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Entrevista Julián Marías
Perspectivas da Filosofia, hoje

Entrevista a Jean Lauand, com participação dos profesores Mario Sproviero y Elian Lucci - Madrid, 8-4-98. Tradução: Mario Sproviero.

 


JL:
Como o Sr. vê a atual situação do pensamento filosófico? A que temas vem se dedicando ultimamente?

JM: Eu penso que o pensamento, de um ponto de vista social geral, não está em boa situação. E a maior parte do que se diz e do que se publica não tem – parece-me – muito que ver com a filosofia.

     Eu continuo pensando na mesma linha de há tantos anos e publiquei uma série de livros nos últimos tempos: talvez partindo de Antro-pologia Metafísica, que é de 1970, todos os livros que escrevi desde então são uma exploração da realidade do que é a vida humana, so-bretudo o núcleo pessoal: a idéia de pessoa. Penso ter avançado mais nessa linha, os últimos livros: Razón de la Filosofía, Mapa del Mundo Personal, Tratado de lo mejor e, finalmente, Persona - um pequeno livro que é o último de filosofia que publiquei – eu en-tendo que são tentativas de exploração do que é a realidade pessoal, que cada vez mais me parece distinta das coisas.

     Precisamente o que me preocupa é a tendência existente de recair no pensamento de coisas – na coisificação – de esquecer a condição totalmente distinta da pessoa como realidade dramática, projetiva, que consiste em grande parte na irrealidade, que é real e irreal de uma só vez, e que portanto não é coisa. Isto é o que me tem preo-cupado... entendo que o pensamento atual, já preparado pela histó-ria, pela teoria da vida humana como tal, tem avançado sensivel-mente neste últimos tempos. Eu me proponho continuar – enquanto tiver vida e lucidez... – a fazer isto.

JL: E que cursos o Sr. está dando atualmente?

JM: Atualmente estou dando dois cursos – todos os anos dou dois cursos simultâneos -, cursos de conferências (longos cursos de vinte ou vinte e cinco conferências cada um) e neste ano estou dando dois, bem diferentes quanto ao assunto: um deles se intitula: "A Es-panha possível do século XXI" que é um exame – analisando o pre-sente – de que possibilidades (e de que dificuldades e riscos...) há para a Espanha nos próximos anos. O outro chama-se: "A perspec-tiva cristã" que é um curso – já o estou terminando, faltam-me pou-cas conferências – em que trato de determinar como o homem que sofreu a influência do cristianismo vê a realidade, não me refiro so-mente a quem tenha fé, aos realmente cristãos, mas aos que nasce-ram e se formaram nos países condicionados pelo cristianismo, quer dizer: Europa, América, todo o Ocidente e mais alguns países que receberam essa influência geral. Quer dizer, são pessoas que rece-beram uma visão da realidade com um repertório de crenças e de conceitos que os tornam diferentes dos outros. E eu estou tratando de analisar em que consiste isto.

JL: Onde ocorrem estas conferências e que interesse têm despertado?

JM: É notável o interesse junto ao público: há em cada conferência bem mais do que trezentas pessoas. As de "Espanha – século XXI", ministro-as no Instituto de España, instituição que reúne todas as Reais Academias; o outro curso dou-o no Colegio Libre de Eméri-tos, fundação privada, e dou-o no Centro Conde Duque, onde preci-samente ocorrem problemas todos os dias pois permitem, por razões de segurança, somente as pessoas que podem assistir sentadas, pou-co mais de trezentas. E há mais interessados, porém não os deixam entrar, e isto provoca irritação nessas pessoas barradas. É interes-sante: este curso tem uma referência direta ao cristianismo - ainda que não contemple somente aqueles que realmente têm fé porque os outros também estão submetidos ao influxo intelectual da visão da realidade que o cristianismo condiciona. Por outra parte, eu acabo de publicar um livro que se intitula Sobre el Cristianismo, livro de ensaios em que reúno escritos de várias épocas e que teve uma acei-tação muito boa, posto que se publicou há um par de meses e já saí-ram duas edições, o que significa que há um público que se interessa por estas questões.

     Por isso eu creio que afinal – ainda que se fale muito de crise da re-ligião e evidentemente a há, como há uma crise de vocações sacer-dotais e há muita gente que diz que não é religiosa (porém há mui-tas pessoas também que o são e outras que não sendo plenamente religiosas, interessam-se por esses problemas) – eu creio que há aí um campo interessante e que, para mim, é particularmente importante.

JL: Naturalmente pode-se estabelecer uma relação entre o cristianismo e o conceito de pessoa de que o Sr. falava antes.

JM: Justamente. Parece-me que é isto o que ocorre: o cristianismo consiste precisamente na interpretação pessoal do homem. O cris-tianismo é a visão pessoal do homem e indubitavilmente de Deus. O que é curioso neste caso é que pelo peso da influência sobre o pen-samento cristão – especialmente o teológico – de um pensamento grego – não cristão, pré-cristão – centrado em alguns conceitos que são naturais – conceitos como substância, causa, essência, natureza etc. – não se pensou suficientemente a realidade pessoal no cristia-nismo. E o que parece mais interessante é que é justamente o pensa-mento atual que está descobrindo os métodos para indagar o que é a pessoa, o que é a vida humana como tal e isto é o que vai permitir colocar realmente e de maneira adequada o problema do cristianis-mo em termos intelectuais. E creio que poderia haver até um renas-cimento da teologia em uma perspectiva bem nova, que se encontra em alguns momentos – é evidente por exemplo - sei lá... – que em S. Agostinho ou em Ricardo de São Vítor ou em Santo Anselmo – há uma aproximação, há certos vislumbres, há a idéia de interpretar Deus partindo do que o homem nos ensina: afinal é o que parece ra-zoável, se o homem está criado à imagem e semelhança de Deus, parece adequado partir da imagem para entender o modelo e não partir das coisas, que estão mais distantes.

     De modo que penso ser este o caminho pelo qual possa haver um avanço muito importante em filosofia e, por outra parte, uma apro-ximação ao pensamento teológico, o que seria também muito im-portante.

JL: Porém, como vê em nosso tempo o tema do respeito, da consideração à pessoa? Temos realmente progredido nisso?

JM: Parece-me que há uma consciência de que isso deva ser assim. Na prática não é muito real e há evidentemente desprezo da pessoa, há violações dos direitos da pessoa, há por vezes as maiores vio-lências contra as pessoas, porém há consciência de que isso não de-ve ser assim, há consciência de que há deveres particulares... Há um ponto que me parece interessante: emprega-se agora tanto a palavra "direito", mas não se usa nunca a palavra "dever". Por exemplo, quando se fala dos "direitos humanos", eu digo: isto é pleonasmo, não há mais direitos do que os humanos, não há outros. Quando fa-lam... por exemplo, às vezes há pessoas que falam dos direitos dos animais, eu digo: os animais não têm direitos, temos deveres para com os animais, que é coisa muito diferente. Também temos de-veres para com as coisas: eu não posso queimar um quadro valioso ou destruir um edifício valioso: não é que tenham direitos, é que eu tenho deveres para com eles. Para com os animais também tenho deveres, não é que eles tenham direitos. Mas evita-se falar em de-veres... Porém, há consciência como há, por exemplo, um senti-mento positivo – creio que é um avanço – de uma certa solidarieda-de, pelo menos teórica. Quer dizer, pensa-se que aquilo que anda mal no mundo – por exemplo, o sofrimento – em qualquer parte do mundo nos afeta, nos deva importar. As pessoas não estão se preo-cupando propriamente apenas do que está próximo; temos cons-ciência de que também nos afeta o distante. Isto pode levar também a uma hiprocrisia: a de ocupar-se do "próximo distante". "Próximo" quer dizer vizinho, porém há muitos que querem fazer grandes coi-sas em países remotos dos quais nada sabem... Eu creio que se deve começar por quem está a nosso lado, pelo próximo: se cada um tra-tasse de contribuir para a felicidade de algumas pessoas concretas que tem a seu alcance, isto é real, isto se pode fazer e o mundo an-daria bem melhor. Porém, em todo caso, também é bom esse senti-mento, digamos de solidariedade geral, de que o que ocorre aos ho-mens em qualquer parte, de certo modo ocorre também a nós...

JL: E como vê a particular vocação da Espanha para o mundo de hoje e do futuro próximo?

JM: Eu creio que o pensamento espanhol do século XX foi muito criador. A cultura espanhola pode até não ter um volume tão grande como outras, porém desde o início do século, desde a geração que chamamos "de 98", alcançou-se o auge, os píncaros, chegou-se tal-vez a figuras tão importantes como as de qualquer outra parte. Pro-vavelmente o destaque em conjunto não seja tanto como nos três ou quatro países mais criadores de cultura, porém, tem sido um país muito inovador, com um caráter novo, um caráter que me parece importante: houve um talento literário nos pensadores espanhóis que fez com que tivessem grande capacidade de comunicação. Creio que isto fez com que muita gente se interessasse, e há um fato que a mim surpreende: que as vendas de livros de pensamento na Espanha sejam maiores do que no resto da Europa – ninguém sabe disso na Espanha e quando eu digo não acreditam, porém é verdade. Como exemplo – sei lá... – os últimos dois livros filosóficos que pu-bliquei, em cinco ou seis meses, tiveram três edições cada um: isto não costuma acontecer em outros países. Quer dizer, lê-se mais do que em outros países da Europa. Por que? Porque não nos lêem so-mente os profissionais; lêem-nos as pessoas cultivadas de qualquer campo que tenham interesse, que simpatizem. Se se dá um curso fi-losófico, também há uma quantidade muito grande de assistentes, como acabei de dizer-lhe.

JL: E a que característica particularmente espanhola corresponde este fato?

JM: À do pensamento vivo. Um pensamento além do mais com uma expressão literária muito valiosa, que faz com que os livros de pensamento sejam livros, livros legíveis e não meros tratados mais ou menos vagos ou abstratos. Neste sentido, creio que o pensamen-to espanhol pode ser um fermento que estimule o retorno do pensa-mento teórico que anda muito comprometido em quase todas as par-tes.

     Por outro lado, a Espanha tem uma posição interessante: é um país europeu, um dos países criadores da Europa (há quem fale de en-trada da Espanha na Europa por entrar nas instituições européias; mas como vai entrar na Europa se já estava antes?). E além disso, a Espanha tem uma vinculação radical com a América: pois um es-panhol não é tal a não ser que conheça a América, a América His-pânica, a América Ibérica se se quiser, dá na mesma (Hispânica e Ibérica é o mesmo: um é termo grego, outro, latino) e aí deve-se in-cluir Portugal e também o Brasil – isto forma uma realidade total.

     Então temos que a Espanha possui dupla vinculação: a vinculação européia, de um lado, e a vinculação americana, de outro; quer di-zer, está formando parte do Ocidente enquanto tal e é realidade in-tegrante do Ocidente. Eu digo às vezes que a certidão de nasci-mento do Ocidente encontra-se no texto dos Atos dos Apóstolos em que se narra que vão açoitar São Paulo. E ele protesta e diz: "não me podem açoitar porque sou cidadão romano". E então o centurião diz: "Bem, para mim esta cidadania custou muito dinheiro". Ao que São Paulo replica: "pois eu a tenho por nascimento". É um judeu, um judeu helenizado, de cultura e língua grega, cidadão romano, cristão: isto é o Ocidente. E esta passagem dos Atos dos Apóstolos é a ata de nascimento do Ocidente. A Espanha é um país radicalmente ocidental porque não pode renunciar à Europa nem pode renunciar à vinculação com a América. E isto pode ser atualmente um fator de amplitude, de abrir-se a todo tipo de estímulos e influências.

JL: A propósito disso e do curso que o Sr. está dando ("A perspec-tiva cristã"), que pontos lhe parece importante destacar.

JM: Bem, eu tenho falado das origens, da vinculação com a tradi-ção hebraica e com o pensamento grego, porém depois me concen-trei sobretudo na análise dos conceitos fundamentais: o mono-teísmo, o sentido da Trindade etc. E o caráter – para mim decisivo – de Deus como amor. Quando o cristianismo se formaliza, quando diz o que Deus é, diz que é amor. E portanto eu penso que a idéia do homem quando criado à imagem e semelhança de Deus não in-dica primariamente o caráter intelectual ou o caráter racional (claro que estão incluídos...), mas primordialmente o homem como cria-tura amorosa, que me parece sua característica capital. E evidente-mente toda uma série de explorações que estou fazendo: por exem-plo, falei das infidelidades cristãs ao cristianismo (que são bastantes na história...) e dos motivos de hostilidade externa ao cristianismo que se produziram especialmente nos últimos séculos (claro que na Antigüidade, mas também nos últimos séculos... ).

     O cristianismo por vezes renunciou de um lado a esse caráter amo-roso e, de outro, ao caráter propriamente pessoal. Às vezes deixou-se levar por considerações institucionais ou jurídicas (que podem ser legítimas, mas que são secundárias) e esqueceu o caráter amo-roso. Por exemplo, penso no espírito inquisitorial, que foi algo gra-víssimo, que ocorreu historicamente e que foi uma mancha no cris-tianismo (e não só do cristianismo, tem havido inquisições em todas as partes, mas enfim também no cristianismo). Penso como isso foi possível numa religião que diz: Deus não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva. Como é conciliável com a atitude, por exemplo de Cristo que é de perdoar os pecadores, como no caso da mulher adúltera e de tantos mais...? É a isto que corresponde o espí-rito cristão e a isto não pode faltar o cristianismo. É evidente que o caráter universal, a catolicidade está na própria índole do cristia-nismo – não é apenas o Deus de Israel, o Deus de um povo escolhi-do; é algo que se abre a todo o homem... – evidentemente isto eli-mina toda possibilidade de racismo, de considerações de que haja povos inferiores enquanto tais (pode ser inferior cada homem, será inferior sua conduta ou serão inferiorizados historicamente – isto, sim, ocorre -, mas não por uma condição intrínseca). São infideli-dades que ocorreram como houve também, é claro, contágios de ideologias que vão contra sua natureza própria: é evidente que prin-cipalmente desde o século XVIII houve um afastamento desta con-dição pessoal e o reducionismo que tratou de reduzir o homem à coisa: reduzir o pessoal ao orgânico (ou ao inorgânico...) que foi por exemplo contrário a algo primordial no cristianismo: a liberdade. Todo determinismo - não importa se teológico, biológico, econô-mico, social ou político -, contraria a liberdade própria do cristianis-mo. Tudo isso são infidelidades que tem ocorrido...

Continua