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"El milagro de Teófilo" de
Gonzalo de Berceo

 - o equilíbrio emocional medieval

 

 

(Estudo introdutório, tradução e notas Jean Lauand)

Apresentamos, a seguir, a tradução de um clássico medieval: "El milagro de Teófilo" de Gonzalo de Berceo.

A história (ou a leyenda...) de Teófilo tornou-se imensamente popular no Ocidente e um dos temas prediletos da arte, desde que, no século IX, o diácono napolitano Paulo traduziu-o ao latim, do original grego de Eutichiano (séc. VI). Para ficarmos somente com alguns exemplos mais próximos e familiares, Rosvita de Gandersheim tem também um longo poema a ele dedicado; Rutebeuf, contemporâneo de Berceo, compôs para o teatro um famoso Miracle de Théophile; e nosso "herói" é retomado também nos vitrais e esculturas das catedrais da Idade Média. Destaca-se como elemento original e importante do enredo, o pacto com o diabo, tema que acabará - séculos depois - imortalizado no Faust de Goethe.

É natural, assim, que Gonzalo de Berceo, poeta espanhol do século XIII, um dos primeiros grandes nomes da nascente literatura em vernáculo, reserve o melhor espaço de seu Los milagros de Nuestra Señora à narrativa de Teófilo, que reúne em si todas as características de sucesso total junto ao público da época, que vivenciava uma cultura de caráter profundamente popular, oral, "teatral" e religioso.

Com essas caraterísticas, não é de estranhar que o Milagro de Teófilo seja praticamente idêntico à nossa literatura de cordel [1] : na simplicidade da cadência e das rimas (por vezes pobres: qualidade que procuramos preservar na tradução), na seqüência narrativa absolutamente linear e de imediata compreensão, na nitidez das características dos heróis e vilões, no apelo às emoções que tocam o povo [2] etc.

Para efeitos de entretenimento, o Teófilo equivaleria ao que seria, hoje, um filme "campeão de bilheteria", que agradasse igualmente ao povo simples e à elite intelectual: como se sabe, o gap de valores entre as duas camadas era, na época, muito menos acentuado do que hoje [3] .

Como característica adicional (e é, aliás, uma constante da cultura medieval), encontramos a de que o entretenimento não é mero passatempo, mas é pedagógico: o Teófilo tem a preocupação de transmitir valores: a esperança, a penitência, o triunfo do perdão sobre o pecado e, sobretudo, a força do recurso a la Gloriosa. Assim, no Milagro, entrelaçam-se as dramáticas incidências do enredo e longos discursos doutrinais.

A estrutura temática do Teófilo, que gira em torno da intervenção de Maria para salvar um pecador ou um desesperado, não é nada original nos quadros da literatura medieval. O que, sim, esta história traz de novo é a radicalidade do pecado e do perdão: Teófilo atingiu o fundo da desgraça e, como dizíamos, tinha chegado a assinar e selar um pergaminho de contrato com o próprio diabo! E, mesmo assim, a Senhora consegue sua salvação.

É o acolhimento radical em relação ao pecador: misericórdia "quimicamente pura". E Berceo privilegia, também em termos de espaço e duração, o Teófilo: 657 versos (contra os habituais, digamos, 100 versos dos demais milagros), que, bem recitados, interpretados e "dramatizados" duram mais de uma hora! [4] .

Por que este "exagero"? Trata-se - diz o próprio autor nos versos iniciais - de um caso tan precioso que os 657 versos já são a versão mais compactada possível (Non querré, si podiero la razón alongar...)! É que estamos, aqui, diante de uma raiz fundamental não só da cultura medieval, mas também de seu próprio eixo de equilíbrio emocional. Em todas as épocas, a principal insegurança do homem não se dá no enfrentamento de fatores externos: doenças, intempéries ou falta de técnicas de domínio sobre a natureza, mas diante das misérias, descaminhos, desvarios e angústias do próprio coração humano [5] .

O Milagro de Teófilo toca a fundo a pedagogia da "segurança existencial": para a religiosidade medieval, a figura de Maria significa a certeza concreta, dada a cada homem, de um amor absoluto, incondicional e maternal a ele, pessoalmente, dirigido. Um amor, além do mais, onipotente e dotado de uma infinita capacidade de perdão. Por mais miserável, mesquinha e desastrada que tenha sido uma vida, sempre está aí, ao alcance da mão [6] , a doçura da solicitude da Mãe, que diz ao desgraçado que nada está perdido: que ele está ancorado, ele tem "para onde voltar..." [7] e tem um caminho seguro de volta, preparado pela Senhora.

Este é um aspecto da pedagogia medieval, que abre insuspeitadas possibilidades de saúde mental. Possibilidades de natureza muito distinta [8] da de nossas técnicas terapêuticas, tanto químicas como psicológicas...

Na presente tradução, suprimimos cerca de metade das estrofes originais, mantendo os marcos principais do enredo e eliminando detalhes narrativos ou doutrinais, cansativos para o estudante de hoje. O original seguido é o da edição crítica mais acurada: Gonzalo de Berceo - Los milagros de Nuestra Señora - edición crítica de Claudio García Turza, Logroño, Colegio Universitario de la Rioja, 1984. Dada a proximidade das línguas, preservamos muitas rimas originais e algumas formulações estranhas para o gosto do homem culto de hoje. Como é o caso, por exemplo de: "non só digno pora tal dignitat" ou "Yo, mesquino fediondo, qe fiedo más que can / can que yaçe podrido, non el que come pan".

 

O Milagre de Teófilo

 

É o caso de Teófilo                     que agora eu vou contar:

Um milagre tão precioso              não é para se calar,

Porque ele nos faz                       entender e avaliar

O quanto é importante                 a Nossa Senhora rezar.

 

Não quero, se possível,               no relato me alongar,

Contra vossa paciência                poderia eu pecar,

Sei que a oração breve                sói a Deus agradar,

Não foi o próprio Cristo              o primeiro a nos ensinar? [9]

 

Era uma vez,                               assim começa a legenda,

Um homem muito bom,               nada mal de renda,

Teófilo, homem de paz,               e nunca de contenda

De vida virtuosa,                         que dispensa emenda.

 

No lugar onde morava,                em sua bela cidade,

Era chanceler do bispo,               com muita autoridade

Gozava de boa fama e,                para dizer a verdade,

Depois do senhor bispo,              era dele a dignidade.

 

Teófilo era sóbrio                        e muito comedido,

Pessoa muito afável,                    por todos querido,

Homem culto e douto,                 de saber reconhecido,

Seu prestígio era                         muito difundido.

 

Dava aos pobres                         roupa e comida;

Aos peregrinos,                           abrigo e guarida,

Ensinava os pecadores                a mudar de vida

E, pela penitência,                       evitar a recaída.

 

De modo que o bispo                  não tinha preocupação

Só a de cantar a missa                 e a de pregar sermão

Pois de tudo, tudo,                      nem cabe enumeração,

Cuidava Teófilo,                          com muita aplicação.

 

O bispo apreciava                       Teófilo sobremaneira

Pois ele o livrava                        de toda a trabalheira

E para o povo ele era                  como luz verdadeira

Seu fulgor iluminava                     a cidade inteira.

 

Mas, nesta vida,                          tudo tem sua hora,

E chegou, para o bispo,               a vez de ir-se embora

Uma doença grave,                     sem chance de melhora

Levou-o à glória                         sem muita demora.

 

O clero e o povo,                        como nunca adunado,

Todos diziam:                              "Teófilo no episcopado!

Com ele como bispo                   tudo será melhorado

Que seja ele                                o quanto antes consagrado".

 

Teófilo respondeu                       com toda a simplicidade:

"Senhores, eu suplico,                 por favor, por caridade,

Eu não sou digno                        de uma tal autoridade

Outro que assuma                       essa grande dignidade".

 

Os eclesiásticos                           da administração

Ante esta sua                              inabalável decisão

Não se sabe                                se contentes ou não [10]

Tiveram que fazer                        uma outra eleição.

 

Novo bispo, novo também          o chanceler para mandar

E Teófilo, sem poder,                  começou a invejar

Porque o povo todo                    daquele lugar

Já não o ia mais,                          como antes, procurar.

 

E ele, que ao antigo                     bispo era tão chegado,

Começou a sentir-se,                  agora, postergado

E pela inveja                               cada vez mais dominado

Ele sentia-se                                totalmente transtornado.

 

E Teófilo achando-se                  muito desprezado,

Preterido, esquecido                   num canto, injustiçado

Por rancor, cada vez                   mais ferido e despeitado,

Caiu nas tramas de                      um grande pecado.

 

Foi a um famoso judeu                cheio de vícios,

Versado em encantamentos         e outros malefícios,

Que fazia feitiços                         e certos artifícios,

Guiado por Belzebu,                   em todos os seus ofícios.

 

E foi logo a esse                          falso traidor,

Fiel vassalo                                 de tão mau senhor,

Que Teófilo,                                ó que horror!,

Foi solicitar                                 um nefasto favor.

 

Ele, que se sentia                         tão desesperado

Foi perguntar                              ao judeu endiabrado,

Que tinha parte                           com o grande Renegado,

Como fazer para voltar                a seu anterior estado.

 

Respondeu o judeu                     sem nenhuma hesitação:

"Não tenha você                         a menor preocupação

Pois vamos fazer                         uma boa combinação

Com `alguém` que                       certamente dará solução".

 

Na calada da fria                          noite combinada

Teófilo, às escondidas,                saiu de sua pousada

Para a entrevista                          que estava marcada

Com "alguém" numa                    tenebrosa encruzilhada.

 

O judeu que ia com ele                no meio da escuridão

Disse: "As coisas                         muito bem estão.

Não me vá você                          estragar tudo, então,

Fazendo o sinal da                      cruz com sua mão".

 

Teófilo assustou-se,                     quando pôde divisar

Grande multidão,                         com velas a queimar,

Com seu rei no meio,                  uma cena de arrepiar

E, por um instante,                      até pensou em voltar.

 

Deteve-o, com um gesto,            aquele judeu traidor

E, determinadamente,                  levou-o a seu senhor,

Que era Satanás,                         o demo fingidor,

Para tentar dele                           obter o favor.

 

Disse o judeu:                             "Senhor rei coroado

Este homem foi                           chanceler do bispado

E, como tal, era                           por todos muito honrado

Mas, foi despedido e                   agora, é desprezado".

 

Disse o diabo: "Não é                 lá de muito bom direito

De vassalo alheio,                       um outro tirar proveito

Mas renegue a Cristo,                 razão de nosso despeito

E farei que tudo lhe                     volte em estado perfeito".

 

"Para seu caso há                        uma boa terapia:

Renegue a Cristo                         e a Santa Maria

Assine esta carta                         em uma única via

E voltará ao que era                    e até com melhoria".

 

Teófilo a todo custo                    queria o sucesso

E não percebeu o engano            o pobre obsesso,

Cúmulo de exagero                     e de incrível excesso:

Perder sua alma                          em tão barato processo.

 

Ninguém soube do tal                  contrato e do credor

Só Deus, que de tudo                  é bom conhecedor

E permitiu que ele                        voltasse ao esplendor

Só que, agora,                            meio pálido e sem cor.

 

O bispo, reconhecendo               o quanto havia errado,

Fê-lo voltar àquele                      seu antigo estado:

Foi pelo povo da cidade              ainda mais venerado

Teófilo ia recebendo                    a paga de seu pecado.

 

O resultado dessa                       sua imensa euforia,

Pelo sucesso que                         tinha na chancelaria,

Foi que ele, agora,                      se jacta e se vangloria,

Todo orgulhoso                           em sua vaidade vazia.

 

Mas é tão bom Deus,                  Nosso Senhor

E não deseja que                         pereça o pecador:

Teófilo foi acometido                   de mortal dor,

Para ver se de algo                      lhe valia o Traidor.

 

Todo o bem que ele                    fizera no passado

Não quis Deus que                      fosse malbaratado

E Teófilo recobrou                      o juízo adormentado,

Abriu os olhos                             e caiu em si despertado.

 

Aconteceu que nesse                   breve lúcido momento

Para ele tão rápido                      e também tão lento

Teófilo viu o que fez,                   com grande desalento

E, arrasado, sucumbiu                 ao desfalecimento:

 

"Ai de mim, pecador                   mesquinho e malfadado

Das alturas do bem,                    quem me terá derrubado?

Quanto ao corpo,                        estou no fim e desprezado

E quanto ao espírito,                   totalmente arruinado".

 

"Morrerei como quem                 naufraga no mar

Não há quem vá por mim            ante Deus rogar

Nem mesmo de Nossa                Senhora posso esperar

Ela, a piedosa, que eu                 me atrevi a renegar".

 

"Maldita hora em que                  cobicei a chancelaria

Procurar o diabo,                        que amaldiçoado dia!

Qual Judas, qual traidor               pecado maior faria?

Não tivesse eu nascido,               muito melhor seria".

 

"Por que eu mesmo fui                 procurar acabar comigo?

Não passava necessidade,           eu não era mendigo

Todos me respeitavam,               o povo era meu amigo

Agora, a quem recorrer,              onde encontrar abrigo?".

 

"Bem sei que desta febre             eu não vou escapar

Que não há médico                     que me possa curar

Só Santa Maria,                          a estrela do mar,

Mas com que cara                      poderia eu lhe rogar?".

 

"Eu, miserável, mais                     fedorento que um cão

Cão sarnento e podre,                 não o que come pão

Ela não me vai ouvir,                   eu bem sei que não,

Pois foi contra ela                        que eu fui torpe e vilão".

 

"Mas, seja como for,                   a ela vou me achegar,

Prostrar-me-ei na igreja,              ante seu altar

Meus pecados, em jejuns,           hei de chorar

Esperando a graça                      da Gloriosa quero finar".

 

"Embora em minha loucura          eu a tenha renegado

E, como um tolo,                         pelo judeu fui enganado

Apego-me firmemente                 a ela, confiado,

Dela nasceu o Salvador,              por mim crucificado".

 

"Não sei se Deus                         isto me irá autorizar:

Quero ante todos                        minha loucura proclamar

Mesmo não sabendo                   por onde começar

Nem se minha boca                     conseguirá falar".

 

E sem contar nada                       sobre o plano que tinha

Foi ajoelhar-se ante o                  trono da Rainha,

"Dos desesperados és                 refúgio e madrinha

Haverá misericórdia para             esta alma mesquinha?".

 

"Tu que és a porta                       do Paraíso, Senhora;

Tu, de quem o Rei                       da Glória se enamora.

Olha com compaixão                  a este que implora

E seu horrendo pecado               noite e dia chora".

 

Quarenta dias                              durou esta penitência;

Noite e dia                                  em constante permanência

Teófilo com                                 inquebrantável paciência

Rogava assim                              à Senhora da clemência.

 

Até que ela apareceu,                  com ar meio zangado

"Por que tanto imploras,             ó desgraçado?

Não tens teu senhor,                   o eterno Renegado?

Não sei quem quererá                 ser teu advogado?".

 

"Mãe, disse Teófilo,                    por Deus e por caridade,

Não olhes a meus méritos,           mas à tua bondade

Eu bem sei que tudo                    que dizes é verdade

Porque eu sou sujo                      e cheio de maldade".

 

"Mas, não posso estar                 na penitência esperançado?

Não foi por ela que                     Davi foi perdoado?,

Madalena e até Pedro,                após o Senhor ter negado?

E o povo de Nínive,                    que já estava condenado?".

 

Quando ele se calou,                   falou Santa Maria:

"O teu caso, Teófilo,                   um grave problema me cria:

A ofensa a mim,                          eu bem que perdoaria

Mas a meu Filho,                        essa, eu não me atreveria".

 

"Tenho um conselho                    para te dar com coerência:

Volta a meu Filho,                       roga a Ele com veemência

Senhor da vida,                           Sua onipotência

Manifesta sobretudo                    em perdão e clemência" [11] .

 

"Senhora bendita,                        Rainha porta do Céu,

Teu nome é perfume                    e mais doce que o mel,

Há uma dificuldade,                     não esqueças, sou réu

Pois assinei aquele                       maldito papel".

 

Disse Maria: "Saiba,                    antes de mais nada,

Senhor trapalhão,                        Senhor praga malvada,

Que a carta que                          em má hora deixou assinada

Está nos quintos                         dos infernos bem guardada".

 

"Como a meu Filho                     eu pediria

Que empreendesse                      uma tal romaria?

Para lugar fétido,                        hodienda porcaria

Teria eu essa                               descabida ousadia?".

 

"Senhora, bendita                        entre as mulheres

Atende-me sem demora,              não esperes

Basta-Lhe o menor sinal              que deres:

Teu Filho sempre quer                 o que tu queres".

 

"Da falta, Teófilo,                        já recebeste o castigo

Fica tranqüilo,                             ouve o que te digo,

Eu vou ver, filho,                         como consigo

Resolver teu problema,                deixa o caso comigo".

 

Dizendo isto,                               desfez-se a aparição

E Teófilo que já tinha                   à Senhora tanta devoção

Foi tomado de imenso                 amor e infinita compunção

Passando dias e noites                 em jejum, pranto e oração.

 

A rainha da glória,                       Santa Maria,

Visitou-o ao final                        do terceiro dia

Com um rosto fulgurante,            que trazia

As melhores notícias,                   paz e alegria:

 

"Fica sabendo, filho,                    que tuas orações

Teus grandes gemidos,                tuas aflições

Chegaram ao Céu                       em grandes procissões

Para isto há anjos:                       para estas missões".

 

"Eu intercedi por ti                       com empenho e vontade

Prostrei-me de joelhos                ante a divina Majestade

E Deus te perdoou                      em sua infinita caridade

É importante agora                      tua firmeza na bondade".

 

"Mãe, disse Teófilo,                    muitíssimo obrigado

Mas não estarei                           de todo despreocupado

Até o momento                           em que tenha recobrado

Aquela carta em que                    teu Filho foi renegado".

 

"Estou cuidando de tudo,             disse a Rainha,

Desde que decidiste pecar,           sair da linha

Não resolverei,                            este probleminha?

Deixa também isto                       como incumbência minha".

 

Dito isto, a Senhora                     desapareceu de seu lado

E Teófilo, caindo em si,               até ficou assustado

De sua confiança:                        como tinha sido ousado!

E retomou a penitência                decidido e esperançado.

 

Na terceira noite,                         com seu objetivo cumprido,

Veio Maria à casa                        em que ele estava recolhido

A Gloriosa, como sempre,           discreta e sem ruído,

Trazia a carta com que                 ele a tinha traído.

 

Teófilo, ao ver que                      a carta tinha recuperado

E, da febre sentindo-se                totalmente curado,

Prorrompeu em canto                  de louvor exaltado

Àquela que, maternalmente,         o tinha livrado.

 

Dizendo: "Senhora boa,               sempre sejas louvada

Sempre sejas bendita                  sempre glorificada

Tua misericórdia está                   mais que comprovada

Não há doçura que possa            à tua ser comparada" [12] .

 

No dia seguinte, festa                  de solene celebração

Juntou-se na igreja                       uma enorme multidão

Teófilo subiu ao púlpito              com a carta na mão

E diante de todos narrou              seu caso e conversão.

 

Mostrou a todos a carta              que em sua mão trazia

Em que toda a força do               mau contrato residia

O bispo, muito assustado,           o sinal da cruz fazia

Mal acreditando                          nas coisas que ouvia.

 

Acabada a missa disse:                "Vede este companheiro

Que tomado de loucura               buscou mau conselheiro

E foi procurar o diabo,                astuto e arteiro,

Para recobrar o ofício                 que tinha primeiro".

 

"Se a Virgem gloriosa                  não lhe tivesse valido

Que torturas o infeliz                   não teria sofrido!

Mas, pela sua santa graça,           ele foi socorrido

Recobrando a carta                     senão estaria perdido".

 

O "Te Deum laudamus"               foi fortemente entoado,

"Tibi laus tibi gloria"                     também foi rezado,

E "Salve Regina" foi                     pelo povo todo recitado

E outros doces hinos,                  canto e reza misturado [13] .

 

Para a tal da carta,                       o bispo deu pronta solução,

Pois uma grande fogueira             mandou fazer então

Teófilo, confessando,                  recebeu a absolvição

E, logo em seguida,                     também a Santa Comunhão.

 

O rosto de Teófilo                       estava todo iluminado,

Refletia-se nele                            a presença do sagrado

E o povo vendo-o,                      de luz transfigurado,

Mais o nome da Mãe                  de Deus era exaltado.

 

Logo a seguir, Teófilo                  do cargo se demitiu,

Todos os seus bens                     entre os pobres repartiu,

Aos que o conheciam,                 perdão ele pediu

E, após três dias,                         para a outra vida partiu.

 

Senhores, o grande milagre          que acabo de narrar

Traz uma lição que se deve          muito bem guardar:

Que para a salvação                    devemos penitência praticar

E a Gloriosa Mãe de Deus          sempre, sempre honrar.

 

Ó mãe, de teu Gonçalo,              não deixes de lembrar;

Ele, que teus milagres,                 tanto gosta de narrar

Por ele, Senhora,                        ao Criador podes rezar,

Pois é teu privilégio                     aos pecadores ajudar

 

E com a graça de Deus,              Nosso Senhor, os salvar.

                    Amém.



[1] . Ou vice-versa... Uma experiência interessante, nesse sentido, é a de ler os versos do Teófilo em voz alta e com sotaque nordestino...

[2] . Reproduzindo, por vezes, estereótipos e preconceitos como o do judeu traidor.

[3] . Note-se, a propósito, a exaltação que o intelectual Berceo faz dos valores simples do povo contra o incipiente pedantismo dos letrados: o vilão de uma das vinte e cinco narrativas de Los milagros de Nuestra Señora é, precisamente, o bispo erudito, que quer destituir o herói, El clérigo ignorante, precisamente porque esse padre não sabia latim (e, por isso rezava, sempre a única missa que sabia em latim: a missa de Nossa Senhora).

Surpreende, aliás, na cultura medieval, o realismo, a naturalidade, a sem-cerimônia com que se emprega uma linguagem que hoje consideraríamos forte e - em qualquer caso - inadmissível em textos de devoção religiosa. Gonzalo de Berceo, nessa poesia de louvor a Nossa Senhora, não vê inconveniente em pôr na boca do zeloso bispo estes versos:

Fo durament movido el obispo a sanna:
dicié: "Nunqua de preste oí tal fazanna"
Disso: "Diçit al fijo de la mala putanna
qe venga ante mí, no lo pare por manna.

[4] . Não é exagerado para a época que o recitador declame, diante de público mais ou menos numeroso, por mais de uma hora de cor (a memória, ajudada pelo ritmo e pela rima, conserva mais facilmente as formulações). Lembremos também que a cultura popular é sempre "interativa": os ouvintes participam aplaudindo, comentando, chorando, pedindo bis nesta ou naquela passagem etc.

[5] . Nosso tempo, que conjuga incrível avanço tecnológico com profundas frustrações existenciais, é um exemplo a mais desse fato.

[6] . Ou do olhar, como diz a "Romaria" de Renato Teixeira...

[7] . Há um where he belongs, como diz a sugestiva expressão do inglês.

[8] . E, quem sabe, mais eficaz...

[9] . Cfr. Mt 6,7.

[10] . Si lis plogo o non. Aguda observação de Berceo sobre a sede de poder...

[11] . Nas estrofes seguintes, Teófilo manifesta - longa e perfeitamente - sua creencia, tal como - no original - a Senhora lhe pede.

[12] . Prossegue o louvor por várias estrofes. Um exemplo de estrofe do original:

Dizié: "Sennora buena, siempre seas laudada, / Siempre seas bendicha, siempre glorificada;
Pora los pecadores eres buena provada, /qual nunca nació otra tan dulz nin tan uviada".

[13] . O "Te Deum" é o tradicionalíssimo hino de ação de graças da Igreja. Também a antífona "Tibi laus" é de agradecimento. Na Salve, oração de louvor à "Rainha da Misericórdia", encontra-se o maravilhoso verso: "Illos tuos misericordes oculos ad nos converte": aqueles vossos olhos misericordiosos, a nós volvei...