Home | Novidades | Revistas | Nossos Livros | Links Amigos Viver do silêncio
Josef Pieper (trad.: Henrique Elfes)
"A infelicidade de um homem começa com a
incapacidade de estar a sós, consigo mesmo, num quarto" (Pascal).
Só quem cala ouve.
Se alguém me perguntasse pelas regras fundamentais da vida intelectual e da vida espiritual, antes de mais nada dar-lhe-ia essa frase para meditar.
À primeira vista, é um lugar-comum: é óbvio que não se pode simultaneamente falar e ouvir o que diz outra pessoa. No entanto, essa sentença vai além do âmbito meramente "acústico". Trata-se de algo mais do que simplesmente calar a boca: também no relacionamento normal com os homens exige-se um Silêncio mais profundo - caso deva a palavra do outro verdadeiramente alcançar-nos; mais ainda, caso deva atingir-nos o coração o grito de socorro talvez completamente mudo de uma pessoa. Já para isso vale o dito antigo: "Calar e ouvir é o mais pesado dos trabalhos".
Mas esse pensamento chega ainda mais perto da existência: aponta como que para um nível mais profundo. Pois a palavra "entendimento" deriva de "entender" ( [1] ). Por "entender" (ouvir) se abrangem todas as formas de captar a realidade: ouvir tanto quanto ver, e toda espécie de compreensão e intuição.
Tudo isto - é o que afirma a frase: "Só quem cala, ouve" - só se realiza sob a condição de calarmos; também (e especialmente) quando se está "a sós, consigo mesmo, num quarto" e nenhuma palavra de um parceiro humano nos reclama a atenção.
Este Silêncio que aqui nos é exigido não é, de fato, algo fácil de ser descrito; sobretudo seu contrário, o "não-silêncio", tem muitas faces.
Pois a receptividade da atenção que cala pode ser sufocada pela passividade (atitude de indiferença, "tanto-se-me-dá") ou pela suficiência (de quem acha que já sabe tudo: querer "ensinar o Pai-nosso ao vigário"), suficiência que corta a palavra à linguagem das coisas; mas também, por exemplo, por deixar entrar para dentro de si mesmo a barulheira da rua e do mercado, a ruidosa manchete do dia, o ressoar visual de vistosas baboseiras. Tudo isso é onipresente e, como todos sabem, disponível a todo para qualquer um que busque "novidades".
O surdo fruto de tudo isto - em segredo talvez desejado - é que o homem se impede de ouvir. Mas se o que realmente importa para o homem é poder ouvir!
Há um calar de ânimo cerrado, com os lábios crispados; e há também um silêncio morto. Mas, por natureza, não deve o homem dirigir seu calar para um mundo igualmente sem palavras: não, as coisas não são - como pretende um terrível dito filosófico - mudas.
E a atitude de um silêncio vazio, conscientemente voltado contra qualquer objeto (atitude recomendada por algumas doutrinas orientais de meditação), deve permanecer sempre estranha para quem quer que compreenda o mundo como Criação. Criação que se originou da Palavra que era no princípio, e que apresenta uma mensagem de mil vozes àquele que ouve calando. Mensagem cuja percepção traz em si a verdadeira riqueza do homem.
Goethe - também ele um grande silencioso (o que pode surpreender a muitos) - formulou aos trinta anos, num diário, a máxima de sua vida interior. "O melhor é o Silêncio profundo, no qual vivo contra o mundo, e cresço, e ganho e conquisto o que não pode ser-me arrebatado por espada ou fogo". O que é que se ganha e se conquista em tal Silêncio? O que se ganha nesse Silêncio profundo é talvez a investidura, a autorização para usar a palavra. Pois se esta não vier do Silêncio que ouve, seria falatório desenraizado, ruído e fumaça, ou, até mesmo, mentira.
Mas pode acontecer, também, que o homem que se abre à verdade até o fundo de sua alma perca a palavra. pois o transbordar daquilo que se vai tornando compreensível explode, transcende toda possibilidade de as palavras expressarem.
Por isso não é casualidade que as expressões "escuridão do Silêncio" e "alegria muda" pertençam ao vocabulário fundamental dos que vivenciaram a fundo a verdade. E, quando, apesar de tudo, falam e escrevem acerca do que viram e ouviram, podemos perceber sempre na "prata da fala o ouro de um Silêncio que não conseguiu pôr em palavras a mais secreta riqueza da alma" (J. Bernhardt).
Talvez então valha, para os mais altos objetos da compreensão humana, que, por um momento, invertamos a frase colocada no início: quem ouve, cala.
1. Aqui Pieper joga com os termos alemães Vernunft e Vernehmen traduzidos por "entendimento" e "entender". Vernehmen é a percepção, a captação de uma realidade, mas principalmente pela audição. Aproxima-se muito do francês entendre, intermediário entre ouvir e compreender.