Uma breve nota sobre uma das mais belas páginas da poesia religiosa
medieval: o Ave verum corpus natum, composto - ao que parece - por anônimo do
século XIV. Além da tão suave melodia gregoriana tradicional, recebeu composições de
Mozart, Schubert, Gounod e de muitos outros.
A partir do exame dos versos que a tradição litúrgica fez chegar aos
dias de hoje, faço algumas observações que poderão, talvez, ser úteis para o resgate
do texto original, face às dúvidas que a crítica histórica tem encontrado.
É uma poesia breve, de apenas cinco versos, mas de alta densidade
teológica, celebrando os mistérios da Encarnação do Verbo, Paixão e Eucaristia(1). O
texto oficialmente cantado hoje é o seguinte:
Ave verum corpus natum de Maria Virgine
Vere passum, immolatum in cruce pro homine
Cuius latus perforatum fluxit aqua et sanguine
Esto nobis praegustatum mortis in examine
O Iesu dulcis, o Iesu pie, o Iesu fili Mariae.
Salve, ó verdadeiro corpo nascido da Virgem Maria
Que verdadeiramente padeceu e foi imolado na cruz pelo homem
De seu lado transpassado fluiu água e sangue
Sê para nós remédio na hora tremenda da morte
Ó doce Jesus, ó bom Jesus, ó Jesus filho de Maria.
No criterioso artigo que escreveu para a Enciclopedia Cattolica,
Igino Cecchetti aponta as dúvidas que pairam sobre a forma original do texto do Ave
verum, dada a diversidade de formulações nas composições e códices(2):
- No 4º verso, a variante in mortis examine (em vez de mortis
in examine).
- No 3º verso, unda fluxit et sanguine (em vez de fluxit
aqua et sanguine).
- No 5º verso, O dulcis, o pie, o Iesu fili Mariae (em vez de O
Iesu dulcis, o Iesu pie, o Iesu fili Mariae).
Procurando, diante dessas alternativas, reencontrar - a partir de um
determinado ponto de vista - o texto original, parece que somente a primeira deve ser
acolhida. Isto é, o Ave verum - tal como formulado por seu autor - seria o que
atualmente cantamos, mas substituindo, no 4º verso, mortis in examine por in
mortis examine.
Em que basear esta pretensão? Na análise interna do texto,
considerado segundo os padrões de escrita medievais. Como se sabe, os autores antigos, ao
escrever, não separavam as palavras, de tal modo que o poema se apresentaria da seguinte
forma:
É também bastante conhecido o gosto que os autores medievais tinham
pelos acrósticos e outros arranjos de letras na poesia (é, e claro, em se tratando de
canto, as vogais e seqüências de vogais - pense-se por exemplo na Salve Regina -
passam a ter maior interesse...). No caso, a primeira vogal, A, como primeira letra
do primeiro verso; E como segunda letra do segundo verso etc., até U, como
quinta letra do quinto verso, constituiria um exemplo típico desses procedimentos.
Em função deste arranjo, podemos descartar a proposta alternativa -
aliás tardia - do 5º verso na forma: O dulcis, o pie, etc. Lembrando, finalmente,
que a terminação UM é, na época, abreviada por Û, e se supusermos - com
alguns dos antigos códices - a variante in mortis examine, teremos:
Neste quadro, como destaco, ressalta um segundo arranjo intencional de
vogais, uma seqüência A, E, I, O, U, cuja probabilidade de ocorrer casualmente é de
ordem desprezível, digamos, um para dez mil...
Com isto, parece de fato mais plausível descartar as formulações: unda
fluxit et sanguine e a atual mortis in examine e considerar que o texto
original talvez seja o acima transcrito. Conjectura que, como tudo em História,
requererá a confirmação documental...