Exemplum de Maimundo Servo - As anedotas
 do Negro Maimundo
de Petrus Alfonsus 

 

Recolhemos aqui algumas curiosas passagens de Petrus Alfonsus - selecionadas do cap. XXVII da Disciplina Clericalis(1) -, que constituem seu momento de humor: as anedotas do negro Maimundo, o Exemplum de Maimundo Servo(2). (Seleção e tradução de Luiz Jean Lauand)

 

- (...) Por que ris? - perguntou o ancião.

 

- É que estou me lembrando do que ouvi sobre o preto Maimundo. Um ancião perguntou a Maimundo quanto ele podia comer. Ele retrucou: "Comida minha, ou de outro?". O ancião respondeu: "Tua". Replicou Maimundo: "O menos que puder". Perguntou o velho: "E se for de outro?". Maimundo respondeu: "Aí, o mais que puder".

 

E o ancião disse:

 

- Recordaste as palavras de um guloso, preguiçoso, tolo, falador e embusteiro, e que é, na realidade, muito pior do que o que dele se fala.

 

Mas o jovem pediu:

 

- Muito me alegraria ouvir outras anedotas dele, porque são muito engraçadas. Se te lembras de alguma, faz-me o grande favor de contar.

 

***

O senhor de Maimundo ordenou-lhe, certa noite, que fosse fechar a porta. Maimundo - que, oprimido pela preguiça, nem podia se levantar - respondeu que a porta já estava fechada.

 

Ao alvorecer, disse-lhe o senhor:

 

- Maimundo, vai abrir a porta.

 

- Como eu sabia que o senhor havia de querê-la aberta hoje, nem cheguei a fechá-la ontem.

 

O senhor, percebendo que, por preguiça, não a tinha fechado, disse-lhe:

 

- Levanta-te e faz o que tens de fazer, pois é dia e o sol já está a pino.

 

- Se o sol já está a pino, então dá-me de comer - respondeu Maimundo.

 

- Servo mau, nem amanheceu e já queres comer?

 

- Bom, se não amanheceu, então deixa-me continuar dormindo.

 

***

 

Em outra noite, disse o senhor a seu servo:

 

- Maimundo, levanta e vai ver se está chovendo!

 

Maimundo, porém, chamou o cachorro que estava deitado fora da porta e, quando ele chegou, apalpou-lhe as patas. Vendo que estavam secas, disse:

 

- Não, senhor, não está chovendo!

 

***

 

Noutra ocasião, também de noite, o senhor perguntou a Maimundo se tinham lume na casa. O servo chamou o gato e apalpou-o para ver se estava quente ou não. Como o gato estivesse frio, respondeu:

 

- Não, senhor, não temos fogo!

 

***

Disse o jovem ao ancião:

 

- Já ouvi as anedotas de preguiça. Gostaria agora de ouvir suas proezas de falatório.

 

E o velho contou o seguinte caso:

 

Contam que o senhor voltava do mercado, todo contente pelo bom lucro que tinha auferido. E veio Maimundo a seu encontro. O senhor, vendo-o, temeu que viesse dar más notícias, como era de costume, e advertiu-o:

 

- "Olha lá, Maimundo, não me venhas com más notícias!"

 

E o servo respondeu:

 

- Não contarei más notícias, senhor, mas nossa cadelinha Bispella morreu".

 

- Como foi que ela morreu? - perguntou o senhor.

 

- Nossa mula, assustada, quebrou o cabresto e, ao fugir, esmagou-a sob suas patas.

 

- E o que aconteceu com a mula?

 

- Caiu no poço e morreu.

 

- E como foi que ela se assustou?

 

- É que teu filho caiu do terraço e morreu. Com a queda, a mula assustou-se.

 

- E sua mãe, como está?

 

- Morreu de dor pela perda do filho.

 

- E quem está tomando conta da casa?

 

- Ninguém, porque virou cinzas: a casa e tudo o que nela havia.

 

- Como começou o incêndio?

 

- Na mesma noite em que a senhora morreu, a criada, no velório pela senhora defunta, esqueceu uma vela acesa na câmara e começou o incêndio, que se espalhou pela casa toda.

 

- E onde está a criada?

 

- Ela quis apagar o fogo, mas caiu-lhe uma viga na cabeça e ela morreu.

 

- E tu, como conseguiste escapar, sendo tão preguiçoso?

 

- Quando vi a moça morta, fugi.

 

O senhor procurou abrigo num vizinho que o acolheu e exortou-o a enfrentar cristãmente as adversidades.

 

Anedota do Pastor e do Mercador

 

Um pastor sonhou que tinha mil ovelhas. Um mercador quis comprá-las para revendê-las com lucro e queria pagar duas moedas de ouro por cabeça. Mas o pastor queria duas moedas de ouro e uma de prata por cabeça. Enquanto discutiam o preço, o sonho foi-se desvanecendo. E o vendedor, dando-se conta de que tudo não passava de um sonho, mantendo os olhos ainda fechados, gritou: "Uma moeda de ouro por cabeça e você leva todas..."(3).


(1). Encontram-se em PL 157, 671 e ss. Seguimos também o original latino da edição de Angel González Palencia, Madrid-Granada, CSIC, 1948.

(2). Nessas historietas, surge o servo Maimundus nigrus, o sagaz negro Maimundo - nome de nítida ressonância semítica - guloso, falador e preguiçoso, que nunca se dá mal. Uma espécie de Macunaíma ou Pedro Malazartes da época.

(3). Esta anedota é usada por Petrus Alphonsus para ilustrar a máxima: "As riquezas deste mundo são transitórias como os sonhos de um homem que dorme e que, ao despertar, perde, irremediavelmente, tudo quanto tinha, num abrir e fechar de olhos, como se diz vulgarmente".