordenada-mente atrás da mesma bola: o time, como se costuma dizer, "não se encontra", está "perdido em campo", falta ordo. O técnico de um time seria chamado em latim de ordinator, aquele que, com suas ordens, dá ordo à equipe. Esse sentido de ordem é preservado em português pela palavra, tão em moda nos últimos anos, co-ordenador. Eufemismos à parte, a palavra pretende indicar que a ordem não é algo arbitrariamente imposto, mas relacionamento dinâmico exigido pela própria natureza das coisas. Ou seja, há ordem quando cada um harmoniza-se com a dinâmica do todo.
A ordem é, pois, uma relação: Ordo non est substantia, sed relatio (I, 116, 2 ad 3). Daí que, no âmbito moral, o pecado seja um ato a que falte esta relação: passa à margem ou agride a dinâmica existencial do homem em ordem a (in order to) sua realização e plenitude.
O homem e todas as coisas do mundo (cada qual a seu modo) ordenam-se, dirigem-se a Deus, seu fim último: Tomás vê no movimento de cada coisa criada (e na interação dos entes) um processo de "retorno" ao Criador. No vértice do mundo material, o homem - que se assemelha a Deus pelas suas duas potências espirituais: a inteligência e a vontade - é a cabeça deste processo [1] , levando consigo as outras realidades da Criação.
Razão e Natureza.
Na concepção de Tomás, como dizíamos, ordo indica uma dinâmica em direção à plenitude. A realidade, vista de outro ângulo [2] , configura outro conceito fundamental: ratio.
Ratio, razão, não deve aqui ser entendida como a razão do "racionalismo", nem sequer somente como a faculdade racional humana. Dentre os múltiplos significados da palavra latina ratio (que acompanha alguns dos diversos sentidos do vocábulo grego logos), interessam-nos principalmente dois: um que aponta para algo intrínseco à realidade das coisas; e, outro, para um peculiar relacionamento da razão humana com a realidade.
Ratio é derivado do verbo reor, contar, calcular [3] . Ratio originalmente é conta; rationem reddere é prestar contas. Mas ratio significa também: razão, faculdade de calcular e de raciocinar; juízo, causa, porquê; essência [4] ; lista; título, caráter [5] etc.
Em filosofia, aparece como tradução de logos que, como ensina Pierre Chantraine [6] , entre muitos outros significados: "acabou por designar a razão imanente", isto é: a estruturação interna de um ente, e este é o primeiro significado que nos interessa neste estudo sobre Tomás; o segundo é a capacidade intelectual humana de abrir-se à ratio das coisas e captá-la [7] .
No âmbito da fé, não é por acaso, portanto, que S. João emprega, em seu Evangelho, o vocábulo grego Logos (razão, palavra) para designar a segunda Pessoa da Ssma. Trindade que "se fez carne" em Jesus Cristo: o Logos não só é imagem do Pai, mas também princípio da Criação (cfr. Apo 3, 14), o responsável pela articulação intelectual das coisas. Pois a Criação deve ser entendida também como essa "estruturação por dentro": projeto, design das formas da realidade, feito por Deus através do Verbo, Logos. E em seu Comentário ao Evangelho de João, Tomás chega a discutir a questão da conveniência de traduzir Logos por Ratio em vez de Verbum. Esta última forma parece-lhe melhor, pois se ambas indicam pensamento, Verbum enfatiza a "materialização" do pensamento (em criação/palavra) [8] .
Assim, para Tomás, a criação é também "fala" de Deus: as coisas criadas são pensadas e "proferidas" por Deus [9] : daí decorre a possibilidade de conhecimento do ente pela inteligência humana [10] .
É nesse sentido que a Revelação Cristã fala da "Criação pelo Verbo"; e a Teologia - na feliz formulação do teólogo alemão Romano Guardini - afirma o "caráter de palavra" (Wortcharakter) de todas as coisas criadas.
Ou, em sentença de S. Tomás: "Assim como a palavra audível manifesta a palavra interior [11] , assim também a criatura manifesta a concepção divina (...); as criaturas são como palavras que manifestam o Verbo de Deus" (I d. 27, 2.2 ad 3).
Essa concepção de Criação como fala de Deus, a Criação como ato inteligente de Deus, foi muito bem expressa numa aguda sentença de Sartre, que intenta negá-la: "Não há natureza humana porque não há Deus para concebê-la". De um modo positivo, poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma: só se pode falar em essência, em natureza, em "verdade das coisas", na medida em que há um projeto divino incorporado a elas, ou melhor, constituindo-as [12] .
Próximo do conceito de razão está o de natureza. Se ratio acentua o caráter de pensamento, estruturação racional do ser; natureza indica o ser enquanto princípio de operações (falar, pensar, amar, germinar, digerir, latir, etc.).
Não por acaso natureza deriva de natus, do verbo nascer (nascor). Se agimos como homens é porque nascemos homens e não ratos. Natureza humana é, assim, o ser que o homem recebe de nascença.
A "natureza", especialmente no caso da natureza humana, não é entendida por Tomás como algo rígido, como uma camisa de força metafísica, mas como um projeto vivo, um impulso ontológico inicial (ou melhor, "principial"), um "lançamento no ser", cujas diretrizes fundamentais são dadas precisamente pelo ato criador que, no entanto, tem de ser completado pelo agir livre e responsável do homem.
Assim, todo o agir humano (o trabalho, a educação, o amor, etc.) constitui uma colaboração do homem com o agir divino, precisamente porque Deus - cuja ordem conta com as causas segundas - quis contar com essa cooperação.
Esse caminho moral é percorrido, exercendo a liberdade de praticar o bem e, assim realizando sua própria natureza. Mas, o bem remete à verdade: à ratio da realidade que a razão capta, propondo à vontade sua realização.
Sentenças de Tomás de Aquino
RAZÃO - NATUREZA
1. A razão reproduz a natureza.
Ratio imitatur naturam (I,60,5).
2. A causa e a raiz do bem humano é a razão.
Causa et radix humani boni est ratio (I-II,66,1).
3. "Natureza" procede de nascer.
Natura a nascendo est dictum et sumptum (III,2,1).
4. A palavra natureza se impôs primeiramente para significar a geração dos seres vivos, que se chama nascimento. E como tal geração provém de um princípio intrínseco, estendeu-se o uso da palavra para significar princípio intrínseco de qualquer mudança. Sendo tal princípio formal ou material, tanto a matéria quanto a forma são comumente chamadas natureza. Mas como é pela forma que se perfaz a essência de uma coisa qualquer, a essência, que é expressa na definição, é comumente chamada natureza.
Nomen naturae primo impositum est ad significandam generationem viventium, quae dicitur nativitas. Et quia huiusmodi generatio est a principio intrinseco, extensum est hoc nomen ad significandum principium intrinsecum cuiuscumque motus. Et quia huiusmodi principium est formale vel materiale, communiter tam materia quam forma dicitur natura. Et quia per formam completur essentia uniuscuiusque rei, communiter essentia uniuscuiusque rei, quam significat eius definitio, vocatur natura (I,29,2 ad 4).
5. A reta ordem das coisas coincide com a ordem da natureza; pois as coisas naturais se ordenam a seu fim sem qualquer desvio.
Rectus ordo rerum convenit cum ordine naturae; nam res naturales ordinantur in suum finem absque errore (CG 3,26).
6. O intelecto é naturalmente apto a entender tudo o que há na natureza das coisas.
Intellectus (...) natus est omnia quae sunt in rerum natura intelligere (CG 3,59).
7. Os princípios da razão são os mesmos que estruturam a natureza.
Principia (...) rationis sunt ea quae sunt secundum naturam (II-II,154,12).
8. Assim como a ordem da razão reta procede do homem, assim também a ordem da natureza procede do próprio Deus.
Sicut ordo rationis rectae est ab homine, ita ordo naturae est ab ipso Deo (II-II,154,12 ad 1).
9. O primeiro princípio de todas as ações humanas é a razão e quaisquer outros princípios que se encontrem para as ações humanas obedecem, de algum modo, à razão.
Omnium humanorum operum principium primum ratio est, et quaecumque alia principia humanorum operum inveniantur, quodammodo rationi obediunt (I-II,58,2).
10. O ser do homem propriamente consiste em ser de acordo com a razão. E, assim, manter-se alguém em seu ser, é manter-se naquilo que condiz com a razão.
Homo proprie est id quod est secundum rationem. Et ideo ex hoc dicitur aliquis in seipso se tenere, quod tenet se in eo, quod convenit rationi (II-II,155, ad 1).
11. Aquilo que é segundo a ordem da razão quadra naturalmente ao homem.
Hoc (...) quod est secundum rationem ordinem est naturaliter conveniens homini (II-II,145,3).
12. A razão é a natureza do homem. Daí que tudo o que é contra a razão é contra a natureza do homem.
Ratio hominis est natura, unde quidquid est contra rationem, est contra hominis naturam (Mal. 14,2 ad 8).
13. O que por natureza é dado imediatamente à razão é verdadeiríssimo, a tal ponto que nem sequer é possível pensar que seja falso.
Ea (...) quae naturaliter rationi sunt insita verissima esse constat, in tantum ut nec ea esse falsa sit possibile cogitare (CG 1,7).
14. Todos os atos da vontade têm como que sua primeira raiz naquilo que o homem naturalmente quer.
Omnes actus voluntatis reducuntur, sicut in primam radicem, in id, quod homo naturaliter vult (Car. I).
15. A vontade por sua natureza é boa, daí que também seu ato natural sempre é bom. E ao dizer ato natural da vontade refiro-me a que o homem por natureza quer a felicidade, ser, viver e a bem-aventurança. Quando, porém, se trata do bem moral, a vontade em si considerada não é boa nem má, mas mantém-se em potência para o bem ou para o mal.
Voluntas secundum suam naturam est bona, unde et actus eius naturalis semper est bonus; et dico actum naturalem voluntatis, prout homo vult felicitatem naturaliter, esse, vivere, et beatitudinem. Si autem loquamur de bono morali, sic voluntas secundum se considerata nec est bona nec mala: sed se habet in potentia ad bonum vel malum (Mal. 2,3 ad 2).
16. O primeiro ato da vontade não procede de ordem da razão, mas de instinto da natureza ou de uma causa superior.
Primus (...) voluntatis actus ex rationis ordinatione non est, sed ex instinctu naturae aut superioris causae (I-II,17,5 ad 3).
17. Assim como o conhecimento natural é sempre verdadeiro, assim também o amor natural é sempre reto, pois o amor natural não é senão a inclinação da natureza, inserida pelo autor da natureza. Portanto, afirmar que a inclinação natural não é reta é desacreditar o autor da natureza.
Sicut cognitio naturalis semper est vera; ita dilectio naturalis semper est recta: cum amor naturalis nihil aliud sit quam inclinatio naturae indita ab auctore naturae. Dicere ergo quod inclinatio naturae non sit recta, est derogare auctori naturae (I,60,1 ad 3).
18. A vontade não tem caráter de regra suprema, mas é uma regra que recebe sua retidão e orientação da razão e do intelecto não só em nós, mas também em Deus; se bem que, em nós, entender e querer as coisas são atos diferentes, e, por isso, não se identificam vontade e retidão da vontade. Em Deus, porém, é o mesmo e único ato entender e querer algo: daí que vontade e retidão da vontade se identifiquem.
Voluntas... non habet rationem primae regulae, sed est regula recta; dirigitur enim per rationem et intellectum, non solum in nobis sed et in Deo; quamvis in nobis sit aliud intellectus et voluntas secundum rem; et per hoc nec idem est voluntas et rectitudo voluntatis; in Deo autem est idem secundum rem intellectus et voluntas; et propter hoc est idem rectitudo voluntatis et ipsa voluntas (Ver. 23,6).
19. A regra para a vontade humana é dúplice: uma próxima e homogênea: a própria razão humana; a outra, que é a regra primeira, é a lei eterna, que é como que a razão de Deus.
Regula (...) voluntatis humanae est duplex: una propinqua et homogenea, scilicet ipsa humana ratio; alia vero est prima regula, scilicet lex aeterna, quae est quasi ratio Dei (I-II,71,6).
20. O bem do homem enquanto homem está em que a razão seja perfeita no conhecimento da verdade e em que os apetites inferiores se regulem pela regra da razão. Pois, se o homem é homem, é por ser racional.
Bonum hominis, inquantum est homo, est: ut ratio sit perfecta in cognitione veritatis et inferiores appetitus regulentur secundum regulam rationis. Nam homo habet, quod sit homo, per hoc, quod sit rationalis (Virt. comm., 9)
21. Deve-se considerar que a natureza de algo é principalissimamente a forma segundo a qual se constitui a espécie da coisa. Ora, o homem é constituído em sua espécie pela alma racional. Daí que aquilo que é contra a ordem da razão seja propriamente contra a natureza do homem enquanto tal.
Considerandum est quod natura uniuscuiusque rei potissime est forma, secundum quam res speciem sortitur. Homo autem in specie constituitur per animam rationalem. Et ideo id quod est contra ordinem rationis, proprie est contra naturam hominis, inquantum est homo (I-II,71,2).
22. A verdade do intelecto humano tem sua regra e medida na essência da coisa. Uma opinião é verdadeira ou falsa de acordo com o que a coisa é ou não é.
Veritas intellectus humani regulatur et mensuratur ab essentia rei; ex eo enim quod res est vel non est, opinio est vera vel falsa (Spe I ad 7).
23. O intelecto humano recebe sua medida das coisas, de tal modo que um conceito do homem não é verdadeiro por si mesmo, mas se diz verdadeiro pela consonância com a realidade. O intelecto divino, porém, é a medida das coisas, já que uma coisa tem tanto de verdade quanto reproduz em si o intelecto divino.
Intellectus humanus est mensuratus a rebus: ut scilicet conceptus hominis non sit verus propter seipsum; sed dicitur verus ex hoc quod consonat rebus. Intellectus vero divinus est mensura rerum: quia unaquaeque res intantum habet de veritate, inquantum imitatur intellectum divinum (I-II,93,1 ad 3).
24. (Qualquer criatura...) por ter uma certa forma e espécie representa o Verbo, porque a obra procede da concepção de quem a projetou.
(Quaelibet creatura ... secundum quod) habet quamdam formam et speciem, repraesentat Verbum: secundum quod forma artificiati est ex conceptione artificis (I,45,8).
ORDEM
25. O que é próprio do sábio é ordenar.
Sapientis est ordinare (CG I,1).
26. Fala-se de ordem sempre com relação a algum princípio.
Ordo semper dicitur per comparationem ad aliquod principium (I,42,3).
27. A ordem sempre implica anterioridade e posterioridade. Daí que, necessariamente, onde quer que haja um princípio, aí haverá também alguma ordem.
Ordo autem includit in se aliquem modum prioris et posterioris. Unde oportet quod ubicumque est aliquod principium, sit etiam aliquis ordo (II-II,26,1).
28. Tudo o que é imperfeito tende à perfeição.
Omne autem imperfectum tendit in perfectionem (I-II,16,4).
29. A ordem que se dá reciprocamente entre as partes do todo existe pela ordem global do todo para Deus.
Ordo, qui est partium universi ad invicem, est per ordinem qui est totius universi ad Deum (Pot. 7,9).
30. Deus age perfeitamente como causa primeira, mas requer o agir da natureza como causa segunda. Embora Deus pudesse produzir o efeito da natureza, mesmo sem a natureza, Ele quer agir mediante a natureza, para observar a ordem das coisas.
Deus perfecte operatur ut causa prima; requiritur tamen operatio naturae ut causae secundae. Posset tamen Deus effectum naturae etiam sine natura facere. Vult tamen facere mediante natura, ut servetur ordo in rebus (Pot. 3,7 ad 16).
31. A ordem se encontra primariamente nas próprias coisas e delas é que passa para nosso conhecimento.
Ordo autem principalius invenitur in ipsis rebus et ex eis derivatur ad cognitionem nostram (II-II,26,1 ad 2).
32. "O que procede de Deus é ordenado" (Rom 13, 1). E a ordem das coisas consiste em que algumas sejam por outras reconduzidas a Deus.
"Quae a Deo sunt, ordinata sunt" (Rom 13, 1). In hoc autem ordo rerum consistit, quod quaedam per alia in Deum reducuntur (I-II,111,1).
33. Daí que (...) haja criaturas espirituais, que retornam a Deus não só segundo a semelhança de sua natureza, mas também por suas operações. E isto, certamente, só pode se dar pelo ato do intelecto e da vontade, pois nem no próprio Deus há outra operação em relação a Si mesmo.
Oportuit (...) esse aliquas creaturas quae in Deum redirent non solum secundum naturae similitudinem, sed etiam per operationem. Quae quidem non potest esse nisi per actum intellectus et voluntatis: quia nec ipse Deus aliter erga seipsum operationem habet (CG 2,46).
34. A lei divina ordena os homens entre si, de tal modo que cada um guarde sua ordem, isto é, que os homens vivam em paz uns com os outros. Pois a paz entre os homens não é senão a concórdia na ordem, como diz Agostinho.
Lex (...) divina sic homines ad invicem ordinat, ut unusquisque suum ordinem teneat, quod est homines pacem habere ad invicem. Pax enim hominum nihil aliud est quam ordinata concordia, ut Augustinus dicit (CG 3,128).
35. Aproximamo-nos de Deus não por passos corporais, mas pela consideração da mente.
Ad Deum non acceditur passibus corporalibus (...) sed affectibus mentis (I,3,2 ad 5).
36. Pode-se considerar de dois modos a ordem entre as criaturas e Deus. Um é aquele segundo o qual as criaturas, sendo causadas por Deus, dependem dele enquanto princípio do seu ser. E, assim, pela infinitude de seu poder, Deus atinge cada coisa, causando-a e conservando-a, e é nesse sentido que se afirma que Deus está imediatamente em todas as realidades por essência, por presença e por potência. Há, porém, uma outra ordem: pela qual uma realidade tende para Deus como fim e aí, como diz Dionísio, há mediação entre as criaturas e Deus: porque as inferiores são conduzidas a Deus pelas superiores.
Duplex ordo considerari potest inter creaturarum et Deum. Unus quidem, secundum quod creaturae causantur a Deo et dependent ab ipso sicut a principio sui esse; et sic propter infinitatem suae virtutis Deus immediate attingit quamlibet rem, causando et conservando; et ad hoc pertinet, quod Deus immediate est in omnibus per essentiam, praesentiam et potentiam. Alius autem ordo est, secundum quod res reducuntur in Deum sicut in finem; et quantum ad hoc invenitur medium inter creaturam et Deum, quia inferiores creaturae reducuntur in Deum per superiores, ut dicit Dionysius (III,6,1 ad 1).
37. Para cada ente, bom é aquilo que é adequado à sua forma; mau, o que fica fora da ordem de sua forma.
Unicuique (...) rei est bonum, quod convenit ei secundum suam formam; et malum, quod est ei praeter ordinem suae formae (I-II,18,5).
MORAL
38. Somos senhores de nossas ações no sentido de que podemos escolher isto ou aquilo. Não há escolha, porém, no que diz respeito ao fim, mas somente sobre "o que se ordena ao fim" (como se diz na Ética de Aristóteles). Daí que o querer o último fim não seja uma daquelas coisas de que somos senhores.
Sumus domini nostrorum actuum secundum quod possumus hoc vel illud eligere. Electio autem non est de fine, sed "de his quae sunt ad finem", ut dicitur in III Ethicorum. Unde appetitus ultimi finis non est de his, quorum domini sumus (I,82,1 ad 3).
39. O moral pressupõe o natural.
Naturalia praesupponuntur moralibus (Corr. Frat. I ad 5).
40. A graça não suprime a natureza, aperfeiçoa-a.
(Cum enim) gratia non tollat naturam , sed perficiat (I,8,1 ad 2).
41. As paixões de per si não têm caráter de bem nem de mal. Pois o bem e o mal do homem se dão no âmbito da razão. Daí que as paixões em si consideradas são para o bem ou para o mal, conforme correspondam à razão ou a contradigam.
Passiones ex seipsis non habent rationem boni vel mali. Bonum enim vel malum hominis est secundum rationem. Unde passiones secundum se consideratae se habent et ad bonum et ad malum, secundum quod possunt convenire rationi vel non convenire (I-II,59,1).
42. O natural tanto precede as virtudes conferidas pela graça, como as adquiridas.
Naturalia sunt praeambula virtutibus gratuitis et acquisitis (Ver. 16,2 ad 5).
43. A consciência é chamada de lei do nosso intelecto porque é o juízo da razão deduzido da lei natural.
Conscientia dicitur esse intellectus nostri lex, quia est iudicium rationis ex lege naturali deductum (Ver. 17,1 ad 1).
44. Quando a razão, mesmo errando, propõe algo como preceito de Deus, então desprezar o ditame da razão é o mesmo que desprezar o preceito de Deus.
Quando ratio errans proponit aliquid ut praeceptum Dei, tunc idem est contemnere dictamen rationis et Dei praeceptum (I-II,19,5 ad 2)
VIRTUDE E PECADO
45. Pela virtude o homem se dirige ao máximo daquilo que pode ser.
Per virtutem ordinatur homo ad ultimum potentiae (Virt. comm. 11 ad 15).
46. É da essência da virtude que ela vise ao máximo.
Ad rationem virtutis pertinet, ut respiciat ultimum (II-II,123,4).
47. As virtudes nos aperfeiçoam, capacitando-nos para seguir de modo devido as inclinações naturais.
Virtutes perficiunt nos ad prosequendum debito modo inclinationes naturales (II-II,108,2).
48. O desordenado amor de si é a causa de qualquer pecado.
Inordinatus amor sui est causa omnis peccati (I-II,77,4).
49. O pecado contraria a inclinação natural.
Peccatum est contra naturalem inclinationem (I,63,9).
50. Tudo que vá contra a razão é pecado.
Omne quod est contra rationem (...) vitiosum est (II-II,168,4).
51. O pecado é uma desordem que rejeita a ordem do fim último.
Peccatum est inordinatio quae excludit ordinem finis ultimi (Mal. 15,2).
52. O bom, o verdadeiro e o ente coincidem na coisa, mas diferem pelo título.
Bonum et verum et ens sunt idem secundum rem, sed differunt ratione (I-II,29,5).
53. O verdadeiro e o bem estão incluídos um no outro. Pois o verdadeiro é um certo bem, senão não seria apetecível; e o bem, um certo verdadeiro, senão não seria inteligível.
Verum et bonum se invicem includunt. Nam verum est quoddam bonum alioquin non esset appetibile; et bonum est quoddam verum, alioquin non esset intelligibile (I,79,11 ad 2).
54. Na realidade objetiva das coisas, o bem e a verdade são permutáveis. Daí que o bem seja entendido pelo intelecto a título de verdade; e o verdadeiro, apetecido pela vontade a título de bem.
Quia bonum et verum convertuntur secundum rem: inde est quod et bonum ab intellectu intelligitur sub ratione veri, et verum a voluntate appetitur sub ratione boni (I,59,2, ad 3).
55. Qualquer criatura participa da bondade, tanto quanto participa do ser.
Unaquaeque creatura quantumcumque participat de esse, tantum participat de bonitate (Ver. 20,4).
[1] Naturalmente, o homem, dotado de liberdade, pode recusar empreender esse retorno, optando pelo desordenado amor de si mesmo.
[2] Se ordo refere-se à realidade enquanto seu dinamismo relacional; ratio aponta para a racionalidade que estrutura desde dentro essa mesma realidade.
[3] Por extensão, reor no latim comum passou também a ser sinônimo de puto, aestimo (considerar, reputar): daí que vocábulos como "reputação" e "estimar" estejam próximas de palavras da linguagem do cálculo como "computar" e "estimativa". Daí também ratus, contado, de que se originou não só "rateio", mas também "ratificar".
[4] Encontramos em Tomás, usos como: "De ratione intelligendi est...", "é da essência da intelecção...".
[5] Neste último sentido, diz Tomás, por exemplo: "habet rationem verbi", tem caráter verbal, apresenta-se como palavra.
[6] Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque, Paris: Klincsieck. Logos significa ainda: palavra, discurso, argumentação, raciocínio, conta, proporção (ana-logos), quociente, o Verbo, segunda Pessoa da Trindade etc. Para a etimologia de ratio ver Érnout & Meillet Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine, Paris, Klincsieck, 1951, 3ème ed.
[7] É o que Tomás chama também de recta ratio, em oposição a uma perversa ratio que se fecha à ratio das coisas ou as deforma.
[8] Sua resposta é: "Ratio propriamente designa o conceito da mente, enfatizando o que está na mente (mesmo que de nenhum modo venha a se exteriorizar); já verbum, diz respeito ao exterior. E por isso - como o Evangelista ao dizer Logos não só se dirigia à significação da existência do Filho no Pai, mas também à potência operativa do Filho pela qual `por Ele todas as coisas foram criadas' - os antigos preferiram traduzir Logos por Verbum (que acentua a referência ao exterior) e não por ratio, que só sugere o conceito na mente" (Super Io. I,1,32).
[9] Para entendermos melhor esta concepção de Tomás, recordemos que, sendo criada pelo Verbo, a realidade, cada coisa real, tem uma ratio, uma natureza, um conteúdo, um significado, "um quê", uma verdade que, por um lado, faz com que a coisa seja aquilo que é e, por outro, a torna cognoscível para a inteligência humana. Um conhecimento que será tanto mais adequado quanto maior for a objetividade com que se abrir à realidade contida no objeto. Numa comparação imprecisa - imprecisa, pois num caso trata-se de realidade natural, viva e dinâmica, projetada pela Inteligência divina e, no outro, de um objeto artificial projetado pelo homem - com o ato criador divino, considero o isqueiro que tenho diante de mim. Este objeto é produto de uma inteligência, há uma racionalidade que o estrutura por dentro. Inteligentemente o designer articulou a pedra, a mola, o gás etc. É precisamente essa ratio que, por um lado, estrutura por dentro qualquer ente que, por outro, permite, como dizíamos, o acesso intelectual humano a esse ente. No caso do isqueiro, a ratio que o constitui enquanto isqueiro é o que me permite conhecê-lo e, uma vez conhecido, consertá-lo, trocar uma peça etc.
[10] Não por acaso Tomás considera que "inteligência" tem que ver com intus-legere ("ler dentro"): a ratio do conceito na mente é a ratio "lida" no íntimo da realidade.
( [12] ) Entende-se assim a conexão de ratio com a Moral. Retornando à metáfora do objeto artificial: precisamente porque o isqueiro traz em si um logos, uma ratio que o estrutura desde dentro, há normas e prescrições: "Não o usarás embaixo d'água!"; "Não pressionarás a mola do gás, sem ao mesmo tempo acionar a faísca!", "Não o aproximarás do fogo e mantê-lo-ás afastado de temperaturas altas!". Longe de serem convenções sociais (e menos ainda implicâncias moralistas!) essas normas são pura e simplesmente enunciados a respeito do ser do isqueiro; da sua natureza decorrentes.