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In Mortis Examine -
Nota sobre o Ave Verum Corpus Natum

 

L. Jean Lauand
Universidade de São Paulo
jeanlaua@usp.br

 

Uma breve nota sobre uma das mais belas páginas da poesia religiosa medieval: o Ave verum corpus natum, composto - ao que parece - por anônimo do século XIV. Além da tão suave melodia gregoriana tradicional, recebeu composições de Mozart, Schubert, Gounod e de muitos outros.

 

A partir do exame dos versos que a tradição litúrgica fez chegar aos dias de hoje, faço algumas observações que poderão, talvez, ser úteis para o resgate do texto original, face às dúvidas que a crítica histórica tem encontrado.

 

É uma poesia breve, de apenas cinco versos, mas de alta densidade teológica, celebrando os mistérios da Encarnação do Verbo, Paixão e Eucaristia(1). O texto oficialmente cantado hoje é o seguinte:

 

Ave verum corpus natum de Maria Virgine

Vere passum, immolatum in cruce pro homine

Cuius latus perforatum fluxit aqua et sanguine

Esto nobis praegustatum mortis in examine

O Iesu dulcis, o Iesu pie, o Iesu fili Mariae.

Salve, ó verdadeiro corpo nascido da Virgem Maria

Que verdadeiramente padeceu e foi imolado na cruz pelo homem

De seu lado transpassado fluiu água e sangue

Sê para nós remédio na hora tremenda da morte

Ó doce Jesus, ó bom Jesus, ó Jesus filho de Maria.

 

No criterioso artigo que escreveu para a Enciclopedia Cattolica, Igino Cecchetti aponta as dúvidas que pairam sobre a forma original do texto do Ave verum, dada a diversidade de formulações nas composições e códices(2):

 

- No 4º verso, a variante in mortis examine (em vez de mortis in examine).

 

- No 3º verso, unda fluxit et sanguine (em vez de fluxit aqua et sanguine).

 

- No 5º verso, O dulcis, o pie, o Iesu fili Mariae (em vez de O Iesu dulcis, o Iesu pie, o Iesu fili Mariae).

 

Procurando, diante dessas alternativas, reencontrar - a partir de um determinado ponto de vista - o texto original, parece que somente a primeira deve ser acolhida. Isto é, o Ave verum - tal como formulado por seu autor - seria o que atualmente cantamos, mas substituindo, no 4º verso, mortis in examine por in mortis examine.

Em que basear esta pretensão? Na análise interna do texto, considerado segundo os padrões de escrita medievais. Como se sabe, os autores antigos, ao escrever, não separavam as palavras, de tal modo que o poema se apresentaria da seguinte forma:

 

AVEVERUMCORPUSNATUMDEMARIAVIRIGINE

VEREPASSUMIMMOLATUMINCRUCEPROHOMINE

CUIUSLATUSPERFORATUMFLUXITAQUAETSANGUINE

ESTONOBISPRAEGUSTATUMMORTISINEXAMINE

OIESUDULCISOIESUPIEOIESUFILIMARIAE

É também bastante conhecido o gosto que os autores medievais tinham pelos acrósticos e outros arranjos de letras na poesia (é, e claro, em se tratando de canto, as vogais e seqüências de vogais - pense-se por exemplo na Salve Regina - passam a ter maior interesse...). No caso, a primeira vogal, A, como primeira letra do primeiro verso; E como segunda letra do segundo verso etc., até U, como quinta letra do quinto verso, constituiria um exemplo típico desses procedimentos.

Em função deste arranjo, podemos descartar a proposta alternativa - aliás tardia - do 5º verso na forma: O dulcis, o pie, etc. Lembrando, finalmente, que a terminação UM é, na época, abreviada por Û, e se supusermos - com alguns dos antigos códices - a variante in mortis examine, teremos:

 

AVEVERÛCORPUSNATÛDEMARIAVIRGINE

VEREPASSÛIMMOLATÛINCRUCEPROHOMINE

CUIUSLATUSPERFORATÛFLUXITAQUAETSANGUINE

ESTONOBISPRAEGUSTATÛINMORTISEXAMINE

OIESUDULCISOIESUPIEOIESUFILIMARIAE

Neste quadro, como destaco, ressalta um segundo arranjo intencional de vogais, uma seqüência A, E, I, O, U, cuja probabilidade de ocorrer casualmente é de ordem desprezível, digamos, um para dez mil...

 

Com isto, parece de fato mais plausível descartar as formulações: unda fluxit et sanguine e a atual mortis in examine e considerar que o texto original talvez seja o acima transcrito. Conjectura que, como tudo em História, requererá a confirmação documental...

 


1. Um comentário teológico de João Paulo II (junho de 1983) ao Ave Verum encontra-se em: http://www.geocities.com/Athens/Forum/6832/angelus.htm. Cf. também: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/john-paul-ii_ speech_18-march-1994_address-to-pc-culture_english.shtml e http://www.vatic an.va/news_services/or/viag_ap/bolod_ita.htm).

2. Não se trata aqui de discutir a autoria etc., mas somente a crítica interna do texto. Na recente edição de Manuel-A. Marcos Casquero & José Oroz Reta Lírica Latina Medieval II - Poesía Religiosa, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1997, os autores apresentam (p.698) o Ave Verum Corpus Natum como de autoria de Tomás de Aquino e com a seguinte forma:

Ave, verum Corpus natum / Ex Maria Virgine / Vere passum, immolatum / In cruce pro homine / Cuius latus perforatum / Vero fluxit sanguine / Esto nobis praegustatum / Mortis in examine / O dulcis, o pie / O Fili Mariae.