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Saber Decidir: a Virtude da Prudentia

 

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

 

Não é objetivo desta conferência tratar sistematicamente da prudentia, considerada classicamente a principal das virtudes cardeais, nem analisar exaustivamente a doutrina de Tomás de Aquino, o maior mestre que se aplicou ao tema. Tais tarefas são sem dúvida importantes e já foram empreendidas por especialistas, de modo adequado. O que, sim, interessa aqui é apontar um problema mais geral na fronteira entre ética e linguagem e destacar alguns aspectos que evidenciam a atualidade da doutrina de Tomás sobre a virtude da prudentia (e a memoria e a docilitas): sua relação com a problemática de nosso tempo, seu "alcance existencial", de interesse para o jurista (tema que será desenvolvido, na seqüência, pelo Prof. Mauro Keller). Na verdade, a prudentia, enquanto virtude da decisão, é a própria base da justiça e a iurisprudentia nada mais é do que a prudentia do ius.

Linguagem e percepção da realidade

O relacionamento entre pensamento e linguagem é tema básico para a compreensão da ética e da educação moral nas análises que Tomás de Aquino faz das virtudes cardeais e da prudentia, de extrema importância para o homem de hoje.

O pensamento e a vida estão mais ligados à linguagem do que à primeira vista supomos. Para além do âmbito da mera comunicação, a força viva da palavra não só transmite, mas até mesmo gera e preserva, em interação dinâmica, o que pensamos e sentimos, o que podemos pensar e sentir.

Sem a palavra, nossa percepção da realidade é confusa ou nem sequer chega a ocorrer. Quando a língua viva dispõe de uma determinada palavra (e quando dela nos apropriamos...) é possível a configuração de uma realidade que - precisamente pela palavra - emerge da massa informe de experiências confusas e desconexas que vamos acumulando. Em geral, vale a regra: nossa possibilidade de "visualização" da realidade depende do léxico vivo da língua.

E, reciprocamente, esse léxico só surge e mantém seu vigor graças ao interesse vital de uma comunidade pela realidade em questão. Para o brasileiro médio, por exemplo, evidentemente é muito mais fácil a captação do que ocorre numa partida de futebol (de lances geniais a sutis pressões psicológicas) do que, digamos, no golfe. Pois o interesse vivo pelo futebol é tão intenso e estendido que dispomos de um léxico de "alta resolução": variações em um determinado tipo de jogada - para as quais outras línguas mal dispõem de um nome próprio - recebem em nosso idioma denominações precisas: “bicicleta”, “meia-bicicleta”, “puxeta” e “voleio”...! E - como na interação dialética da peça publicitária: "vende mais por que é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?" - é em virtude dessa riqueza de léxico que o futebol se mantém como realidade viva entre nós.

Neste aspecto fundamental da educação moral, um dos principais pensadores contemporâneos, Josef Pieper, ao longo de seu clássico tratado sobre as virtudes cardeais, Das Viergespann [1] , insiste em que há mútua alimentação entre a percepção e vivenciamento da realidade moral e a existência de linguagem viva. O empobrecimento do léxico moral é, hoje, um dos mais agudos problemas da educação moral, na medida em que gera um círculo, literalmente, vicioso: a falta de linguagem viva embota a visão e o vivenciamento da realidade moral; o definhamento da realidade esvazia (ou deforma) as palavras... Faltam-nos os conceitos, faltam-nos os juízos, falta-nos acesso à realidade.

Além disso, o relacionamento entre ética e linguagem torna-se ainda mais problemático por conta da conhecida "lei" - C. S. Lewis estuda isto brilhantemente em seu clássico Studies in Words - que registra a “inflação” semântica das palavras que exprimem realidades morais. O pior é que não se trata só de esvaziamento das palavras fundamentais, mas, por vezes, de autêntica inversão de polaridade: a palavra que designava uma virtude passa a designar um vício. É o que ocorreu, por exemplo, com a palavra "simples" (simplex) e com a palavra "prudência" (prudentia). Simplex, classicamente, nada tem que ver com simplório e designa o homem que tem uma visão límpida da realidade e que não deixa a objetividade de sua consciência ser subornada por interesses interesseiros. Prudentia, classicamente, designa a arte de tomar a decisão certa.

Ora, baseados em quê tomamos nossas decisões? A arte, dizíamos, de decidir bem, reta e adequadamente, era denominada pelos antigos Prudentia. Originariamente, a virtude da Prudentia (a principal entre as virtudes cardeais!) não tem nada que ver com a encolhida cautela a que, hoje, chamamos prudência; Prudentia (a legítima, a verdadeira) é, pura e simplesmente, a arte de decidir certo.

Estudando o tratado De Prudentia de Tomás de Aquino, deparamos uma doutrina maravilhosa e riquíssima e, além do mais, de extrema atualidade. Encontramos, por exemplo, que a Prudentia é uma virtude intelectual; seu princípio é a inteligência reta, o olhar límpido, simples, capaz de ver a realidade e, com base na realidade vista, tomar a decisão boa, para “fazer a coisa certa”.

A inteligência da Prudentia é uma virtude e não dotes de inteligência, digamos, de Q.I., porque só o homem bom consegue ter a inteligência que não distorce o real (pense-se, por exemplo, na dificuldade de ver a realidade por conta de preconceitos, inveja, egoísmo etc.).

Virtude da inteligência, mas da inteligência do concreto: a Prudentia não é a inteligência que versa sobre teoremas ou princípios abstratos e genéricos, não!; ela olha para o “tabuleiro” de nossas decisões concretas, do “aqui e agora”, e sabe discernir o “lance” certo, moralmente bom.

Entre muitos outros pontos geniais da doutrina clássica, destacaria inicialmente seu critério para saber o que é bom: a realidade! Saber discernir, no emaranhado de mil possibilidades que esta situação me apresenta (que devo dizer a este aluno?, compro ou não compro?, devo responder a este mail? etc.), os bons meios concretos que me podem levar a um bom resultado: e, para isto, é necessário ver a realidade.

Mas este ver a realidade é só uma parte da Prudentia; a outra parte, ainda mais decisiva (literalmente) é transformar a realidade vista em decisão de ação: de nada adianta saber o que é bom, se não há a decisão de realizar este bem...

O nosso tempo, que se esqueceu até do verdadeiro significado da clássica Prudentia, atenta contra ela de diversos modos: em sua dimensão cognoscitiva (a capacidade de ver o real, por exemplo aumentando o ruído - exterior e interior – que nos impede de “ouvir” o real) e em sua dimensão prescritiva: o medo de enfrentar o peso da decisão, que tende a paralisar os imprudentes (pois, insistamos, a Prudentia toma corajosamente a decisão boa!).

É dessa dramática imprudência da indecisão que tratam alguns clássicos da literatura: de Hamlet ao “Grande Inquisidor” de Dostoiévski, de que trataremos mais adiante. A grande tentação da imprudência (sempre no sentido clássico) é a de delegar a outras instâncias o peso da decisão que, para ser boa, depende só da visão da realidade. Há diversas formas dessa abdicação: do abuso de reuniões desnecessárias à delegação das decisões a terapeutas, analistas e gurus, passando por toda sorte de esoterismos. Uma das mais perigosas formas de renúncia a enfrentar a realidade (ou seja, a renúncia à prudentia) é trocar essa fina arte de discernir o que a realidade exige naquela situação concreta por critérios operacionais rígidos, como num “Manual de escoteiro moral” ou, no campo do direito, num estreito legalismo à margem da justiça. É também o caso do radicalismo de certas propostas religiosas: em vez de se dar ao trabalho de discernir os casos, simplifica-se grosseiramente tudo: é pecado e pronto!

Certamente, há absolutos na moral (não existem homicídios ou adultérios bons); refiro-me à indevida absolutização do relativo... O regime Taliban, por exemplo, pretendia tornar dispensável o discernimento de cada fiel/cidadão, por meio de um extenso e detalhado sistema de normas, que determinava inclusive as formas verbais de que a torcida podia se valer num jogo de futebol: ante a alegria do gol, a exclamação devia ser: “Al-hamdu lillah” (louvor a Deus); ante uma roubada do juiz, Allahu Akbar (“Deus é grande”) e, em qualquer caso: Allah (o palavrão estava proibido pelo Ministério do Vício e da Virtude).

Mesmo sem chegar a extremos como o da criação de um Ministério do Vício e da Virtude, a tentação é a de tornar dispensável a virtude pessoal da prudentia (e a da justiça): deixando tudo definido e operacionalizado num código. Lembro-me aqui daquele sargento que comandou a operação de resgate, no Parque Nacional do Itatiaia, de um amigo, alpinista de primeira escalada, que acabou por ficar preso numa estreita pedra, sem poder sair. O sargento do resgate, tendo subido a uma pedra paralela e estando a uma distância de 3 ou 4 metros desse meu amigo, antes de lançar-lhe a corda, tomou o megafone (desnecessário) e, com a melhor psicologia de caserna, berrou: “Vítima, não entre em pânico, vítima!” (a primeira regra do Manual de Resgate é: “Faça com que a vítima não entre em pânico”...).

As partes quasi integrais da Prudência

A definição de prudentia - recta ratio agibilium - situa o próprio centro da vida moral em dois âmbitos literalmente decisivos: o cognoscitivo e o preceptivo: trata-se de conhecer a realidade (recta ratio) concreta para tirar daí a decisão de ação (agibilium). Daí que a prudentia seja considerada a mãe (genitrix virtutum) e a guia (auriga virtutum) das virtudes.

Para bem compreendermos o alcance da virtude da prudência, são necessários alguns esclarecimentos conceituais. Santo Tomás, precisamente a propósito da prudência, retoma, exemplificando, os três tipos de partes das virtudes cardeais. E diz que há partes integrais, como a parede ou o teto são partes da casa; subjetivas, como "boi" e "leão" em relação ao "ser animal", e potenciais, como a dimensão nutritiva ou sensitiva em relação à alma (II-II,48,1). Prossegue, explicando que, no caso das virtudes, partes integrais [2] são as que concorrem para o ato perfeito da virtude (do mesmo modo que, digamos, uma casa sem teto não seria uma casa completa).

Já as partes subjetivas são as diversas espécies da virtude; a prudência pode voltar-se para a boa direção de si mesmo ou do coletivo (neste caso, Tomás analisa as prudências militar, a doméstica e a política).

As partes potenciais são virtudes adjuntas que se dirigem a atos secundários, que não possuem toda a virtualidade da virtude principal.

Ainda em II-II, 48, 1, Tomás enumera as partes da prudência.

Destacaremos aqui duas virtudes dentre as cinco partes quasi integrais da prudência em sua dimensão cognoscitiva: a memória (memoria) e a docilidade (docilitas).

As outras partes são:

- A inteligência (intellectus), entendida não enquanto faculdade intelectiva, nem enquanto cognoscitiva de universais, mas como uma "outra inteligência" (alius intellectus) [3] , que conhece a outra "ponta" (extremi): um primeiro singular e contingente operável, a menor do silogismo da prudentia, que deve ser particular (II-II,49,2, c e ad 1). Se a memória diz respeito ao passado, o intellectus refere-se ao presente "operável".

- A solertia, tal como a docilitas, refere-se à aquisição de uma reta opinião. Ao contrário desta, porém, dá-se não por meio de ensinamento de outro, mas per se inveniendo, com rápida e fácil descoberta do meio (II-II, 49, 4).

- Finalmente (II-II, 49, 5), a ratio, razão: não enquanto faculdade, mas enquanto "raciocínio" sobre os casos particulares e incertos.

Prudência e contingência

Tomás nos artigos 1 a 5 (de II-II, 49) trata, em particular, de cada uma daquelas cinco virtudes - partes quasi integrais da prudência em sua dimensão cognoscitiva (das quais interessam-nos particularmente a memoria e a docilitas). Uma constante essencial, nesses artigos, é o fato de que a prudência versa sobre ações contingentes.

Assim, no artigo 1, dedicado à virtude da memoria, Tomás observa que não pode o homem reger-se por verdades necessárias, mas somente pelo que acontece in pluribus (geralmente). Note-se que esta é também a razão da insegurança em tantas decisões humanas: a prudência traz consigo aquele enfrentamento do peso da incerteza, que tende a paralisar os imprudentes [4] . Como já apontávamos, é dessa dramática imprudência da indecisão, que tratam alguns clássicos da literatura: do "to be or not to be..." de Hamlet de aos dilemas kafkianos (o remorso impõe-se a qualquer decisão), passando pelo Grande Inquisidor de Dostoiévski, que descreve "o homem esmagado sob essa carga terrível: a liberdade de escolher" [5] e apresenta a massa que abdicou da prudentia e se deixa escravizar, preferindo "até mesmo a morte à liberdade de discernir entre o bem e o mal" [6] . E, assim, os subjugados declaram de bom grado: "Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis" [7] . Cabe ressaltar - porque é de especial interesse para a educação - a central afirmação de S. Tomás: "A prudência não é inata em nós; ela procede da educação e da experiência" [8] .

Memória e Prudência

A prudência versa sobre o contingente e, portanto, é pela experiência (per experimentum) que deve o prudente guiar-se, pois, "diz o Filósofo", "a virtude intelectual origina-se e desenvolve-se com a experiência e com o tempo". Mas a experiência, por sua vez, não é senão memória acumulada... [9] .

Tomás, no ad 2 de II-II, 49, 1, aponta as quatro leis fundamentais da educação da memória:

1) Estabelecer semelhanças (similitudines) adequadas para o que se quer recordar. Mas, adverte, não semelhanças usuais, pois guardamos melhor o invulgar. E, assim, prossegue o Aquinate, é necessário encontrar semelhanças ou imagens, pois as realidades espirituais facilmente se esvaem se não estão "amarradas" a alguma semelhança corpórea (nisi quibusdam similitudinibus corporalis quasi alligentur). E isto, conclui, porque o conhecimento humano é mais forte com relação ao sensível.

2) Na segunda lei, Tomás afirma ser necessário organizar e dispor em ordem aquilo que se quer lembrar, de tal modo que haja uma associação por encadeamento.

3) É necessário, prossegue o Aquinate ao enunciar a terceira lei, que o homem tenha solicitude e afeto para com aquilo que quer recordar [10] , pois onde não há interesse e amor, não se fixam as impressões na alma.

Como bom pedagogo, Tomás - ao falar do "dom da palavra" em II-II, 177, 1 - diz que aquele que ensina deve tocar o sentimento, mover ao afeto e isto acontece quando faz com que o discípulo "seja movido ao amor das realidades significadas pelas palavras e queira pô-las em prática: e isto ocorre quando a formulação é tal, que o ouvinte se emociona" (quod aliquis amet ea quae verbis significantur, et velit ea implere: quod fit dum aliquis sic loquitur quod auditorem flectat).

4) Finalmente, diz Tomás ao enunciar a quarta lei, é necessário meditar freqüentemente sobre o que queremos guardar na memória. E cita o provérbio: "o costume é como uma natureza". "Daí que nos lembramos rapidamente do que muitas vezes consideramos, associando, como que naturalmente, uma coisa a outra".

Estas duas últimas leis enunciadas por Tomás, tal como no caso da prudência, unem a ordem intelectual à moral. A memoria, mais do que uma questão de técnicas mnemônicas, liga-se a um saber pessoal e coletivo. Com muita propriedade, lembra Pieper: "Por memória entende (Tomás) algo mais do que, por assim dizer, a mera faculdade natural de lembrar-se (...). A ‘boa’ memória, entendida como requisito de perfeição da prudência, não significa senão uma memória ‘fiel ao ser'. (...) O falseamento da recordação, em oposição à realidade, mediante o sim ou o não da vontade, constitui a mais típica forma de perversão da prudência" [11] .

O artigo de Tomás sobre a memoria fecha-se com a resposta à terceira objeção, a objeção de que a memória não poderia ser parte da prudência, pelo fato tão simples de que a prudência é para o "agível" (operabilium) do futuro, enquanto a memória é do passado. A resposta de Tomás a esta objeção associa o passado ao futuro: "É mister tomar do passado argumentos para o futuro. E, assim, a memória do passado é necessária para bem aconselhar-nos sobre o futuro".

A docilitas

Do mesmo modo que pode haver um falseamento da lembrança, pode se dar também um falseamento da percepção da realidade presente, que se recusa à objetividade. Daí que, no art.3 (sempre em II-II,49), dedicado à outra parte quasi integral da prudência, a docilitas, Tomás afirme a necessidade dessa disposição de abertura e acolhimento para aprender, a que se opõem a auto-suficiência e a indiferença negligente (ad 2). O Aquinate volta a lembrar que a prudência tem por objeto ações particulares e que estas se dão em diversidade praticamente infinita (quasi infinitae diversitates). Assim, para exercer a prudência, não pode um indivíduo sozinho, em pouco tempo, considerá-las todas. Tomás conclui, remetendo ao cabedal da experiência coletiva: "É necessário considerar atentamente (attendere) as opiniões e sentenças (mesmo não demonstradas) dos anciãos e dos experientes, não menos do que as verdades demonstradas, pois, pela experiência, eles penetram nos princípios".

Pieper indica o sentido do conceito de docilidade em S. Tomás: "Sem docilitas não pode haver prudência perfeita. Mas a docilitas não é evidentemente a submissão e o zelo superficial do ‘bom discípulo’. O que o termo designa é aquela disponibilidade leal que, em face da multiplicidade realista das coisas e das situações experimentadas, renuncia a refugiar-se estupidamente na absurda autarquia dum saber fictício. O que o termo designa é aquela capacidade de se deixar ensinar, capacidade que brote, não de uma vaga modéstia, mas simplesmente do desejo verdadeiro - o que já, de resto, necessariamente, contém a autêntica humildade. A falta de abertura e a auto-suficiência intelectual são, no fundo, formas de resistência à verdade das coisas reais; ambas assentam na incapacidade de o sujeito conseguir fazer calar o seu ‘interesse’- condição imprescindível da apreensão da realidade" [12] .

Algumas implicações existenciais

Após esta breve introdução conceitual, passemos a discutir algumas conseqüências existenciais e pedagógicas.

Primeiramente, o caráter dramático da prudentia. Ela é uma virtude que - como insiste Tomás - versa sobre o "aqui e o agora", sobre a realidade contingente, singular, infinitamente variada, com a qual eu me encontro e requer de mim uma decisão. Para decidir corretamente, devo enxergar a verdade, o logos, o que a realidade exige de mim. Trata-se, portanto, antes de mais nada, de uma clarividência, de uma simplicitas, de uma capacidade intelectual de ver o real. Mas não de um real teórico, teoremático; e sim do concreto: saber discernir no "aqui e agora" o que vai me realizar ou o que vai me destruir... Tomás, sempre atento à linguagem, dirá que prudens vem de porro uidens, “ver longe”. Nesse sentido, há uma sugestiva expressão que se usa muito em espanhol: "las veo venir", equivalente aos nossos: "já vi esse filme antes", "já dá para ver onde isto vai parar"...

Esse caráter dramático da prudentia manifesta-se no fato de que ela, sim, é uma atitude racional, é a limpidez da inteligência que vê o real (e isto é uma qualidade moral: só o homem de coração puro vê o real), mas não há critérios operacionais para determinar qual a decisão certa. Suponhamos, por exemplo, que aceitemos os dez mandamentos como guia moral e que estejamos todos de acordo em que é necessário, digamos, amar pai e mãe... Porém, como realizar este “amar pai e mãe” na situação concreta em que estes pais reais - Sr. João e Da. Maria - se encontram no aqui e no agora: o que é o melhor, objetiva e concretamente, para eles? Oferecer-lhes todas as comodidades, poupando-lhes todo trabalho ou deixá-los que se ocupem de suas tarefas para que não caiam numa torpe alienação?

A condição humana é tal que - muitas vezes - não dispomos de regras operacionais concretas: há um certo e um errado objetivos, um “to be or not to be” pendente de nossas decisões, mas não há regra operacional. Tal como para o bom lance no xadrez, há até critérios objetivos... mas não operacionais!

Nesse sentido, está a agudíssima página de Guimarães Rosa - todo um tratado de filosofia moral na boca do jagunço Riobaldo em Grande Sertão: Veredas (Rio , José Olympio, 5a. ed., p. 366):

"Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa - a inteira - cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver - e essa pauta cada um tem - mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto: mas, fora dessa conseqüência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador - sua parte, que antes já foi inventada, num papel...".

Por mais que nosso tempo insista em querer relativizar a verdade, no fundo sabemos que há certo e “errados” objetivos e que a decisão do agir é um problema de ratio, de recta ratio... Quando, diante de uma ação, perguntamos “por quê?”, estamos perguntando é pela razão (reason, raison...): “Por que razão você fez isto?”. E o mesmo ocorre quando, diante de uma ação, dizemos: “É, você tem razão...”, “está coberto de razão”, etc. E para uma ação que é um grave mal moral, dizemos: “Que absurdo!!!”.

Isto não quer dizer que a pessoa tenha sempre uma justificativa racional pronta, consciente para cada ato. A prudência decide bem, mas com a espontaneidade da virtude. Aliás, segundo Tomás, a função da virtude (como a de todo hábito em geral) é precisamente a de permitir realizar o ato com facilidade, “espontaneamente”, com um certo “automatismo” que não tira a liberdade, antes pelo contrário... (quem objetaria a espontaneidade adquirida - após árduos esforços - dos hábitos para extrair acordes do piano, falar uma língua estrangeira ou andar de bicicleta?).

Seja como for, não deixa de ser inquietante que na lingugaem quotidiana "razão" vá dando lugar a expressões a-racionais: “Não estou a fim...!”, "sei lá...", etc. (por outro lado, nossa gíria também tem intuições geniais, como na expressão que resume toda a doutrina da prudentia - e seu enlace entre Ser-Verdade-Bem - em três palavras: “cai na real!”).

Por essa razão, para os antigos, que bem conheciam o ser humano, a virtude da Prudentia era também designada originariamente por discretio, discernimento, uma virtude difícil porque requer (entre outras qualidades) experiência e memória, mas também objetividade da inteligência. Voltemos à pergunta inicial: baseados em quê tomamos nossas decisões? Quando não há a simplicidade que se volta para a realidade como único ponto decisivo na decisão, acabamos decidindo com base em diversos outros fatores: por preconceitos, por interesses interesseiros, por impulso egoísta, por inveja ou por qualquer outro vício... Nesse sentido, já a Bíblia (Eclo 37, 11) adverte que não se deve pedir conselho...: “...a uma mulher sobre sua rival; ao covarde sobre a guerra; ao invejoso sobre a gratidão; ao preguiçoso sobre o trabalho; etc.”

É interessante observar que, desde a tenra infância, o drama da decisão, da prudentia, nos era proposto sob diversas formas. Éramos advertidos de que a vida - fortuna velut luna... - era uma ciranda na qual “vamos todos cirandar”, e que junto com juras de amor eterno vinham anéis de vidro:

“o anel que tu me deste
era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou”.

E a inveja e a eterna insatisfação humana eram ludicamente desmascaradas: a galinha do vizinho é que bota ovo amarelinho (e ainda por cima: bota um, dois,..., dez!).

E aprendíamos que a prudência só vem com a experiência: “enganei um bobo, na casca do ovo...”.

E mais: na ingenuidade da infância, assumíamos nossa incapacidade de realizar as escolhas fundamentais (como a de ter que decidir quem é que ia se encarregar da triste missão de jogar no gol...) e as confiávamos claramente à cega sorte (“lá em cima do piano tem um copo de veneno...” ou “minha mãe mandou escolher este daqui...”, ou ainda o “bem-me-quer”, “uni, duni, tê” etc.).

Hoje, adultos, não adotamos mais esse critério (que, pelo menos, tinha a vantagem de sinceramente reconhecer a incapacidade de decidir). Nós pretendemos não necessitar de uma virtude (toda a profunda antropologia das virtudes cardeais nem sequer está mais em nosso campo de visão...), pois presumimos dispor de recursos técnicos ou científicos que permitam tornar dispensável o âmbito moral, a virtude cardeal da Prudentia. Mas, não por acaso, “cardeal” vem da palavra latina cardus, gonzo, eixo em torno do qual se abre a porta (a porta da realização humana, do to be). Abdicar da Prudentia, a cardeal das cardeais, significa perder o eixo, o gonzo, tornar-se des-engonçado existencialmente! Abdicar da Prudentia é abdicar da realidade e confiarmos a um Ersatz - como ao Grande Inquisidor - as decisões fundamentais da existência...

Nota sobre o direito e as religiões

Mencionávamos há pouco os fundamentalismos religiosos. Para além de “leis secas”, rigidezes e literalidades, as religiões correm ainda outro risco de imprudentia: no afã de libertar-se do peso da responsabilidade de decidir, o crente transfere o problema para Deus (ou para o sobrenatural). Certamente, Deus pode inspirar-nos em nossas dificuldades de decisão e a Ele devemos humildemente recorrer para pedir luzes e discernimento. O problema, nisso como em tudo, são os abusos.

Certamente, todo aquele que crê está legitimado em pedir luzes a Deus para suas decisões (é o que, para a doutrina católica, é “conselho”, dom do Espírito Santo); o que não se pode é avalizar com a autoridade divina posições meramente temporais, como a de saber se a falta foi dentro ou fora da área... Em todo caso, a iluminação sobrenatural deve ser (caso queiramos fazer uso público dela) de tal ordem que torne visíveis para qualquer um a realidade de que se trata (penso que é isso o que se pede naquele verso do mais clássico hino ao Espírito Santo, o “Veni Creator”: Mentes tuorum visita, visita as mentes dos que são teus...). Outra atitude degeneraria em tirania, em teocracia.

Um exemplo nos ajudará a entender. O exemplo nos vem da própria Bíblia, do capítulo 13 do profeta Daniel. Dois anciãos, juízes (iníquos) de Israel, repelidos pela bela Susana em seus desejos adúlteros, vingam-se levantando contra ela o falso testemunho de adultério: “Vimos um jovem assim, assim, adulterando com ela no jardim etc.”. Quando a multidão já está preparada para aplicar à casta Susana a pena de morte por apedrejamento, Deus inspira ao jovem Daniel (cujo nome, aliás, significa, juiz de Deus) a defesa da inocente. Mas Daniel não afirma em nenhum momento sua iluminação sobrenatural; o que ele faz é apresentar argumentos humanos, que todos podem comprovar, sobre a injustiça daquele processo: interroga em separado, diante do povo, os juízes iníquos: “Debaixo de que árvore ela estava adulterando?” e ante a disparidade de respostas, torna-se evidente que estavam mentindo e o povo aplica-lhes a pena de morte que tinham planejado para Susana...

É muito perigoso o uso indevido da religião em questões meramente temporais (naturalmente, questões éticas como a defesa da vida ou da justiça social não são questões meramente temporais e as religiões podem - e devem - trazer reflexão adequada para seu equacionamento na sociedade).

O Brasil inteiro chorou o desaparecimento de Chico Xavier, uma figura boníssima e um exemplo de humildade e de amor. Mas esse grande líder espírita protagonizou alguns episódios curiosos e que suscitam inquietante reflexão.

Num processo por homicídio, em 1985, um juiz de Campo Grande aceitou que a defesa apresentasse “cinco cartas psicografadas pelo médium Chico Xavier, nas quais a vítima dá a entender que a arma disparou acidentalmente. O júri o absolveu, mas a sentença foi anulada por recurso da promotoria, que quer condenação por homicídio doloso” (“Marido das cartas psicografadas volta a júri”, O Estado de S. Paulo, 6-4-90, p. 16).

Em outro júri de homicídio, um juíz de Gurupi-GO, em 1987, convocou Chico Xavier como testemunha (não como testemunha visual, mas mediúnica!!), pelo fato de o médium ter recebido mensagem do além da pretensa vítima (“Testemunha do crime: o médium”, O Estado de S. Paulo, 25-3-87, p. 17). E o "Jornal Espírita" comentou essa notícia em matéria de primeira página: "Haverá de chegar um tempo em que os espíritos poderão vir do 'lado de lá' - com o aval das autoridades - consertar tantas injustiças" (Ano XI, No. 143, Maio de 1987).

Outro tanto poderia ser questionado a propósito da prática de cirurgias por médiuns, o que, na prática, equivale a uma dispensa do diploma de médico. Etc.

Que os espíritos nos orientem sobre questões de foro íntimo ou, então, tal como no caso do profeta Daniel, nos apontem as razões - visíveis para todos - que possam nortear nossas decisões prudentes.

 

 

 

Reflexões sobre o Fundamento
Prudencial da Atividade Jurídica

(comentários à conferência do Prof. Jean Lauand)

 

Mauro de Medeiros Keller
Procurador do Estado de São Paulo.
Mestre em Filosofia do Direito (FADUSP).
Doutorando em Filosofia da Educação (FEUSP).
Professor de Direito Civil do Federal Concursos.

 

Bem percebemos, como juristas, o quanto as considerações que acabamos de ouvir, sobre o papel transcendental da virtude da prudência, têm a ver com as atividades que escolhemos como nosso múnus profissional. Basta, apenas para mencionar um dos vários aspectos destacados na aula do Prof. Jean Lauand, até que ponto somos tentados diuturnamente a contornar nossas responsabilidades como operadores do direito (o que deveria significar o mesmo que “servidores da justiça”, no sentido mais amplo da expressão), em prol de uma aplicação mecânica de dispositivos legais editados e postos em vigor por quem “já decidiu, antes, por nós”. Estou convencido de que só entenderemos realmente o que representa a prudência no âmbito do direito se formos capazes de operar uma mudança radical de paradigma epistemológico: se abandonarmos o modelo normativo como eixo para a compreensão do fenômeno jurídico, para adotarmos a decisão como o lugar privilegiado a partir do qual tudo o mais deve encontrar o seu sentido, sem com isso resvalarmos para um decisionismo voluntarista e isento de qualquer referência intelectual. É verdade que ao longo do século XX, não poucos filósofos procuraram fazê-lo, de um modo ou de outro. Lembremo-nos, dentre muitos, dos nomes de Chaïm Perelman e a Escola Retórica de Bruxelas, Theodor Viehweg e a “tópica jurídica”, Recaséns Siches e a “lógica do razoável”. Foram e são esforços luminosos e ainda fecundantes para libertar o jurista das amarras do paradigma normativo. Creio, todavia, que em todas essas ousadas posturas metodológicas faltou uma articulação consistente com o conceito clássico de prudência, tal como desenvolvido, sobretudo, por Aristóteles e Santo Tomás de Aquino.

Com efeito, faz-se mister, antes de todo o mais, considerar o direito como algo vinculado, necessariamente, ao conceito de justiça. É pela mediação da justiça que o direito reporta-se à prudência como a capacidade mediante a qual se opera o seu achamento. Não há direito e o direito não se compreende senão no âmbito da justiça, razão pela qual, a rigor, representa uma contradição a idéia de um direito injusto. Ora, uma vez que, identicamente, não há justiça sem prudência, tem-se que não pode haver direito, ou melhor, não pode haver descoberta ou achamento do direito, que dispense a referência ao agir prudencial. Que a essa tarefa de se achar o direito esteja reservado o nome de arte jurídica, trata-se de um dado que não nos deve enganar sobre o caráter eminentemente prudencial e não técnico do afazer do jurista. A ars boni et aequi, a ars cognoscendi quid justum est é tomada em sentido analógico e impróprio, em parte por força da tradição - especialmente platônica - que sempre esforçou-se por entender o universo moral a partir de analogias técnicas -, em parte pela real proximidade entre a atividade jurídica e a arte, decorrente do específico caráter do meio-termo próprio da justiça, que não se encontra no agente, mas nas obras.

A arte do justo não se baseia num conhecimento dedutivo, científico, certo. Reportando-se a Tomás de Aquino, o grande jusfilósofo francês Michel Villey não se cansava de recordar que o juízo como atividade jurídica (juízo deriva de judicium) “é o ato do juiz que jus dicit, que diz o que ele reconheceu constituir o direito - e que procede ao mesmo tempo do amor à justiça e de uma faculdade intelectual ou virtus intellectiva, a prudência” (“Le Droit dans les Choses”, in “Controverses autour de l’Ontologie du Droit”, de VVAA, Paris: PUF, 1989, pág. 19).

Villey demonstra-o de diversos modos. Em primeiro lugar, não convém à prudência exercer-se solitariamente. É sua parte integrante a docilidade, que significa a capacidade de deixar-se instruir fazendo calar o próprio interesse, que renuncia a refugiar-se estupidamente na absurda autarquia dum saber fictício (cfr., a respeito, Josef Pieper, “Virtudes Fundamentais”, Lisboa: Aster, 1960, pág. 26). O homem prudente não dispensa o conselho dos prudentes, embora saiba o quão insubstituível, sua própria, incomunicável é a decisão que tomará. Assim nos afazares do direito: o direito é uma relação entre muitos homens; nenhuma das partes num processo detém a exclusividade da solução justa. “A primeira regra do procedimento judicial é escutar as duas partes, aqueles que as defendem e outros que, a título de jurisconsultos, possam oferecer um conselho apropriado” (Michel Villey, op. cit., pág. 20).

Por outro lado, à prudência, como virtude do singular e do contingente, pertence esse tratamento dos casos particulares, esse procedimento tateante, controversial, que confronta pontos de vista adversos com o objetivo de encontrar a solução justa. Ao reconhecimento desse fato - o caráter essencial, radical da juris-prudência para a vida jurídica deve o direito romano sua magnitude. “Os juristas romanos lhe atribuíam [à jurisprudência] o papel primordial na gênese de seu direito. Há um texto do Digesto que especifica que nas origens - e na ausência de qualquer lei escrita - os seus verdadeiros autores foram os jurisprudentes. A jurisprudência representou para os romanos o berço do direito. Creio que continua sendo verdadeiro no séc. XX quanto aos setores dinâmicos do direito. Ao menos onde o sentido da palavra não foi falsificado, onde ela não desviou-se para o papel de serva da lei estática, onde ela permaneceu conhecimento dos casos, isto é, do direito nas coisas” (id., ibid.).

Cobram assim particular relevo as observações que Michel Villey, Hans-Georg Gadamer e tantos outros têm feito, em nossos dias, sobre o caráter necessariamente diverso e móvel do direito natural, dentro da mais genuína tradição aristotélica. Existem regras jurídicas que são convencionais, mas existem também muitas que não se encontram sujeitas ao arbítrio da convenção humana porque a natureza da coisa não cessa de se impor. Essa natureza, enquanto objeto do exercício da virtude da justiça, é o próprio o direito, o direito que naturalmente impõe-se à realização da justiça. A bem dizer, não há regras jurídicas absolutamente sujeitas ao arbítrio de uma convenção. Em todas, ainda que fracamente, a natureza da coisa faz-se sentir. Apenas na medida em que o quid de natureza da coisa não é violentado é que se pode falar de um direito (justum, dikaion) também relativamente àquelas coisas atribuídas aos homens por convenção. É nesse sentido que se diz que qualquer direito, também do lado da natureza, é variável.

Ora, consoante pondera Gadamer, isto torna extremamente problemática a tarefa de se assimilar à distribuição da justiça o conceito de aplicação, que tão bem se utiliza quando se fala de uma aplicação de conhecimentos técnicos: “A reflexão nos ensina que a aplicação das leis contém uma problematicidade própria do domínio jurídico. Em comparação, a situação do artesão é inteiramente outra. Dispondo do projeto da coisa e das regras para produzi-la passando à execução, ele se pode ver forçado a se adaptar às circunstâncias e dados concretos, ou seja, a renunciar a executar o seu projeto exatamente do modo como o havia primitivamente concebido. Mas uma tal renúncia não significa de modo algum esteja sendo aperfeiçoado o saber daquilo que ele procura executar. Pelo contrário, ele se limita a simples restrições no curso da execução. Neste sentido, trata-se verdadeiramente de uma aplicação do seu saber, embora sofrendo a dolorosa imperfeição que lhe é inseparável” (“Vérité et Methode”; Paris: Seuil, 1983, pág. 159). Totalmente diversa é a situação de quem se vê na contingência de resolver uma pendência judicial ou baixar um ato administrativo, com vistas a aplicar a lei. Certamente ele terá, no caso concreto, de atenuar-lhe o rigor. “Mas - salienta Gadamer com grande perspicácia -, se ele assim o faz, não é por falta de melhor alternativa, mas porque, de outro modo, não estaria sendo justo. Ao atenuar a lei, ele não dá lugar a uma restrição ao direito, mas ao contrário descobre um direito melhor” (id., ibid, pág. 160). Enquanto no domínio da arte a adaptação à realidade origina um minus, comparado ao saber (projeto) do artista, no domínio dos afazeres jurídicos dá-se exatamente o oposto: dessa adaptação deriva um plus ao saber (conhecimento das leis e precedentes) do jurista.

O saber do jurista não pode ser, assim, de cunho técnico - ou, com maioria de razão, científico ou filosófico. Viu-o perfeitamente Aristóteles quando trouxe a lume a noção de epikeia (eqüidade) (“Ética a Nicômaco”, V, 14). E é também por aqui que se entendem os malabarismos de que se servem os juristas quando interpretam os conceitos e normas legais: ora lhes conferem um maior, ora lhes outorgam um menor elastério, ora estabelecem uma antinomia entre a regra dada e um princípio explícito ou implícito da Constituição, ora postulam que para a hipótese não há disposição direta, por vislumbrarem a existência de uma lacuna, ora assumem que a regra não mais está em vigor, ora que ainda está, etc. O que aos olhos do leigo pode parecer o exercício mais escancarado do capricho e do jogo dos interesses humanos, deve, ao reverso, ser considerado como a própria maneira de ser da atividade jurídica, radicalmente prudencial, essa incessante procura, pelos operadores do direito (em especial pelo mais emblemático de todos, o juiz) da decisão justa, para tanto libertando-se, pelos meios mais adequados à sua disposição, da camisa-de-força que outros (por meio das leis, dos precedentes) lhes pretenderam impor.

A realidade jurídica, a vida do direito está composta de situações individuais, históricas, irredutíveis portanto umas às outras. Se a teoria jurídica tem como objeto esta especial realidade, terá de encontrar o modo de alcançá-la em sua dimensão mais característica. O longo esforço do pensamento jurídico em introduzir em sua própria constituição uma dimensão individualizadora, levado a cabo com tantas vacilações, com tentativas da mais diversa índole, manifesta com grande clareza esta especialíssima condição do direito.

Por conseguinte – adotando-se a classificação aristotélica das cinco virtudes intelectuais ou dianoéticas (ciência, sabedoria filosófica, intelecto dos primeiros princípios, arte e prudência) –, somos levados a concluir que, se o saber do jurista não é do tipo científico, filosófico, sinderético (de sindérese, intelecto dos primeiros princípios da razão prática) ou técnico, resta que o seja do tipo prudencial. Dikastiké phrónesis, prudência judicial (ou jurídica): assim o denominou Aristóteles (id., ibid., VI, 8 – 1141b, 29).

Mas uma questão (a título de objeção) que se pode levantar é a seguinte: se na realização da justiça, que tem por objeto a obtenção do direito, em sentido estrito (dikáion) o que importa é o que objetivamente está determinado, não tendo qualquer relevância as boas disposições daquele que age, não há necessidade de recorrermos à prudência, pois a determinação deste direito, objetivo, poderia mais seguramente ser fixada a nível institucional, prévio e fundante da decisão daquele que age. Se o que importa é o objetivo, não o subjetivo, se é o justo em si, e não o bem de quem julga, para quê recorrer-se à prudência? Não é certo que muitas decisões justas são tomadas não porque quem as toma é virtuoso e prudente, mas porque teme as consequências para si de uma atuação em contrário?

Em verdade, convém salientar que a decisão justa, correta, não é justa porque é justo quem a toma, mas porque, prudentemente, prudencialmente, soube-se fixar o meio-termo. Ora, o justo (dikaion) é objetivo. Em si, tem um valor que não depende das intenções subjetivas de quem o realiza. Todavia, quem o realiza jamais poderá habitualmente acertá-lo sem as intenções retas, que condicionam o bom exercício da prudência. A institucionalização pode apontar, a esse respeito, para uma solução, mas não tem força para dispensar o julgador do esforço de almejar a consecução da justiça, a descoberta do dikaion no concreto, e de forma habitual.

Parte das confusões que se criaram a respeito deve-se, não pode haver dúvida, ao diferente modo de relacionamento entre a justiça e a prudência, frente ao que há entre esta última, de um lado, e as demais virtudes morais (basicamente, a fortaleza e a temperança), de outro. A diferença está em que, mesmo de fora, pode-se discernir o que é objetivamente justo ou injusto, ao passo que não tem sentido investigar o que é objetivamente corajoso ou covarde, comedido ou desregrado.

O cumprimento da justiça realiza-se principalmente num ato exterior. No domínio do justo e do injusto, o que importa é ação externa do homem. “Pelo contrário, no domínio da fortaleza e da temperança, é preciso atender primeiro ao estado íntimo do homem e só em segundo lugar à sua projeção exterior. Só através daquilo que um homem realiza de visível não posso eu dizer se ele é corajoso, covarde, comedido, desregrado; necessita de o conhecer já, teria de saber como é que ele próprio se sente. A justiça dum ato, porém, pode mesmo uma terceira pessoa verificá-la de fora. Quanto vinho me é permitido beber sem lesar a virtude da temperança - isso é que um estranho dificilmente poderá determinar. Mas é muito fácil a qualquer um determinar objetivamente quanto devo pagar ao hospedeiro” (Josef Pieper, op. cit. págs. 90/91).

Esta propriedade da justiça tem a mais íntima conexão com o fato de ela ser essencialmente uma relação com o outro. Ora, só mediante um ato exterior é que o outro fica a possuir aquilo que é seu. “E esta é também a razão por que, no domínio da justiça, o bem e o mal são julgados somente em função do próprio ato, sem importar a maneira como ele se relaciona com o estado íntimo do sujeito: o bem e o mal na verdade, não dependem da concordância do ato com o seu autor, mas da concordância do ato com o outro” (id., ibid., pág. 91).

Por onde se pode explicar que, não obstante o caráter essencialmente mutável e contingente do objeto da prudência, quando o agir prudencial volta-se para a realização de atos de justiça, tem-se que os deveres a eles inerentes mostram-se os mais independentes das mudanças de situação, tornando a efetivação da justiça a mais suscetível, aproximadamente, de ser determinada de uma vez para sempre. Em suma: a justiça, de todas as virtudes morais, é a que mais convém com a arte, é a parte da dimensão ou domínio da prudência que mais se aproxima da arte.

Por esta razão, não faz sentido algum criticar-se a fundamentação prudencial do direito com base no argumento de que se estaria dando entrada ao absolutismo da decisão, a um anarquismo derivado de um certo situacionismo ético e jurídico. Sem dúvida, o grande erro do situacionismo consiste em que ele nega a fundamental abertura da prudência ao mundo das normas universais, e pensar que entre um e outro não há continuidade alguma, como se essa continuidade significasse necessariamente uma aplicação (no sentido gadameriano), mecânica e dedutiva das normas gerais aos casos singulares. Como observou o estudioso espanhol Martínez Doral – numa obra sugestivamente intitulada “A Estrutura do Conhecimento Jurídico” –, “a doutrina da prudência faz-nos ver, pelo contrário, que se entre esses dois mundos não há efetivamente uma continuidade lógica e a passagem de uma para a outra supõe necessariamente o salto da prudência ( e portanto, a intervenção de uma pessoa), há, no entanto, entre ambos uma continuidade real, que permite dar à decisão subjetiva da prudência um fundamento objetivo... A prudência acaba na resolução concreta para uma situação particular, mas esta resolução se toma, não somente em função da situação, mas em função de regras e princípios universais” (“La Estructura del Conocimiento Jurídico”, Pamplona: EUNSA, 1960, pág. 111).

A prudência de modo algum significa arbítrio. Não se pode, a esta altura, deixar-se de fazer uma menção, ainda que muito breve, aos seus requisitos (chamados pela tradição partes integrantes). Toda a questão 49 da “Secunda Secundae”, ou seja da segunda grande divisão da Segunda Parte da Suma Teológica, de Tomás de Aquino, é dedicada ao exame desses oito requisitos. A prudência é um conhecimento que por sua índole especial requer informação do passado e visão do presente: Em suma, requer memória e inteligência (no sentido específico, sinônimo aproximadamente de intuição). Este conhecimento é adquirido das duas únicas formas como nos é  acessível o conjunto das coisas: ou por tradição ou por invenção. Daí decorrem dois outros requisitos para a prudência: a docilidade e a solércia ou agilidade mental para pesquisa própria. Não basta porém o conhecimento e a sua requisição. Urge também usar habilmente o conhecimento adquirido: donde a necessidade de contarmos com um razão industriosa. Estes cinco requisitos preenchem as exigências da prudência em sua dimensão cognoscitiva. Mas como a dimensão essencial da prudência é preceptiva (dos três atos próprios desta virtude, a saber: deliberação, juízo e decisão, é o último que performa o agir prudencial), a razão requer outras três coisas: ordenar as ações ao fim, atender às circunstâncias e evitar os obstáculos. A elas correspondem os três últimos requisitos da prudência: providência, circunspecção e cautela.

Se algum desses requisitos falha ou revela-se insuficiente, diminuem-se as chances de que uma decisão a ser tomada possa ser qualificada como prudente. Nesse contexto, as normas e os precedentes desempenham um papel insubstituível para o homem prudente, sobretudo quando as suas resoluções dizem respeito à distribuição da justiça: a) permitem que as decisões sejam tomadas com cautela e providência, levado em consideração o conjunto de consequências já verificadas com base nesta ou naquela interpretação da norma ou precedente; b) indicam uma orientação fundamental de permanência, base da estabilidade das relações jurídicas, que, atendidas outras circunstâncias, é um fator que sempre deve ser tomado em conta; c) indicam uma vontade política que também precisa ser sopesada, vontade essa proveniente de um órgão ou setor do Estado (Legislativo, tribunais superiores) relativamente ao qual pode-se presumir encontrar-se dotado de melhores condições para avaliar o alcance que suas formulações ou interpretações possam ter com vistas a garantir o bem comum; d) educam o jurisprudente quanto a vários domínios das relações sociais estruturados em instituições jurídicas e o orientam a buscar soluções com maior facilidade pelo acréscimo de informações a respeito da questão a que visa elucidar (é aqui que o sentido de tradição, em toda a sua força, faz-se perceber mais intensamente, e com maior amplitude demanda ao jurisprudente os requisitos da docilidade e da memória).

É deste modo que, para a efetivação do justo, especial relevo apresenta a casuística, aquilo que, em virtude do empobrecimento do seu significado, chamamos habitualmente de jurisprudência.

A casuística, ensina Martínez Doral, “é uma doutrina, um conjunto inteligível de enunciados válidos em geral, ainda que se refiram a casos particulares...O juízo da casuística ainda é especulativo, permanece por necessidade no plano do inconcreto e não tolera de nenhum modo ser confundido com o juízo imediatamente prático da prudência” (id., ibid., pág. 97). Aqui é onde se mostra a fecundidade deste procedimento mental no conhecimento jurídico. Se este em última instância dirige-se à realidade efetiva que se visa regular, a maior proximidade da casuística a essa realidade efetiva - a meio caminho entre as conclusões teóricas da ciência e a decisão imediatamente ativa da prudência - pode facilitar o trânsito entre ambos os domínios e preparar de um modo mais seguro a determinação prudencial.

A prudência, porém, não devemos esquecer jamais, também no jurídico é a única regra imediata da ação concreta. A casuística, ainda que de modo muito mais intenso que as leis, não pode senão fornecer-lhe subsídios. Daí que o jurista mais familiarizado com os métodos do casuísmo possa restar desconcertado diante de uma situação da vida. “Daí também os catastróficos resultados que em algumas ocasiões podem ter lugar, devidos a um apelo indiscriminado à técnica, quando o de que se trata é a criação ou aplicação do direito. Com efeito, a aproximação dessas funções ao procedimento da técnica e o seu afastamento da esfera da prudência significam uma renúncia sistemática em captar a novidade da situação que se deve regular e o recurso apressado às fórmulas e receitas que tiveram êxito em situações análogas. Se levarmos em conta aquela particularidade da justiça pela qual ela é independente em máximo grau da mudança das situações e suscetível de ser determinada de uma vez para sempre, teremos de reconhecer que aquele procedimento pode levar consigo, em numerosas ocasiões, a realização da justiça. Mas se recordarmos que só à prudência, que nada mais além dela, corresponde o ofício de emitir uma decisão reta sobre a matéria concreta, que nos diga como devemos agir agora, compreenderemos até que ponto em outras ocasiões, também numerosas, a pura técnica criadora ou aplicadora do direito pode chegar efetivamente a resultados catastróficos” (ibid., págs. 97/98).

O que vale, sempre será, em última análise, o valor ético - com toda a força da palavra - daquele que está chamado a proferir as decisões justas, a enunciar o direito, jus dicere: o juris-prudente.

O caminho seguro para a humanização do direito não será por conseguinte, o do simples incremento de acesso ao conhecimento possibilitado pela informática, o da seleção dos mais inteligentes ou mais eruditos para as funções jurisdicionais ou o da simplificação das leis e normas em geral. Isto e muito mais que se poderia sugerir não seriam senão meros paliativos se fossem desacompanhados da prudência dos homens prudentes.

Resgatar plenamente o significado primeiro do clássico vocábulo jurisprudência, tornando-o vivo como nos melhores tempos do velho e tão atual direito romano: parece ser esta uma parte importante da tarefa que compete aos que se empenham, como juristas, em contribuir na luta contra aquele primado incondicional da poiesis e da tekné, da produção e da técnica, e que tanto ameaça reduzir a realidade a simples material de trabalho, essência definitiva de um materialismo desumanizador.



[1] . Pieper desenvolve essa tese principalmente nas introduções a cada virtude. Por exemplo: "(A verdade moral e também a verdade em geral) perde não só sua força conquistadora, mas também seu poder de divulgação, se não for regenerada incessantemente em seu sentido autêntico. E esta regeneração contínua realiza-se pela força incisiva da palavra viva. Daí a grande responsabilidade - que sempre acompanha o poder - para com a verdade dos que comunicam: podem anunciar a verdade ou desvirtuá-la" (pp. 211-212 da edição portuguesa: Virtudes Fundamentais, Aster, Lisboa, 1960.).

[2] . Na verdade, Tomás fala de partes quasi integrais, "ad similitudinem partium integralium": a virtude, uma qualidade simples, não admite partes integrais em sentido próprio, pois não se trata de sua entidade, mas de funções (cfr. I-II,54,4).

[3] . Enquanto aportação dos princípios universais ao caso particular. Assim (ad 1), a inteligência não só conhece os princípios especulativos ou práticos (como "não se deve fazer mal a ninguém"), mas se estende ao caso concreto presente e, neste sentido, é parte da prudência.

[4] . Como apontávamos, curiosamente, a prudentia, virtude da decisão, converteu-se na atual "prudência" indecisa...

[5] . DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os Irmãos Karamázovi São Paulo, Ouro, s.d., p. 226.

[6] . Ibidem, p. 225.

[7] . Ibidem, p. 224.

[8] . Ergo prudentia non inest nobis a natura sed ex doctrina et experimento (II-II,47,15,sed contra).

[9] . Em II-II 47,16, Santo Tomás discute se a prudência pode se perder por esquecimento. E afirma que sendo apetitiva (e não só cognoscitiva...), não se perde diretamente (non directe) a prudência por esquecimento, mas conclui: "O esquecimento, no entanto, pode impedir a prudência, pois esta para preceituar, precisa de conhecimento e este, sim, pode ser esquecido".

[10] . Saber de cor, com o coração, by heart, par coeur.

[11] . PIEPER, Josef  Das Viergespann, München, Kösel, 1964, p. 29.

[12] . PIEPER, Josef Virtudes Fundamentais, Lisboa, Aster, 1960, p. 26.