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Paulo Ferreira da Cunha
Prof. Catedrático da Fac. Direito da Univ. do Porto
«Quelles doivent être les relations entre la philosophie et le droit? Et par
malheur je me trouve chargé de défendre à moi seul les deux causes
antagonistes» Michel Villey - Critique de la pensée juridique moderne,
Paris, Dalloz, 1976, p. 220
I. Introdução
1. Tese - A Filosofia, “mestra da vida”, não como a História “a partir de exemplos” (Dionísio de Halicarnasso), mas de teorização, é essencial para a formação dos Juristas e para o Direito. Também este pode contribuir para a formação filosófica, porque é, segundo os próprios Romanos, seus criadores, uma verdadeira filosofia prática. Num tempo de crescendo da racionalidade economicista no plano educativo, a defesa da Filosofia pode passar pelo seu interesse prático, como preparação para o Direito, e a defesa do Direito tem de passar pelo advogar de um Direito pensado e não continuar a claudicar perante o seu apoucamento a uma mera técnica ao serviço de qualquer poder. O Estado deveria abandonar a sua posição de pseudo-neutralidade na Educação. Sem ideologia, sem doutrinação, sem totalitarismo – obviamente. Mas com uma política de defesa dos valores comuns. É um absurdo promover-se uma educação para os Direitos Humanos e continuar a proclamá-la, não integrando tais políticas numa geral Educação para a Justiça. E numa generalíssima Educação com Valores.
2. Perspectiva - A ligação entre Direito, Filosofia e Educação pode não ser imediatamente óbvia. Há todavia uma célebre passagem do jurista romano Ulpianus que poderia servir de exergo a essa relação. Para ele, o Direito Natural (na verdade, uma parte do Direito tout court, mas hoje sobretudo relegada para a sua dimensão apenas filosófica, pelo positivismo jurídico ainda imperante, de mãos dadas com o politicamente correcto) é matéria que se aquilata em realidades muito palpáveis, e até comuns a homens e animais: coniunctio, procreatio e – the last but not the least – educatio. A Educação é, assim, um dos elementos essenciais, e de todos o mais especificamente humano, estamos em crer, do velho direito natural romanístico, o qual é hoje o mais clássico dos temas da Filosofia do Direito. No presente artigo, baseado nos tópicos de uma conferência que proferimos na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo**, procuraremos glosar o mote, principalmente relacionando Filosofia e Direito, considerando o Direito como educação para a Filosofia, e a Filosofia como educação para o Direito. E finalmente advogando a necessidade de uma Educação para a Justiça, em que, obviamente, estarão de mãos dadas a Filosofia e o Direito.
II. Filosofia e Direito. Filosofia do Direito
A voz corrente considera que a Filosofia é vão discutir e especular. A mais comum definição desse tópico será mais ou menos esta: “Filosofia: um homem, vestido de negro, num quarto escuro, de luzes apagadas, à procura de um gato preto... que não está lá”. Outra versão desta vox populi, sempre jocosa, garante que a Filosofia é a coisa “com a qual ou sem a qual se fica tal e qual”.
Evidentemente que se trata de perspectivas de total incompreensão da Filosofia. Propiciadas quer pela falta de educação, quer pela educação ao contrário inculcada hoje por muitos meios de comunicação de massas, que privilegiam o fácil, o acrítico, o acéfalo, o primário, o pulsional. Estas expressões da incompreensão do profanum vulgus são anteriores à ascensão do quarto poder mediático, mas hoje elas nem sequer são formuladas. Muitas pessoas limitam-se a um esgar de distanciamento total.
“- Filosofia? - pergunta ou interpela alguém.
- Ughrrr... – vocifera outrem.
Nada mais. A discursividade, mesmo crítica, está a perder-se. Todavia, a verdade é que uma coisa é o rigor e a complexidade própria da linguagem filosófica, outra é o estilo cryptico que, não tendo fundamento especulativo, procura apenas afectar sabedoria. Já os Romanos tinham reconhecido essa pseudo-filosofia que consiste em amontoar palavras mais ou menos estranhas, em frases mais ou menos herméticas, e assim complicar pelo complicar.
A própria literatura teve a sua voga cryptica entre nós, sobretudo nos anos setenta do século XX, até que se entendeu que apenas uma literatura legível passava uma mensagem e... tinha público [1] . O que prova que a tentação do obscuro é permanente entre os intelectuais...
Não será talvez uma mera reacção corporativa, nem fruto de verdadeira incompreensão face ao mundo da Filosofia o que se assinala, muito curiosamente, no Digesto: os juristas seriam, segundo esta monumental compilação doutrinal do tempo do Imperador Justiniano, os verdadeiros filósofos, não os que simuladamente afectam sê-lo, por simulacros verbais.
A concepção do Direito como verdadeira filosofia, filosofia prática, tem muitas consequências para aquilatarmos da verdadeira matriz da juridicidade. Não uma técnica subordinada, nem sequer uma ciência, mas uma filosofia que é uma arte, uma forma de arte...uma das belas artes até [2] .
O Direito coloca problemas profundos do âmbito filosófico. Não se pode avançar um passo no conhecimento do verdadeiro Direito sem esbarrar com a necessidade de uma concepção de Homem e de natureza humana, de bem e de mal, de responsabilidade e de culpa, de liberdade, etc., etc. E como o Direito não se limita a reflectir sobre esses problemas - na verdade, reflecte sobre eles ou na Filosofia do Direito e outras disciplinas jurídicas humanísticas [3] e ainda nos momentos de política jurídica, e afins - , antes tem de decidir, encontrando formas normativas, comandos, de acordo com as ideias gerais que acolhe, bem se pode dizer que é uma filosofia prática.
A linguagem do Direito tem, tal como a filosófica, o dever de ser muito rigorosa, e tal como a Filosofia necessita de conceitos claros e uma malha teórica, uma gramática, muito coerente. Mas o Direito não pode ficar por aí: tem de decidir o que deve ser lei, tem de afirmar o que considere a melhor doutrina, tem de decidir os litígios com sentenças... O Direito não pode prescindir da Filosofia, mas não fica pela teoria, concretiza-se na acção. É da sua própria natureza essa normatividade.
A guarda avançada da Filosofia no Direito é a Filosofia do Direito. Mas há momentos cruciais de aplicação de filosofias à realidade quando se aprova uma lei, se elabora uma doutrina, se decide numa sentença. Determinar uma pena, por exemplo, a pena de morte, tem necessariamente como pressuposto uma certa concepção filosófica sobre o Homem, a vida e a morte, o papel do Estado, da pena, etc. Decidir a legalização do aborto, idênticas questões coloca, porque do mesmo modo põe em causa o Direito à Vida, e assim uma ideia de Humanidade. Gizar uma teoria doutrinal sobre a culpa implica um posicionamento sobre a liberdade humana, o livre arbítrio, enfim, tudo matérias que implicam concepções antropológicas, e até ontológicas e mesmo metafísicas de enorme importância.
É certo que muitos dos legisladores, dos jurisconsultos e professores e dos juízes não pensarão explicitamente nas doutrinas filosóficas que os seus actos implicam. E mesmo sabemos que o positivismo é a filosofia espontânea dos juristas [4] , o que quer dizer, em parte, que naturalmente não filosofam. Mas a Filosofia, ainda que implícita, ainda que difusa, não deixa de comandar as suas acções. Mesmo uma filosofia anti-filosófica como pode ser a filosofia do obedecer e do aplicar, o positivismo legalista.
A qualidade e a credibilidade dos actores jurídicos seria bem diferente se não houvesse um certo desprezo tecnicista, tecnocrático, e fruto da ignorância, pela Filosofia do Direito, desde a Universidade. Ignorando-se que os estudantes irão sobretudo valer pela sua inteligência, criatividade, agilidade mental, capacidade de argumentação, e pelo conhecimento daquelas coisas básicas e estruturais que não mudam, e não pelo decorar de códigos que uma penada do legislador volve em caixotes do lixo [5] .
De entre essa utensilagem de longo alcance está a Filosofia do Direito, cujo papel formativo e cultural é, sobretudo em cursos muito tecnicistas, que ensinam muitos pormenores mutáveis, absolutamente imprescindível e essencial.
Mas não se trata apenas do seu carácter formativo, cultural, humanístico: também o seu carácter prático e de preparação para coisas práticas - não há prática revolucionária sem teoria revolucionária, dizia o próprio Lenine. Não há melhor prática que uma boa teoria? Não, mas uma boa prática tem a inspirá-la uma boa teoria.
O êxito prático dos Filósofos do Direito é notável. Em Espanha está provado de há muito que grandes filósofos do Direito, longe de terem obstáculos ou bloqueios teoricistas que os afastassem das pessoas e dos problemas da vida real são nomeados e desempenham com equilíbrio e com brilho funções importantes [6] : e na verdade vemo-los, e não só em Espanha, em relevantes posições políticas e académicas, são reitores, vice-reitores, banqueiros, diplomatas, parlamentares, ministros... A Filosofia do Direito (e o Direito em geral, quando bem pensado e bem praticado) ensina a agir como homem de pensamento e a pensar como homem de acção, numa ligação fecunda entre as várias dimensões dos problemas que supera a própria dicotomia entre teoria e prática. Oposição na realidade um tanto caduca já.
Os grandes temas da Filosofia do Direito provam que as grandes questões filosóficas relacionadas com o Homem e com a Sociedade lhe não escapam. Vejamos apenas um punhado de exemplos.
A questão prévia sobre o que é o Direito implica, realmente, para ser vista profundamente, uma teodiceia, uma metafísica, uma ontologia, uma gnoseologia e uma fenomenologia, pelo menos. A pergunta se há algo de jurídico mais profundamente vinculante que o direito positivo coloca problemas de ontologia e de deontologia. Antígona [7] , símbolo do direito justo, do direito natural para alguns, de conflito entre tradição e lei [8] , coloca o drama profundamente filosófico das relações entre o poder e o direito, o poder e a família, o direito positivo e as leis mais altas... A problemática das relações do Direito com outras racionalidades e outras ordens sociais e normativas, como a religião, a moral, a ideologia, a segurança, etc., implicam epistemologia geral e especial [9] , além de colocarem questões éticas, filosófico-políticas, etc...
III. O Direito como educação para a Filosofia
Evidentemente todas estas matérias do Direito e da sua Filosofia preparam para a Filosofia e a Filosofia prepara para elas. Têm um alto valor educativo em geral. Coloca-se, curiosamente, um problema pedagógico: parece existir uma filosofia do Direito dos Filósofos e uma filosofia do Direito dos juristas [10] . A primeira mais abstracta, ou tendo menos em conta a realidade e os problemas concretos do Direito, por vezes dele recolhendo apenas visões truncadas e parciais, por exemplo dos juristas da moda; a segunda, por vezes menos rigorosa, menos filosófica e mais cultural em geral ou de teoria geral do Direito, sem atingir as alturas especulativas da verdadeira Filosofia, por vezes demasiado preocupada ainda com a técnica ou a metodologia. Ora o ideal será uma formação jurídica que não desconheça a filosofia, e uma formação filosófica que tenha convivido com a teoria e a prática do Direito. O que é, infelizmente, raro, mas vai começando a haver, sobretudo a partir do momento em que os cursos de Direito atraem gentes da Filosofia, e os juristas começam a espraiar-se por esses outros continentes do saber...
O mesmo Ulpianus de que falávamos dá-nos uma espécie de descrição do Direito em que se especifica, a final, o quid do conhecimento jurídico, aquilo sobre que o Direito deve debruçar-se. E deve assinalar-se que se trata de um projecto muito ambicioso. Permitamo-nos uma tradução livre, mas que desejamos fiel ao espírito do texto. Diz, pois, Ulpiano no Digesto, I, 1, 10 (ou no 1 reg., ou Inst. I, 1, pr. e 3, 1):
«A Justiça é a vontade constante e perpétua de atribuir a cada um o seu. Os preceitos do Direito são os seguintes: viver honestamente, não prejudicar ninguém, atribuir a cada um o que é seu. A Jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas, o conhecimento do justo e do injusto.»
Nada menos se propõe o Direito, para fazer o seu papel de atribuir o seu a seu dono, que ter conhecimento do justo e do injusto, para o que se necessita do conhecimento de coisas divinas e humanas. Se o Direito visa conhecimento de coisas humanas e divinas, naturalmente que nesse conhecimento se envolvem questões filosóficas e não pequenas... E que o Direito pode contribuir, com a sua tão imensa sede de saber, para a própria educação filosófica. Há com efeito no Direito a aprendizagem de um rigor mental e de um fôlego teórico, aliado à capacidade dialéctica e de aplicação prática que só podem muito ajudar, como pensamento ginástico quanto mais não fosse, à necessária agilidade mental da Filosofia.
A fina conceitualização jurídica, onde avulta a filigrana de teorizações no Direito Penal e no Direito Civil é um treino muitíssimo interessante.
A interpelação de problemas sociais e políticos no Direito Constitucional e a necessidade correlativa de conhecimentos políticos e politológicos, de história, ideologia e doutrina, e afins, estabelecem um trânsito claro para as questões filosóficas conexas... Pobre de quem busca apenas o pequenino artigo da lei sem o fôlego das grandes teorizações e dos necessários enquadramentos extra-jurídicos. E tudo isso interessa à Educação em geral e à filosófica em particular.
As questões éticas que se levantam no Direito Penal ou no Biodireito estão a meio caminho já da Ética filosófica, e esta já se coloca muitos problemas que também muito interessam ao jurista.
As grandes teorizações de cunho filosófico do Direito são portentosas, e algumas, mesmo fora de moda, nunca seriam verdadeiramente infirmadas, como sucedeu com a teoria finalista da acção. Os grandes paradigmas, no Direito como na Filosofia, não são verdadeiramente desacreditados por uma refutação cabal que plena e definitivamente os desacreditasse: apenas nos vamos esquecendo deles, por um fenómeno a que se chama frequentemente superação, mas que é, na verdade, simplesmente, olvido [11] .
Há teorias finíssimas como a do direito subjectivo, que faz as delícias dos estudantes dos primeiros anos, que não conseguem compreender, no seu senso comum são e óbvio, como pode haver um direito inviolável, o potestativo. Ou seja, que não concebem, na sua ingenuidade, como quando se impede o exercício de um direito subjectivo do tipo potestativo se estará, por exemplo, a violar um direito subjectivo comum, lato sensu, constituído mercê da existência daquele outro direito potestativo. Também nunca percebemos pessoalmente qual o interesse real desta argúcia teórica. A verdade é que esta especiosidade, entre muitos outros, treina para evitar a facilidade das aparências, e ver a verrumância dos espíritos... sobretudo dos teóricos.
Quando um pássaro, por exemplo um pombo correio, cruza os céus, logo um jurista, treinado nos duros labores da conceitualização abstractíssima do pensamento dogmático - felizmente nem todos os juristas assim são: que os há partidários do pensar problemático e defensores da tópica [12] - , acabará por dizer, contemplando-o maravilhado: eis um imóvel por destinação... Tinha razão Hervé Bazin [13] : o Direito é um óptimo calmante dos nervos e da imaginação efervescente. Mas decerto precisamente porque ele é também, como afirmou o próprio Giraudoux [14] , a mais poderosa escola de imaginação.
Uma imaginação que educa a ebulição da mente e utopicamente labora mundos imaginários, por um lado (o negativo), uma imaginação que permite rigor e asa libertadora (pelo lado positivo). Os juristas nunca são unos... Há sempre pelo menos dois partidos, duas partes, uma defesa e uma acusação. Javier Hervada [15] afirmou que se a diversidade dos pontos de vista fosse sinal de carácter divertido, os juristas seriam as pessoas mais divertidas do mundo: nunca estão de acordo entre si...
Finalmente, tendo durante muito tempo sido a cultura e até a finura do trato e uma certa distinção (que a massificação vai necessariamente fazendo esquecer... mas a que muitos ainda felizmente resistem) um apanágio dos professores de Direito por toda a parte, aprendia-se muito com eles. Aprendiam-se lições de vida. Aprendiam-se lições de Educação, de Paideia [16] . Aprendiam-se Humanidades em geral. E a Filosofia durante muito tempo sem escola universitária especificamente para si aberta, tanto em Portugal como no Brasil, acaba por ser não ousamos dizer ensinada, mas em grande medida sugerida, e para ela os estudantes despertados, por mestres de Direito [17] (Cunha, 1995, p. 164 ss.). Não estamos isolados nesse magistério. Podem ser surpreendentes, mas são sem dúvida sinceras as palavras de Robert Maynard Hutchins, que assim testemunha sobre o seu curso de Direito:
“I see now that my formal education began in the Law School. My formal
education began, that is, at the age of twenty-one. I do not mean to say
that I knew then that I was getting an education. I am sure the professors
did not know they were giving me one. They would have been shocked at such
an insinuation. They thought they were teaching me law. They did not teach
me any law. But they did something far more important: they introduced me
to the liberal arts. It is sad but true that the only place in an American university where the student is taught to read, write, and speak is the law school.” [18]Mesmo hoje e nas nossas Faculdades de Direito (mercê de uma sistema de ensino demagógico que priva efectivamente as crianças e os jovens de instrumentos essenciais do saber) são forçadas a tentar suprir as imensas lacunas dessa formação. Infelizmente, os programas e as especialidades crescem, o tecnicismo dos docentes aprofunda-se, o desprezo pela formação geral e humanística agrava-se, e uma interpretação avarenta da Declaração de Bolonha deseja fazer poupar dinheiro aos governos reduzindo até os cursos de Direito para quatro anos. Assim, não só a tentativa de colmatar lacunas graves sairá frustrada, como se vaticina que as matérias formativas cederão o passo ao mero positivismo, o que redundará no abaixamento profundo do nível das Faculdades, as quais passarão a simples escolas técnicas de leis... aptas a formar burocratas dóceis para toda a ordem... A questão coloca-se em toda a Europa, mas julgamos saber que esta vaga economicista também tem adeptos no Brasil, e desejando precisamente o mesmo: que o seu Bacharelato em Direito (o mais extenso do mundo, aliás, equivalente à Licenciatura em Portugal), hoje de cinco anos, passe para menos...
IV. A Filosofia como educação para o Direito. Educação para a Justiça
O papel da Filosofia para um jurista é essencial. Não compreendemos que hoje seja possível o acesso ao curso de Direito, em Portugal, sem um profundo conhecimento curricular da Filosofia. O resultado é sempre o mesmo: uma incompreensão profunda das coisas essenciais, o substituir do conhecimento sapiente, saboreado, da sapida scientia, por um saber decorado que nem sequer é feito com o coração. Sem Filosofia, que é do conhecimento formalizado, abstracto mas discursivo ainda, do conhecimento histórico-filosófico das correntes de pensamento, do treino dialéctico, da capacidade reflexiva, da perspectivação e ponderação hermenêutica, etc., etc.?
Façamos um pequeno exercício lógico, mas também retórico, para tentar provar uma tese liminar.
A História, diz Cícero, é mestra da vida – magistra vitae. Se a História é, como afirma Dioniso de Halicarnasso, Filosofia a partir de exemplos, então a Filosofia é, pela propriedade transitiva, nada menos que mestra da vida não por exemplos, mas por abstracções ou decantações desses exemplos.
A Filosofia é mestra teórica da vida, e o Direito é lição de vida teórico-prática.
A Filosofia tem de preparar para o Direito ensinando o amor à Verdade, o amor ao Bem, e o próprio amor à Justiça.
Falta uma educação para a Justiça. De pequenos ensinam-nos hoje a avidez, o egoísmo, o prazer hedonístico e a competitividade. Não nos ensinam a ponderação, a imparcialidade, a capacidade de decidir pelo bem comum. Não falámos já no altruísmo… Há hoje uma persistente e bastarda ideia de que a justiça é uma espécie de permanente “venha a nós”. Antigamente, nos Liceus de França, por exemplo, havia difíceis e argutas dissertações sobre a Justiça e seus temas... Agora, a própria literatura se rebaixa ao não-literário, ao casual, ao banal... Os exemplos deixam de existir, as crianças, os adolescentes, e os jovens (assim como os adultos, de resto) não têm a quem tomar por modelos. Tomam-nos nas revistas mundanas, nos tops da música, nos programas de TV cada vez de pior qualidade... Já nem os políticos conseguem qualquer popularidade real...
Falta educação para a Justiça porque falta educação em geral e educação ética, estética, cívica... Os Estados, vacinados em excesso pelas doutrinações nazis, fascistas, comunistas, acharam por bem demitir-se de formar, de educar... Limitam-se a informar, a ocupar os estudantes, a deixar rédea livre a quem os queira intoxicar de correcção política... mas com o pretexto da sua neutralidade demitiram-se de educar. O resultado são gerações perdidas... na droga, no desespero, no sem sentido do mundo...
O Estado tem de voltar a não ter complexos e educar, sem ideologismos, sem dogmatismos, mas para aquele núcleo de valores e adquiridos comuns sobre que há até socialmente (ainda) largo consenso. E dizemos ainda porque a escalada avalorativa e anti-valorativa poderá subverter as coisas no futuro...
Nas escolas começa a fazer-se sentir uma educação para os Direitos Humanos, e, timidamente embora, reabilitam-se as ideias de educação cívica. Mas é preciso encarar a questão com frontalidade e sem complexos. A manutenção da teoria da neutralidade é incompatível já com estas reticentes abordagens. E a educação para os Direitos Humanos, que é vital para a formação integral, e deve contribuir e colher contributos da para e da Filosofia e do Direito, deve integrar-se numa mais geral Educação para a Justiça. Toda a Justiça: quer o suum cuique, o dar o seu a seu dono, como a justiça social ou política.
A Educação para a Justiça não consome toda a Educação. Há muito mais coisas a ensinar. Mas é uma vertente a não descurar. E nela plenamente se harmonizarão os contributos propriamente jurídicos e os propriamente filosóficos, que farão ainda apelo a outros: literários, históricos, etc...
Tal como a educação artística, a educação para a Justiça necessita de diuturno contacto com as obras de arte do sector – as obras da justiça. Contacto com exemplos de leis, decisões, sentenças justas. Como aquele operário referido nos Propos de Alain [19] , que ia todos os dias ao Museu do Louvre para se embriagar de arte e aprender a sua essência.
Infelizmente, se podemos ir facilmente à Avenida Paulista e tomar banho diário de arte no MASP (Museu de Arte de São Paulo), nem sempre a Justiça está assim tão disponível para que a possamos mostrar, viva ainda que emoldurada, aos nossos estudantes.
Mas há que fazer um esforço...
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** Por amável convite do Senhor Prof. Doutor Jean Lauand, a quem desde já agradecemos.
[1] Paulo Ferreira da CUNHA - Da Actual Questão Literária, in "Cadernos de Literatura", Coimbra, 1979.
[2] Daniel INNERARITY - La Filosofia como una de las Bellas Artes, Barcelona, Ariel, 1995, trad. port. de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, A Filosofia como uma das Belas Artes, Lisboa, Teorema, 1996.
[3] Francisco PUY - Filosofía del Derecho y Ciencia del Derecho, in "Boletim da Faculdade de Direito", Coimbra, Universidade de Coimbra, vol. XLVIII, 1972, p. 145 ss.; Paulo Ferreira da CUNHA - Amor Iuris, Filosofia Contemporânea do Direito e da Política, Lisboa, Cosmos, 1995, p. 73 ss.
[4] Como recorda agudamente António Braz TEIXEIRA - Sentido e Valor do Direito. Introdução à Filosofia Jurídica, 2.ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000.
[5] Julio Germán VON KIRCHMAN, - Die Wertlosigkeit der Jurisprudenz als Wissenschaft, 1.ª ed. alemã 1847, trad. cast. de Werner Goldschmidt, El Carácter a-científico de la llamada Ciencia del Derecho, in La Ciencia del derecho, Savigni, Kirchmann, Zitelmann, Kantorowicz, Buenos Aires, Losada, 1949.
[6] Francisco PUY – Op. cit.
[7] Gilda Naécia Maciel de BARROS – Agraphoi Nomoi, “Notandum”, vol. II, n.º 3, 1999, online in http://www.hottopos.com/notand3/agrafoi.htm; Idem – Antígona e os Direitos Humanos, conferência no Seminário Internacional “Religião, Valores e Educação”, USP, 17 a 20 de Setembro de 2003; e, por todos, ainda George STEINER - Antigones, trad. port. de Miguel Serras Pereira, Antígonas, Lisboa, Relógio D’Água, 1995.
[8] Stamatios TZITZIS - La Philosophie Pénale, Paris, P.U.F., 1996.
[9] Miguel REALE - Filosofia do Direito, 19.ª ed., São Paulo, Saraiva, 1999.
[10] Michel VILLEY - Critique de la pensée juridique moderne, Paris, Dalloz, 1976, p. 219 ss. ; Norberto BOBBIO - Contribuición a la Teoría del Derecho, trad. castelhana do orig. italiano por Alfonso Ruiz Miguel, Valência, 1980, p. 91 ss. ; António Braz TEIXEIRA, Op. cit,, pp. 46-47; Paulo Ferreira da CUNHA- Lições Preliminares de Filosofia do Direito, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra, Almedina, 2002, p. 109 ss., et passim.
[11] Winfried HASSEMER - História das Ideias Penais na Alemanha do Pós-Guerra, seguido de A Segurança Pública no Estado de Direito, trad. port., Lisboa, AAFDL, 1995, p. 30; Thomas S. KUHN - The Structure of Scientific Revolutions, Chicago, Chicago University Press, 1962.
[12] Inter alia, Theodor VIEHWEG - Topik und Jurisprudenz, Muenchen, C. H. Beck'sche V., 1963; Francisco PUY - Topica Juridica, Santiago de Compostela, Imprenta Paredes, 1984; Paulo Ferreira da CUNHA - Lições de Filosofia Jurídica. Natureza & Arte do Direito, Coimbra, Almedina, 1999, p. 231 ss.
[13] Hervé BAZIN - La mort du petit cheval, trad. port. de António Ramos Rosa, A morte do Cavalinho, Lisboa, Livros Unibolso, s.d., [ed. orig.: 1950].
[14] Jean GIRAUDOUX - La guerre de Troie n'aura pas lieu, Paris, Grasset, 1935.
[15] Javier HERVADA / Paulo Ferreira da CUNHA - Direito. Guia Universitário, ed. portuguesa, Porto, Rés, [1990].
[16] Por todos, v. Werner JAEGER - Paideia, Die Formung des Griechichen Menschen, Berlin, Walter de Gruyter, 1936
[17] Wilson MARTINS - História da Inteligência Brasileira (1550-1960), 7 vols., S. Paulo, Cultrix, 1976-1979, vol. 2, 3.ª ed., 1992; Paulo Ferreira da CUNHA - Amor Iuris, Filosofia Contemporânea do Direito e da Política, cit., p. 164 ss.
[18] Robert Maynard HUTCHINS - Education for Freedom, Louisiana State University Press, 1943.