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A Mulher

(O presente texto é a transcrição e tradução de uma conferência - Madri, 2000, dada pelo filósofo Julián Marías. A edição mantém o estilo oral. Edição: Ana Lúcia C. Fujikura. Tradução: Elie Chadarevian - http://www.hottopos.com/)

 

Boa noite! Na conferência anterior falei da mulher, da missão da mulher a partir do clima do lirismo. Lembrem, que dizíamos, que a principal fonte do lirismo na vida humana, especialmente nos países do nosso âmbito cultural - não me atreveria a generalizar em relação a outros países que são muito diferentes e muito difíceis de conhecer -, mas em todos os países de tradição ocidental, desde os originários da Grécia e de Roma até os atuais do Ocidente, a fonte principal do lirismo é justamente a projeção do homem em direção à mulher e vice-versa. Falávamos também da tensão que se produz entre os dois, da atitude imaginativa, projetiva... Ser homem quer dizer estar referido à mulher, ser mulher quer dizer estar referida ao homem. E isto cria, digamos, o que se pode chamar um campo magnético - um campo magnético que estabelece uma tensão dinâmica entre os dois sexos, entre as duas formas de vida humana. Isto, claro, é permanente.

Esta tensão entre homem e mulher, que não é exatamente sexual mas sexuada; essa condição sexuada, ou seja, a condição de ser homem ou mulher, ser duas formas de instalação na vida, duas formas de pessoa humana, é algo que acompanha à vida inteira, durante toda sua duração e em todas as duas dimensões. Isto é justamente o que dá a têmpera do lirismo à vida humana - que pode falhar, porque nada do que é humano é permanente, nada humano é seguro. Há processos de personalização e despersonalização e pode haver crises que afetam esta dimensão, que é permanente, constante e abarcadora da vida.

A origem, afinal, desta relação está numa atitude de entusiasmo por parte do homem em relação à mulher. Se considerarem o conjunto da cultura ocidental, verão como, por exemplo, na literatura, na poesia, no romance, no teatro, na música - em outra dimensão, diferente - nas artes plásticas, há como que uma constante tensão, uma constante inclinação do homem pela mulher - e digo do homem pela mulher porque se expressou muito mais, na forma masculina, numa perspectiva masculina e, por exemplo, a maior parte das obras literárias ou artísticas foram realizadas por homens e dirigidas à mulher - o que não ocorreu por acaso. Se olharem, por exemplo, a expressão desta atitude, há uma certa resistência por parte da mulher. Poder-se-ia pensar que é por falta de talento, falta de desenvolvimento, de cultivo de talento... Mas o que há é provavelmente uma reserva, um sentido de não expressão de certos aspectos da intimidade que foram muito mais cultivados, provavelmente com mais sentido, pelo homem.

Há, portanto, este nível de tensão e, repito, a origem é uma atitude de entusiasmo. Se considerarem o conjunto da cultura Ocidental verão como há uma imensa dedicação à interpretação, à expressão, à formulação da peculiariedade da mulher, da relação do homem com ela, do que se espera dela, etc., isto ocupa um espaço absolutamente imenso. Não se poderia encontrar nenhum outro tema, nenhum outro assunto, ao qual se tenha dedicado tanta atenção. Pelo menos até chegar à nossa época... Pelo menos até ao futebol! Agora talvez se encontre uma dedicação comparável somente no futebol, no esporte em geral (e muito especialmente no futebol), e isso me parece extremamente inquietante. Se considerarem, por exemplo, o tempo que o rádio dedica, ou o tempo que a televisão dedica, ou o número de páginas que os jornais dedicam ao esporte - e muito especialmente ao futebol - verão que não há comparação com nada e, talvez, o volume que teve a poesia lírica, o teatro, o romance e a música, somado tudo isto, em outros tempos, chegue a um volume comparável ao que se dedica hoje ao esporte. 

Evidentemente há também a possibilidade de que haja uma espécie de onda  de prosaismo; que recobre o relacionamento habitual, centenário ou talvez milenar entre o homem e a mulher. Por que isto ocorre? Em que medida ocorre? Há vários fatores que levaram a uma situação que hoje é de uma certa escassez de lirismo e a uma certa dose de prosaismo. Por um lado, ocorreu o fato de que a consideração sexual se sobrepôs à sexuada. Houve uma espécie de reducionismo da relação entre homem e mulher ao sexual. O que é sexual tem várias características: primeiro, não é permanente. A vida sexual não se inicia com o nascimento, costuma atenuar-se, ou inclusive extinguir-se, com os anos. Ocupa somente certos aspectos, certas dimensões da vida e não outras. Não tem a universalidade e a total permanência que tem a condição sexuada. A condição sexuada consiste em ser homem ou ser mulher, na forma de instalação nesta vida, neste tipo de pessoa - o que, evidentemente, não ocorre com o que é sexual.

Por outro lado, este predomínio, hoje dominante, da consideração sexual, mais que na realidade, na expressão, na formulação das coisas - isto tem uma conseqüência que se considera como a culminação da vida - e isto é falso - ou então se converte em algo abstrato. Seja como for produz-se um processo de despersonalização. Ora, o lirismo é justamente a condição própria da pessoa: é o imaginativo, o projetivo, é o que provoca e -implica como método- a ilusion. Isto produz como que um decréscimo de lirismo e uma atitude, em certa medida prosaica, que impregna a relação entre o homem e a mulher.

Há, além disso, uma atitude quando o entusiasmo -este entusiasmo de que eu falava tanto e que me parece capital- arrefece ou decresce...: produz-se, por parte do homem, um afã de domínio, domínio sobre a mulher. Isto existe em algumas formas de história, em algumas formas de cultura (ou de incultura...): é precisamente dominante. Mas acontece que isto às vezes não é assim e então é possível, é muito freqüente, que o homem compense, digamos, com um afã de domínio ou com uma crença de ser dominador, de ser dono - isto predominou sobre tudo em algumas épocas e em muitos lugares mais do que em outros. O homem procura com isto compensar a consciência de certas deficiências.

Um fator muito importante na vida humana é a satisfação de si mesmo: de si mesmo individualmente, ou de si mesmo enquanto grupo, condição, sexo, classe social ou qualquer outro atributo. Quando se tem um  descontentamento pessoal, um descontentamento íntimo, quando não se está seguro de ser plenamente isto que se pretende ser, isto que se supõe que se é, há a tendência de se buscar certas compensações. Então isto se produziu, de certo modo, nas relações entre homens e mulheres – com  a participação também da mulher. Isto é curioso. Houve, diríamos, na redução do entusiasmo masculino pela mulher, com uma certa cumplicidade da  mulher também. E se se repara bem, a origem é extremamente parecida. Quero dizer que a mulher normalmente esteve satisfeita em sê-lo, esteve contente de ser mulher, soube o que era isso, o que queria dizer, qual era portanto sua função, seu lugar na história, na vida pessoal. Mas há um momento em que isto falha, em que a mulher começa a não estar consciente de si mesma, ou a não estar contente de ser mulher. Então, há uma atitude que é como que de certa irritação diante desse entusiasmo que o homem sente por ela. E eu penso que não há nada que revele mais o que é a mulher do que a reação que ela tem ante o entusiasmo do homem... Quando uma mulher é verdadeiramente mulher, quando está instalada, e nesta condição, evidentemente sente-se feliz ante o entusiasmo masculino – mesmo que não lhe interesse em concreto, mesmo que não vá além disso... Simplesmente sentir o entusiasmo ambiente, o entusiasmo em torno de si, a deixa feliz. Mas há casos em que isto não se dá! É estranho, surpreendente, mas acontece. Nesse caso ocorre antes uma certa irritação, um certo mal estar ao sentir-se admirada ao sentir o entusiasmo.

Há também um momento delicadíssimo, muito perigoso, em que a mulher não quer ser desejável. Pode parecer estranho, mas se analisarmos com um pouco de atenção veremos que não é tão raro... Então, evidentemente, cessa esta atenção de que eu falava antes, este campo magnético da convivência, que é justamente a raiz fundamental mais constante, mais permanente e mais abrangente do lirismo e se produz uma atitude, de certo modo, de prosaismo.

Às vezes também acontece de a mulher, devido a este certo descontentamento e dos motivos deste descontentamento –a mulher é, às  vezes, mal tratada: já há muito tempo tem-se ressaltado o mau tratamento  que mulher teve na história e não se tem em conta nem se quer se cita este tratamento de entusiasmo, de admiração que foi muito maior, muito mais importante, muito mais abrangente– dá-se por assente que a mulher sempre teve uma condição lamentável, quando a realidade é bem diferente: algumas vezes teve condições lamentáveis. Em geral, num número enorme de casos, teve uma situação privilegiada.

A mulher reivindica seus direitos, reivindica suas capacidades, aspira a realização de múltiplas atividades (que tenha ou não  realizado, em maior ou menor grau, ou em diferentes formas). Isto a leva a uma permanente atitude negativa e de descontentamento. Por isso eu falava de cumplicidade, de uma cumplicidade que existiu. Mas, uma conseqüência disso é alterar sua própria condição. Eu tenho a impressão de que, em tempos relativamente próximos e não antes –não digo que não tenha existido, em algumas épocas, fenômenos parecidos mas não foram generalizados–, há uma certa confusão acerca do que é ser homem e ser mulher. Tradicionalmente os dois sexos têm estado instalados em sua condição: a tomaram como algo óbvio, algo que está aí, acreditaram que era natural ou ainda que era pela tradição, que era um fenômeno histórico, aceitaram-no como tal. E há um momento (poderia ser precisado) - enquanto ocorre em diferentes dimensões da vida, ocorre em diferentes países ou lugares, com diferenças -, mas há um momento em que começa a não haver muita clareza. Não há uma plena clareza sobre o que é ser homem e o que é ser mulher e, certamente, qual é a relação justa, a relação adequada, a relação normal entre ambos. Creio que isto é uma origem muito clara de prosaismo.

Em vez de projetar-se um em direção à outra, e a outra em direção ao um, e constatar que a própria realidade se realiza justamente nesta relação, há um princípio de rivalidade, há um princípio de hostilidade. Ou seja, não se projetam um para o outro, mas um contra o outro. E, repito, há uma participação de ambos os sexos nesta atitude. O fenômeno não é –ou quase nunca é– unilateral. E isso produz uma situação de um certo mal estar: perde-se o cultivo da imaginação – não esqueçam que o lirismo é muito fundamentalmente imaginativo. Acho que outro dia lhes falava a respeito de uma conferência que proferi já faz algum tempo em Roma, e mencionava a expressão que Cervantes emprega a propósito do  enamoramento de D. Quixote por Dulcinéia de Toboso: esta atitude da "dama de seus pensamentos". Porque efetivamente o amor irreal de D. Quixote se nutre do pensar constantemente na dama de seus pensamentos, em Dulcinéia de Toboso. Pensa nela constantemente, a imagina, a realiza mentalmente. Eu disse, nesta conferência, que normalmente o homem deseja a mulher, freqüentemente gosta dela..., mas não pensa muito nela, não é freqüente que pense muito nela. Recordo que todas as senhoras que estavam na conferência me disseram que eu tinha muita razão e que era assim mesmo, ou seja, perceberam que se sentiam pouco pensadas, escassamente pensadas... Desejadas sim, queridas –provavelmente em muitos casos...–, mas não muito pensadas, deficientemente pensadas. E ao ouvir isto reparavam que sentiam falta, constatavam que definitivamente faltava algo.

Como vêem isto tem um valor extraordinário, e é justamente o ponto chave desse lirismo ambiente e envolvente que engloba o homem e a mulher numa relação que não tem que ter nenhuma atividade particular, concreta, mas se justifica por si mesma. Ou seja, o homem diante da mulher, ou a mulher diante do homem, e isto basta: não necessitam fazer algo em especial.

Os homens, em geral, precisam fazer algo juntos. Quanto às mulheres... com elas a questão é mais delicada, porque não é freqüente que precisem fazer algo juntas. O que há é, antes, certas dificuldades. Este fenômeno é curioso porque,  provavelmente quando a mulher, afinal, faz algo, normalmente faz com um homem ou então com os filhos. A relação do homem com os filhos não é a mesma – evidentemente, não há paralelismo: são duas relações muito  profundas, muito importantes, mas diferentes. Tudo, no homem e na mulher é diferente. Inclusive os fenômenos que são comuns ou aparentemente parecidos, se observarmos bem, são bastante distintos. Isto   porque têm outros sentidos, porque entram em contextos diferentes. As mulheres, entre si, freqüentemente não têm muito o que fazer juntas e, pelo  contrário, surgem relações de rivalidade, de independência... Por exemplo, a freqüente relação de camaradagem que existe entre os homens, companheiros de trabalho, companheiros de quartel... isto não é nada freqüente nas mulheres. Se observarem bem, verão como há amizades femininas rigorosamente pessoais e não muito freqüentes e nem sempre próximas. O que ocorre com perfeita normalidade no homem, não ocorre  na mulher.

Creio que se está por estudar a tipologia das relações humanas em seus detalhes efetivos. Além disso, é claro que teria que se distinguir entre as idades. É evidente que as idades têm uma importância muito grande. Por exemplo, pensem na amizade entre crianças que, evidentemente, não é muito intensa. Quando a gente às vezes diz: “Oh! Somos amigos desde a infância, amigos íntimos!” Não! Porque a criança não tem intimidade. Os amigos de infância não são íntimos: são triviais, são companheiros de  brincadeiras, nada mais. A intimidade aparece na adolescência. Os amigos íntimos têm sua origem, com grande freqüência, na adolescência, na primeira juventude – e são os amigos íntimos mais freqüentes e mais duradouros. Pode haver amigos íntimos a qualquer idade, não há limite:  pode-se ter amigos íntimos até na velhice e pode-se adquirir amizades íntimas até na velhice. Entretanto, as mais freqüentes são as da adolescência e primeira juventude. Naturalmente a idade não tem o mesmo significado para o homem e para a mulher – há inclusive razões fisiológicas que fazem com que haja diferenças, mas, em todo caso, biograficamente é muito diferente. Compreendem que, para entender a vida humana, temos que  examiná-la de perto e com detalhes?

Freqüentemente, quando se dá esta espécie de reivindicação da mulher, de sua independência, de seus dons, de suas capacidades, de seus direitos, dá-se no homem –principalmente se não está muito seguro de si mesmo– uma atitude, em certo modo, de temor. Pensem que, talvez pela primeira vez na história, é bastante freqüente que o homem tenha medo da mulher. Não o  medo que o homem sempre teve: o medo de enamorar-se.

Hoje talvez isso seja menos freqüente – menos freqüente porque ocorreu  uma enorme simplificação das relações. Por outro lado, há um certo receio. Receio de que? Receio de que a mulher tenha poder, ou tenha independência econômica, ou tenha capacidades que possam ser superiores às do homem, que se sente diminuído. Há um fenômeno engraçado e que é um pouco ridículo: ao homem comum, espanhol pelo menos -não sei se aos outros..., provavelmente também-, causava-lhe uma grande felicidade o fato de sua mulher lhe perguntar se tal palavra se escreve com s ou z. Isto lhe dava consciência de sua superioridade, o tranqüilizava. A mulher sabe perfeitamente se se escreve a palavra com s ou com z, com g ou com j e talvez quem não o saiba seja o homem porque afinal lê menos, provavelmente. O homem, quando a mulher lhe fazia uma pergunta bastante elementar, se sentia seguro, se sentia confirmado em sua  superioridade, que provavelmente não existia, mas que ele supunha que existia.

Hoje em dia ocorre uma alteração das relações: para o prosaico. É evidente que se o homem tem rivalidade com a mulher, ou se há receio, ou se se sente diminuído, inseguro de si mesmo, a relação perde lirismo, perde entusiasmo, se converte em algo, a final, prosaico. Leva a certas realidades concretas que são econômicas, ou de prestígio, ou que são, às vezes, inclusive, o que ocorre hoje com certa freqüência, que homens e mulheres trabalham numa mesma empresa. Há um problema que surge muitas vezes: por exemplo, uma mulher tem um cargo de chefia e o homem tem uma condição inferior – tem  salário menor, menos poder, menos títulos... seja o que for. Isto introduz um fator de prosaismo, que é muito grave.

Trata-se de fenômenos que correspondem a certas estruturas sociais, econômicas e profissionais, que são recentes – são fenômenos bastante recentes. Em outros tempos davam-se por outra perspectiva. Por exemplo: quando havia uma articulação em classes sociais muito acentuada e a mulher podia ser de um status superior; outras vezes, ocorria o contrário: havia a idéia dominante de que o homem podia elevar a mulher facilmente a uma posição social superior, por exemplo, com base na beleza da mulher. Um homem, por exemplo, distinto, de classe superior, um aristocrata, podia elevar uma mulher que fosse de classe social inferior porque esta mulher era de grande beleza, era atraente e por conseguinte havia a ascensão normal e fácil. A recíproca era muito mais difícil, era mais problemática, causava um mal estar.

Como vêem, são relações sumamente delicadas, porque afetam o mais íntimo da pessoa, a idéia que cada um tem de si mesmo. E, repito, estes fenômenos que acabo de enumerar e de nomear, de modo simples, sem aprofundar muito neles, são recentes – se produzem em certo momento, em geral, neste século. Pensem, por exemplo, como parecia normal, nas democracias européias modernas, que o voto fosse exclusivamente masculino. Quando se estabelecem as democracias, desde a Revolução Francesa e posteriormente, os homens votam, as mulheres não votam e isto parece normal, nem se discute. Por que? Por muitas razões: uma, por falta de interesse. A coisa é tão recente em muitos países que se pode recordar perfeitamente: certamente havia algumas mulheres que tinham desejo e grande vontade de votar – eram as que se chamavam na Inglaterra "as sufragistas", mas quando se propôs este problema na Espanha, na República, desde 1931, recordo muito bem que a reação habitual, freqüente das mulheres era: Que chato ter que votar! Que droga! Não tinham nenhum interesse – algumas sim, mas uma minoria muito exígua. E havia duas deputadas no Parlamento da República de 1931: uma, Clara Campoamor, que era partidária do voto feminino, lutava por ele; e outra, Victoria Kent, que era inimiga do voto feminino. Por que? Porque dizia que as mulheres iam votar em quem o padre indicasse... Esta era a questão, isto então lhe parecia inconveniente. Nem lhe passava pela cabeça –porque não lhe parecia mal– que votassem em quem fosse indicado, por exemplo, pelo chefe do sindicato: era seu papel político. Mas incomodava-a a idéia de que poderiam votar em quem o padre aconselhasse. No final foi aprovado o voto feminino, mas durou tão pouco quanto o masculino porque desde 1936, tudo se acabou...

Mas isto parecia normal, parecia uma obrigação mais ou menos desagradável, mais ou menos incômoda, não era de interesse... O mesmo fenômeno aconteceu com o sufrágio universal. Antes, no século XIX, na maior parte dos países, o voto era censitário: podiam votar os que pagavam impostos, os que tinham tributação ou os que tinham algum título acadêmico – os outros não votavam. Isto fazia com que o voto fosse mais autêntico, porque votavam os que tinham idéias políticas, os que tinham alguma preocupação política e algum conhecimento de assuntos políticos. Havia uma parte das pessoas que não tinham nem idéia, não sabiam que partidos havia, nem o que queriam dizer, nem que valor tinham. Isto era suprido pelo caciquismo, o cacique local lhes dizia em quem deviam  votar, em troca de alguns serviços, alguns favores ou, às vezes, de algum suborno... Pouco a pouco foi-se formando um interesse político, uma vontade política, as pessoas começavam a distinguir grupos, partidos, ideologias, programas políticos e se foi formando uma consciência política, democrática, com suas imperfeições, com maior ou menor grau de intensidade e vigilância,  mas chegou a se efetivar. Isto naturalmente começou muito mais nas cidades grandes do que nas cidades pequenas ou nos povoados. Entre os trabalhadores, a vontade política começou com os sindicatos dos gráficos  porque liam, liam por ofício. Muitas pessoas nunca liam um  livro, mas os que eram profissionais de gráfica, sim, naturalmente liam porque era seu trabalho. E precisamente aí se organizou o movimento político, o interesse político, que não existia antes. Os debates políticos, as discussões no Parlamento, foram pouco a pouco se difundindo, porque durante muito tempo a atitude normal era de uma certa indiferença na maior parte do povo. Não esqueçam o fato de que os meios de comunicação se  multiplicaram por 50 ou por 200. Isto começa a existir quando os jornais diários, jornais primariamente políticos –os jornais do século XIX já são políticos–, em grande parte, discutem questões públicas. Com pouca difusão, liam-se pouco, evidentemente, mas depois se espalharam: na segunda metade do século XIX são muito importantes – são talvez mais importantes do que hoje, porque naquela época faziam efeito contínuo. A longo prazo o papel da imprensa é mais importante, por exemplo, do que o da televisão, que produz efeitos súbitos, rápidos –pode inclusive, por exemplo, influenciar nas eleições–, mais, na formação da opinião habitual e permanente, a reiteração do que se lê, ao cabo de muito tempo é muito mais profundo, muito mais eficaz que a televisão ou o rádio que se ouve... são fugazes – introduzem efeitos imediatos mas nada mais. Não esqueçam de outro problema: não havia rádio, não havia televisão. O único meio de comunicação massiva era a imprensa, os jornais. Isto também  mudou muito o sistema de formação de opiniões.

Além disso havia mais um fator: o menor interesse da mulher pela vida política. Há um fato que continua sendo verdadeiro e atual: quando o jornal chega em uma casa, normalmente, o homem se apodera do jornal primeiro. A mulher tem menos interesse pelo jornal, interessa-se menos pelo o que acontece e mais pelas coisas pessoais. Por exemplo, o domínio da bisbilhotice é mais próprio da mulher. Há homens muito bisbilhoteiros; eu conheci alguns de grau superlativo, mas não é freqüente. A mulher é mais bisbilhoteira porque está interessada no âmbito pessoal, mais no que acontece com o vizinho do que com o que acontece no jornal... É evidente! Isto tem também seu interesse, porque é evidente que uma coisa é mais abstrata, a outra é mais concreta, mais pessoal.

Como vêem, há mudança de posicionamento da opinião, do interesse, do que interessa a cada sexo (ou a cada idade). Naquela época ocorreu uma mudança muito considerável. E outro dos resultados foi a ocupação dos postos de trabalho. Hoje em dia há muito mais moças do que rapazes em qualquer universidade, sem dúvida nenhuma. Em todas as partes hoje há um número de mulheres quase sempre maior do que de homens, o que causou um deslocamento da sociedade e das relações mútuas: produziu-se uma espécie de alteração do equilíbrio habitual: hoje há relações de competição, de rivalidade, inclusive econômicas. O primeiro passo foi que a mulher teve um grau de independência econômica que quase nunca tinha tido: havia mulheres que tinham uma fortuna pessoal ou que eram herdeiras, por exemplo, e tinham sua independência. Havia, por exemplo, esses casais em que alguém se casava com uma mulher rica e dizia: "no es verdad que me he casado por interés..., me he casado por el capital..."1(risos) Isto acontecia mesmo!

Mas hoje acontece de modo diferente... Não é que a mulher tenha um capital: é que ganha dinheiro, bastante dinheiro! Às vezes, ganha mais que o marido – freqüentemente! Hoje, por exemplo, o normal, com a dupla renda, é que os casais tenham contas correntes independentes, separadas... é muito freqüente. Isto, por exemplo, em minha casa, nunca aconteceu – nunca tivemos contas correntes...(risos), mas, em todo caso, era uma só, em nome dos dois. Sempre havia uma única conta da família. Mas hoje é muito freqüente que um casal tenha duas contas separadas: o marido, a dele; a mulher, a dela. E às vezes é mais recheada a feminina que a masculina, o que evidentemente produz mal estar.

São relações sumamente curiosas: a mulher pode ter mais poder, mais competência, postos mais importantes ou mais brilhantes, pode ter uma cultura maior..., o que também veio afetar –e isto é favorável– a relação com os filhos. Porque em geral, a mulher tem uma relação excelente, eficaz e muito valiosa com as crianças, mas, talvez, não com os filhos maiores. Tem sido muito freqüente o caso de que os filhos maiores –que fazem, por exemplo, estudos superiores– não tenham uma comunicação muito fácil com a mãe – porque a mãe não entendia de assuntos, que interessavam muito aos filhos maiores. Hoje não! Hoje, a final, isto  diminuiu muito porque a mulher costuma entender tanto quanto o marido – ou mais..., em alguns casos, porque é muito freqüente que a mulher tenha uma profissão culturalmente mais valiosa que a do marido, talvez mais técnica ou até melhor remunerada. Mas, seja como for, a mulher é freqüentemente mais cultivada. Em todos os países da Hispanoamérica e nos Estados Unidos também, quem, em grande proporção, criou a cultura foram as  mulheres. Há certos fatos lingüísticos muito reveladores: por exemplo, a palavra inglesa teacher é feminina, em princípio, – porque, no ensino básico, os professores costumam ser professoras numa proporção enorme. De modo que se alguém diz que é teacher –sem maiores precisões– se dá por certo que é uma mulher. Do mesmo modo acontece com as enfermeiras. Por exemplo, também em inglês, para se falar do enfermeiro se diz male nurse porque só existe nurse. Supõe-se também que se trata de uma mulher! Como vêem, as duas profissões, professora e enfermeira, são, em princípio,  profissões femininas – podem ser masculinas, mas não é o comum.

São mudanças que vão produzindo tipos de relacionamentos diferentes. O fato é que o ponto de início desta nova situação foi a Primeira Guerra Mundial. A Primeira Guerra Mundial levou a grandes mobilizações. A Guerra de quatorze a dezoito, mobilizou enormes exércitos porque se fazia uma guerra de trincheiras – algo que não existiu na Segunda Guerra Mundial, muito menos hoje. Eram mobilizações enormes e então, naturalmente, as mulheres tiveram que ocupar os postos de trabalho de muitas profissões. As mulheres se mobilizaram, ocuparam seus postos e permaneceram neles. Ou seja, já não voltaram ao lugar doméstico, familiar que tinham anteriormente. Isto já produz uma mudança enorme na sociedade.

E atualmente estamos nesta situação.


1- O autor joga com o duplo sentido da palavra interés: interesse e juros.