O Realce de Pedro Afonso
no Renascimento do Século XII

 

Ruy Afonso da Costa Nunes
Universidade de São Paulo

 

Quem se interessa pelo conhecimento da origem da universidade medieval, das correntes doutrinárias do século XIII e pelo curso da história européia, precisa aquilatar devidamente o significado e o alcance do renascimento do século XII. Nessa época ocorreram fatos de imensa repercussão política: a renovação das cidades, após o longo período de regime essencialmente agrário, em que a existência dos povos do Ocidente girava em torno dos castelos e dos mosteiros; a restauração do comércio e o aparecimento da burguesia, o movimento das Cruzadas e, sobretudo, o renascimento cultural com predominante matiz científico-filosófico, que preparava de longe o renascimento italiano, acentuadamente literário e artístico.

 

No século XII processa-se a reconquista espanhola, pela qual os cristãos do Ocidente libertam a Península Ibérica do domínio muçulmano, ao mesmo tempo em que os árabes são expulsos do sul da Itália. Essa grandiosa aventura bélica e política foi acompanhada por outra grandiosa aventura cultural graças à qual, depois de quase mil anos, os cristãos do Ocidente voltam a estudar e a assimilar o patrimônio filosófico e científico da Grécia clássica e helenística, mas com a grande vantagem de entrarem em contacto, também, com as preciosas contribuições da Pérsia e da Índia, graças à intermediação dos árabes que traduziram para a sua língua o que havia de válido e interessante em todas as áreas do saber teórico e prático, e que souberam assimilar e enriquecer com o próprio gênio o tesouro cultural da Grécia antiga, do Egito, da Babilônia, da Síria, da Pérsia e da Índia. Os califas, protetores do saber, mecenas avisados de sábios e letrados, as escolas, as bibliotecas, o gosto dos estudos, o senso de organização dos árabes, permitiram aos cristãos europeus, após a reconquista de Toledo, de al-Andalus e dos outros centros urbanos islâmicos, a apropriação exultante de novas idéias, de conhecimentos teóricos e práticos, da poesia, da música e da arquitetura, que ensejaram no Ocidente a renovação cultural e o autêntico renascimento do século XII, matriz das universidades, das ciências e da filosofia no século XIII, e do progressivo crescimento do saber de então em diante. Como diz Haskins no seu livro célebre, The Renaissance of the 12th Century, o século XII viu a plenitude da arte românica, os albores do gótico, a difusão das literaturas vulgares, a redescoberta dos clássicos latinos, do direito romano, o estudo da ciência grega com seus apêndices árabes e de boa parte da filosofia grega.

 

Ponto alto dessa época foi o intenso trabalho dos tradutores, levado a cabo no sul da Itália, nas cidades da Espanha, sobretudo em Toledo.

 

A partir de 638, os Árabes, apoderaram-se da Pérsia, assim como da Palestina e da Síria, domínios de Bizâncio. Em 642 conquistaram o Egito. Antes de 732 já haviam tomado a Ásia central, a África setentrional e a Península Ibérica. A 19 de julho de 711, o persa Tarik bem Ziyad, governador de Tânger, derrotou o exército visigodo de Rodrigo. Em três anos completou-se a conquista da Espanha (712-715) que se converteu num emirado dependente do califado de Damasco. Só os montes das Astúrias, a Vascônia, e alguns vales pirenaicos, escaparam à sanha dos invasores. Nesse vastíssimo império, maior que o romano, estabeleceu-se o regime da religião única e da língua comum, o árabe, muito embora as minorias religiosas, sob certas condições, pudessem manter a observância da sua religião. Na Espanha, grandes camadas da população se islamizaram por completo, enquanto outras se assimilaram aos árabes, guardando, porém, a observância da religião cristã. A população moçárabe de Toledo, arabizada pela língua (moçárabe vem do termo árabe mosta’rab -arabizado), conservou os seus direitos durante o século XII e a primeira metade do XIII, em pacífica convivência com a comunidade judaica. O assassinato do rei de Toledo, al-Mamum, em Córdoba (1075), ensejou ao rei Afonso VI iniciar os ataques contra Toledo que, assediada durante quatro anos, se rendeu a 6 de maio de 1085, graças a um acordo entre o rei muçulmano, al-Qadir, neto e sucessor de al-Mamum, e o rei castelhano. É interessante observar que, na mesma data, os aventureiros normandos do conde Roberto Guiscardo de Hauteville livraram a Sicília e o sul da Itália do domínio muçulmano que durara dois séculos e fundaram o próprio principado. Desse modo, a conquista de Palermo, no sul da Itália, e de Toledo, na Espanha, vai dar início à grande reviravolta cultural da Idade Média latina, e essas cidades logo se tornaram centros de tradutores e de intensa atividade intelectual. Estudiosos cristãos, de várias partes da Europa, afluem a Palermo, e principalmente a Toledo, em busca do novo saber, dos livros antigos, das obras científicas e filosóficas dos árabes. Os tradutores valiam-se de judeus convertidos, conhecedores da língua árabe. A tradução era feita primeiro do árabe para a língua vulgar corrente, e depois o intérprete cristão retraduzia para o Latim. Às vezes, os judeus eram também autores e não apenas tradutores.

 

Um desses judeus convertidos, autor e tradutor, foi Pedro Afonso. Num dos apontamentos biográficos que antecede as suas obras na Patrologia Latina de Migne (Tomo 157, cl. 531-532), o seu autor, J. Labouderie, vigário geral de Avinhão, informa que Pedro Afonso se chamava, antes da conversão ao catolicismo, Rabbi Moise Sephardi. Nasceu em 1062 em Huesca, no reino de Aragão. Aos quarenta e quatro anos converteu-se à religião cristã e foi batizado em Huesca pelo bispo da cidade, Estevão, tendo recebido na pia batismal o nome de Pedro, em homenagem ao apóstolo cuja festa se celebrava e ao qual acrescentou o de Afonso, em honra de Afonso VI, rei de Castela e de Leão, que fez questão de ser seu padrinho e o nomeou médico da corte. Pedro Afonso passou, então, a ser vilipendiado e caluniado pelos seus antigos correligionários judeus e para lhes refutar as falsas acusações compôs um Diálogo em doze partes (títulos): Petri Alphonsi ex judaeo christiani Dialogi, lectu dignissimi, in quibus impiae Judaeorum opiniones... confutantur, quaedamque prophetarum abstrusiora loca explicantur. Os diálogos decorrem entre um judeu, Moisés - seu nome antes do batismo - que faz as objeções, e o cristão, Pedro Afonso - seu nome de batismo - que lhe responde vitoriosamente. Relevo especial cabe ao Quinto Diálogo, onde Pedro aduz os motivos que o levaram a abraçar a religião cristã de preferência à muçulmana, já que vivera entre os árabes desde à infância, e cuja língua conhecia perfeitamente.

 

José Maria Millás Vallicrosa em seus Estudios sobre historia de la ciencia española (pp. 197-198) adianta a hipótese de que seria “bem provável” que a conversão de Pedro Afonso se devesse ao trabalho catequizador dos monges cluniacenses, acolhidos com todos os favores na Espanha pelas dinastias de Castela e Aragão. Pouco se conhece, no entanto, a vida de Pedro Afonso. Sabemos que viajou para a Inglaterra e foi médico do rei Henrique I. A sua presença na corte inglesa se situaria à roda de 1110, um ano após a morte de Afonso VI. Ignora-se a data do seu falecimento.

 

Ao apreciar os Diálogos de Pedro Afonso, De Ghellinck, em L’Essor de la Littérature Latine au XIIe siècle, faz uma certeira observação. No século XII, diz ele, houve uns quinze autores que escreveram em reação à propaganda religiosa dos judeus, mas em geral esses escritos eram pouco eficazes, já que os autores ignoravam o hebraico, o Talmude e não compreendiam a mentalidade dos seus adversários. As exceções eram as obras de judeus convertidos ao cristianismo, tal como o Opusculum de sua conversione de Godofredo de Colônia, que se tornou o premonstratense Herman de Kappenberg, e o Dialogus de Pedro Afonso que era bem informado sobre o Talmude e os assuntos judaicos. O Prefácio dos Petri Alphonsi ex Judaeo Christiani Dialogi é altamente esclarecedor sobre a conversão, o batismo e os motivos da composição da obra. Pedro Afonso começa por orar a Deus Onipotente, Criador de todas as coisas, a Quem se dê honra e glória e cujo nome seja bendito pelos séculos dos séculos. De seguida, ele faz a sua profissão de fé na Santíssima Trindade, na Encarnação e Redenção de Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, e na concepção virginal de Maria Santíssima. Depois relata o seu batismo e a escolha do nome, como já noticiamos (PL 157, cl. 535-538).

 

Pedro Afonso elenca, a seguir, as acusações que lhe dirigiram os judeus e explica que no seu diálogo as razões defensivas do cristão são expostas pelo interlocutor com o seu nome cristão, Pedro, e as objeções e objurgatórias pelo que ostenta o seu nome anterior ao batismo, Moisés. Bipartição dialógica que nos lembra de imediato os Solilóquios de Sto. Agostinho em que este dialoga, ao que diz, “como se fôssemos dois: a razão e eu, estando eu sozinho, tanquam duo essemus; ratio et ego, com solus essem” (Retractationes,1,4,1).

 

A quinta parte dos Diálogos (Titulus V) é valiosa pelo depoimento autobiográfico, e muito interessante pela exposição e refutação da vida de Maomé e da religião muçulmana. Pedro Afonso confessa que conviveu com os muçulmanos, foi educado entre eles, aprendeu-lhes a língua e leu os seus livros. Mas, então, indaga Moisés, por que não optaste pela religião muçulmana em vez da cristã? Ao que responde Pedro Afonso: “Pelo fato de ter vivido entre os árabes, aprendido a sua língua e lido os seus livros, não se segue que eu devesse seguir a sua lei religiosa, quod superius me libros legisse, linguam scire, nutritum fore semper inter Sarracenos dixisti, no idcirco convenit ut illorum assequar legem “(PL 157, cl.602).

 

O maior título de Pedro Afonso, sem dúvida, o que mais lhe grangeou fama, sem embargo de seus méritos de tradutor científico, astrônomo e médico, foi o de introdutor do gênero literário do conto, da fábula, no Ocidente, na sua obra Disciplina Clericalis.

 

No prefácio desse livro ele faz solene agradecimento a Deus, a cuja inspiração atribui a composição da obra: “Dixit Petrus Alfunsus, servus Christi Jhesu, compositor huius libri... eodem Spiritu instigante...”. Note-se, ainda, a declaração do autor de que Deus o impeliu a traduzir este seu livro para o Latim: “Deus igitur in hoc opusculo mihi sit in auxilium, qui me librum hunc componere, et in Latinum transferre compulit” (PL 157, cl. 671), informação que se completa com o asserto final da obra: “Explicit Clericalis Disciplina translata a Petro Alfunso de Arabico in Latinum”(PL 157, cl.706), ou seja: “aqui termina o livro da Disciplina Clerical, traduzido por Pedro Afonso do árabe para o Latim”. Por conseguinte, segundo o depoimento do autor, a Disciplina Clerical foi escrita em árabe e depois traduzida para o latim. Ele, porém, não inventou os contos ou as fábulas que relata, mas urdiu-as em parte com provérbios dos filósofos, com os conselhos e as admoestações dos árabes em fábulas e poesias, e em parte com muitos exemplos dados através de animais e aves. A razão do título do livro, Clericalis Disciplina, explica Pedro Afonso, é que “reddit enim clericum disciplinatum”, isto é, torna o estudioso educado e, note-se, pelo teor dos contos, bem instruído moralmente, prevenido contra as dificuldades e os imprevistos da vida, contra as manhas das pessoas perversas. Ele também assevera que nada se acha em seu livro de contrário à crença cristã, de atentatório a fé. A Disciplina Clericalis, ao pé da letra, o ensino dos clérigos - tomando-se o termo "clérigo" por estudioso, douto, como era uso na época - compõem-se na edição de Migne de trinta contos de cunho moralizante, de fábulas com animais falantes. Noutras edições aparece maior número de contos, porque alguns destes contêm mais de uma historieta. Os contos iniciam-se com um pai que, antes de morrer, aconselha o filho a ser bom e prudente. Nos restantes ora fala o pai, ora o árabe, ora o filósofo, o sábio ou o mestre. Apesar da referência à origem árabe dos contos, Pedro Afonso utilizou também historietas de origem judaica, como se infere do conto XXV em que o filho pergunta ao pai como deveria responder a quem o convidasse a comer, e o pai dá o seu conselho com um passo do Talmude: “Fac sicut auctoritates judaeorum praecepit. Dicit enim...” (PL 157, cl. 700), recomendação que não seria feita por um muçulmano. É o que se deduz, ainda, do conto XVIII sobre o alfaiate e o seu discípulo Nediu, em que se aconselha a observância do preceito dado por Moisés no Levítico (XIX, 18) de amar o próximo como a si mesmo.

 

Convém, outrossim, ressaltar a técnica da narrativa na Disciplina Clericalis. O término de cada conto dá o tema para o seguinte. Michael Barry chama a atenção para a distante origem indiana do conto. “É no domínio mais humilde e familiar do conto, do fabliau, diz ele, que a marca árabe foi mais evidente. Exemplo primordial: a técnica narrativa de origem hindu, que consiste em encaixar uma série de contos uns nos outros, com um conto-prólogo para servir de moldura. Passando pela Pérsia e pelo Oriente Próximo árabe, essa técnica literária chegou, na Idade Média, até a Espanha. As mil e uma noites constituem apenas uma amostra popular desse gênero de literatura. Um exemplo mais estimado pelos próprios letrados muçulmanos é a coleção de fabliaux tendo como personagens animais, de Kalila e Dimna, de longínqua origem hindu, traduzida para o árabe culto no século VII, pelo iraniano Ibn al-Moqaffá, através de uma tradução hebraica na Espanha, antes de influenciar La Fontaine” (M. Barry, “A influência dos contos árabes”, in Toledo, séculos XII-XIII, p.211).

 

Angel González Palencia acha que Pedro Afonso se inspirou em Honáin Benishac, em Mobáxir, no Kalila e no Syntipas, e considera invejável a fortuna da Disciplina Clericalis. Os contos foram mais elaborados literariamente pelos seus imitadores e traduzidos em Hebraico, Francês, Alemão, Italiano, Inglês, Islandês, Catalão, Bearnês. Em Castelhano ficou incorporado no Libro de los exemplos de Sanchez de Vercial, com uma ordem distinta e, em sua maior parte, no Isopete historiado que o infante Dom Henrique de Aragão fez traduzir. Vicente de Beauvais cita esses contos no Speculum historiale e eles foram utilizados por dom João Manuel, o arcipreste de Hita, Boccacio, João de Timoneda, e outros (Palencia, História de la Literatura Arábigo-Española, p. 309-310).

 

Ramón Menéndez Pidal destaca o caráter misógino da obra de Pedro Afonso. “Na realidade, escreve, muitos dos contos estão longe de aspirar uma moral edificante. A seção mais copiosa é formada por seis narrações (uma quinta parte do total) dedicadas a mostrar a malícia e a infidelidade das mulheres, tema que a literatura contística árabe tomou da literatura hindu, particularmente abundante em relatos sobre as artimanhas e os enganos femininos” (Pidal, España, Eslabón entre la Cristiandad y el Islam, p. 21).

 

Pidal salienta, outrossim, o caráter parenético que a obra de Pedro Afonso assumiu. Ele toma como exemplo o conto X que, na Patrologia Latina de Migne, aparece como a Fábula VIII (PL 157, cl. 682): “Dictum est de quodam qui peregre proficiscens commisit uxorem suam suae socrui”. Um homem viajou para o estrangeiro e deixou a mulher aos cuidados da sogra. A mulher se enamorou de outro e o contou à mãe que, condoída de sua filha, lhe serviu de alcoviteira. Estavam os três a comer, quando inopinadamente chegou o marido. A mulher escondeu o amante na alcova e abriu a porta para o marido que foi logo declarando querer ir para a cama. A mulher, aflita, não sabia o que fazer. Então, a mãe lhe disse: Não te apresses, filha, em lhe preparar a cama, sem antes termos mostrado ao teu marido a colcha que fizemos. Aí a mãe segurou uma ponta da colcha e estendeu a outra à filha para que a levantasse” “Sicque lintheo extenso delusus est maritus quousque qui latuerat egrederetur amicus”. E assim o marido foi iludido, enquanto o amante escondido escapava por trás da colcha estendida. Agora vai, disse a mãe à filha, e estende a colcha que tecemos sobre a cama de teu marido. Este embeveceu-se com a beleza da colcha e com a habilidade de sua mulher, ao que esta ripostou: “Ai, filho, tenho tecido muitas como esta”. Findo o conto, o discípulo não se conteve de exclamar: “Mirabile quid audivi...” Esse conto, como esclarece Pidal, era narrado como um bom exemplo pelos pregadores no recolhimento das igrejas, e numa das compilações para pregadores, feita na França ou na Inglaterra no início do século XIV, intitulada Gesta romanorum, o exemplo 123 alegoriza os pormenores do relato picaresco: o marido viajante é o cristão cuja vida neste mundo é uma peregrinação. A mulher adúltera é a concupiscência e o vício. O retorno do marido que bate à porta é o arrependimento, a oração e o jejum. A sogra alcoviteira é o mundo pecador que cega o homem com a colcha das vaidades e prazeres.

 

Pedro Afonso previu a dificuldade que alguns leitores deparariam com o teor dos contos. Por isso, submete os seus escritos à correção dos doutores da fé, pronto a corrigi-los, e teve o cuidado de advertir os leitores no prefácio a lerem e relerem os passos difíceis, a refletirem, sempre conscientes de que o filósofo nada julga perfeito nas ações humanas: “Si quis tamen hoc opusculum humano et exteriori oculo percurrerit, et quid in eo quod humana parum cavit natura, viderit, subtiliori oculo iterum et iterum relegere moneo, et demum et ipsi, et omnibus fidei perfectis corrigendum appono: nihil enim in humanis actionibus perfectum putat philosophus” (PL 157, cl.672). Aliás, a Disciplina Clericalis, como afiança o autor, dirige-se aos doutos e não ao vulgo.

 

Resta, por fim, realçar um ponto importante e significativo da Disciplina Clericalis para a Filosofia. Ao discípulo que lhe pede a enumeração das sete artes liberais, das sete habilidades (probitates) e das sete virtudes (industrias), responde o mestre quanto às primeiras: “Estas são as artes: dialética, aritmética, geometria, física, música, astronomia, mas sobre a sétima há várias opiniões. Os filósofos que não seguem os profetas dizem ser a sétima a nigromancia. Alguns dos que crêem nos profetas e na Filosofia não consideram como ciência a arte que exorbita dos limites das coisas naturais ou dos elementos do mundo. Por fim, outros, que não se dedicam à Filosofia, acham que a sétima arte é a gramática”. Donde se conclui que no quadro das artes liberais de Pedro Afonso, elas se alinhariam como gramática (para os letrados), dialética, aritmética, geometria, física, música, astronomia. Comparada com a lista ocidental das sete artes liberais, essa classificação omite a retórica no trívio, e acrescenta a física ao quadrívio, enquanto noutro esquema omitir-se-ia a gramática no trívio, e se acrescentaria estranhamente a nigromancia ao quadrívio. Não fosse Toledo a cidade dos bruxos, como era fama na época! Como quer que seja, Pedro Afonso exprime a nova direção dos estudos no ambiente toledano do início do século XII, o ideal de um saber predominantemente científico, baseado no método experimental, a expensas das galas literárias da formação retórica.

 

De passagem, quero observar que o lanço, há pouco citado, sobre as artes liberais não parece fielmente traduzido por Lynn Thorndike em sua obra A History of Magic and Experimental Science (Vol.II, p. 72), versão que José Maria Millás Vallicrosa, por sua vez, endossa nos seus Estudios sobre historia de la ciencia española (p.199). “Quanto à sétima arte, traduz Thorndike, os que crêem na possibilidade das predições querem que seja a nigomancia, os filósofos que não crêem na nigromancia querem que seja a filosofia, enquanto outros afirmam que é a gramática”. Ora, no texto da Patrologia Latina de Migne, lê-se: “De septima vero diversae sunt plurimorum sententiae quaenam sit; philosophi qui prophetas nom sectantur, aiunt nigromantiam esse septimam. Aliqui ex illis qui prophetiis et philosophiae credunt, nolunt esse scientiam quae res naturales vel elementa mundana praecellit. Quidam qui philosophiae non student, grammaticam esse affirmant” (PL 157, Fábula III, cl. 678 D). Ora, Thorndike traduz o trecho acima grafado da seguinte maneira: “other philosophers who do not believe in predictions substitute philosophy”. Parece claro, entretanto, que, segundo Pedro Afonso, alguns dos que admitem as profecias e a Filosofia, só consideram como ciência a arte que tenha por objeto as coisas naturais ou os elementos do mundo, sensíveis, perceptíveis aos sentidos e, de modo nenhum, os espíritos evocados pela nigromancia que não pertencem ao rol das coisas sensíveis da natureza física.

 

Pelo ano de 1110 ou 1111, Pedro Afonso foi convidado pelo rei Henrique I, da Inglaterra, para ser médico da corte. Aí logo se celebrizou pelos conhecimentos científicos que entrou a difundir pelo ensino oral e por escrito, estimando auxiliar os que até se decidiam a fazer longa viagem para estudar no sul da Itália, na Espanha ou no Oriente. O seu relacionamento científico estabeleceu-se por primeiro com Walcher, prior do mosteiro de Malvern, um monge entusiasmado pela astronomia, que se refere a Pedro Afonso num tratado de 1120 como “magister noster Petrus Anfulsus”. Este lhe ensinou o sistema de graduação astronômica de origem árabe, assim como redigiu ou traduziu obras astronômicas em que apresenta tábuas cronológicas para vários planetas, trata dos solstícios e dos equinócios, exalta a importância do conhecimento experimental, etc., tal como no manuscrito da Biblioteca Bodleyana, “Sententia Petri Ebrei, cognomento Anphus, de Dracone...” no manuscrito do Corpus Christi College de Oxford, e noutro do British Museum, Arundel 270, todos incompletos, examinados e divulgados por Haskins, Thorndike e, sobretudo, Millás Vallicrosa. No último manuscrito citado, o texto seria o proêmio de uma obra que vinha a seguir seguramente, diz Vallicrosa que o aplaude efusivamente, como a primeira proclamação da nova ciência aos estudiosos da Europa. Aí Pedro Afonso minimiza a gramática que não deveria ser contada como arte, e encomia a lógica, a aritmética, a geometria, a música, a medicina mas, sobretudo, a astronomia, ciência das mais úteis que não contradiz a religião, pois entre a fé e a ciência reina a harmonia. Por isso, diz Millás Vallicrosa, “hoy día podemos reclamar para la figura de Pedro Afonso de Huesca una glória científica al lado de la celebridad literaria que hasta ahora le era reconocida” ( Estudios sobre historia de la ciencia española, p. 217).

 

Richar Lemay observa que Pedro Afonso estimulou numerosos estudantes ingleses da época, interessados no mundo cultural árabe, tal como Adelardo de Bath, Walcher de Malvern, Roberto de Chester, Daniel de Morley, e assevera que a vaga de ciência árabe, criada pelas traduções, e depois pelas obras originais desses estudantes ingleses, iria produzir no fim do século XII, e no começo do século XIII, a notável escola inglesa representada por Roberto Grosseteste e Rogério Bacon (in La Diffusione delle Scienze Islamiche nel Medio Evo. Convegno Internazionale, p.407).

 

Desse modo, o judeu converso, Pedro Afonso, alteia-se como um marco da revolução cultural européia particularmente pela sua estada em Londres desde 1110. Homem de cultura hebraica, árabe e latina, cristão convicto, médico e astrônomo, ele não se assinalou na História apenas pelo influxo da sua obra literária, a Disciplina Clericalis, mas representou inequivocamente o intelectual do renascimento da época, desse tempo-eixo que foi o século XII.

 

Referências bibliográficas

 

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