Não há melhor retrato da experiência vivida no Brasil
por Juan Valera que as cartas que dirigiu, entre 1851 e 1853, a seu amigo e conterrâneo,
o escritor espanhol Serafín Estébanez Calderón. Fruto da necessidade de preencher horas
de ócio, segundo declara o próprio autor, essas cartas foram escritas por um então
jovem diplomata que, entre as escassas tarefas de secretário da legação espanhola junto
à corte de Pedro II, ia ensaiando os primeiros passos de um caminho que o levaria à
consagração como um dos maiores romancistas espanhóis do século XIX.
Cartas dirigidas a um literato amigo, as páginas em que Valera
descreve o Rio de Janeiro de seus tempos pouco se detêm em acontecimentos e personagens
do Brasil oficial. Não que nelas não se encontrem alusões a nomes conhecidos, como
Varnhagen, a viscondessa de Olinda, a baronesa de Sorocaba e o próprio imperador. Mas,
como já tivemos ocasião de observar em outro estudo(1), as figuras retratadas na
correspondência de Valera, sejam brasileiras (como as que acabamos de mencionar), sejam
de estrangeiros residentes no Brasil (como o ministro Delavat, representante da Espanha,
ou o conde Meden, ministro russo), são todas traçadas com o humorismo que desde cedo
caracteriza o escritor.
Não é de estranhar, portanto, que mais que as solenidades oficiais, a
correspondência de Valera recorde os salões, os espetáculos e os passeios por ele
freqüentados no Rio de Janeiro de outrora. Os tempos eram propícios às celebrações. A
consolidação da monarquia, após o início do governo pessoal de Pedro II, a vitória
brasileira na guerra contra Rosas, a efervescência dos meios financeiros, tudo era motivo
ou pretexto para festejos e saraus. O grande baile do paço imperial, em agosto de 1852,
havia dado um exemplo seguido em muitos solares cariocas. Começavam os tempos em que no
Rio de Janeiro, "bailava-se cantava-se, passeava-se, ia-se ao teatro", segundo
as palavras de Machado de Assis(2).
Ao teatro, em particular, ia-se muitas vezes para desfrutar do
espetáculo predileto dos cariocas de então: a ópera italiana. É ainda Machado de Assis
quem descreve esse período como "tempos homéricos do teatro lírico"(3).
Desses tempos participaram também alguns espanhóis, como espectadores entusiastas, ou
mesmo como protagonistas. De fato, em 1858, poucos anos depois de Valera haver deixado o
Brasil, inaugurava-se no Rio a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional. Em sua
criação teve papel fundamental um compositor que chegara da Espanha na década anterior:
o "fundador, D. José Amat", ainda mais uma vez nas palavras de Machado de
Assis(4). Em carta de 1852, Valera menciona, justamente, "un español llamado
Amat", que difundia e compunha "canciones populares o modernas" e que
recebia "igual aplauso que Iradier en Madrid"(5).
Fosse ou não por influência de Amat, certo é que Valera se deixou
contagiar pela febre lírica do Rio de Janeiro. Tanto que lá escreveu a poesia Bella
Favorita, em homenagem à então célebre cantora Rosina Stoltz e, o que é mais
curioso, escreveu-a diretamente em italiano, língua por excelência da ópera lírica.
Sem se revelar como autor, distribuiu cópias de seus versos aos admiradores da artista.
É o que diz ele próprio a Estébanez Calderón: "El mes pasado le contesté a una
carta suya, y en la mía le mandaba unas coplas italianas que en elogio de la célebre
cantarina Rosina Stolz compuse no ha mucho, y sin poner nombre de autor hice imprimir, y
repartir en el teatro"(6).
Ainda aqui poderíamos notar que a "célebre cantarina" foi
evocada por Machado de Assis em termos semelhantes. De fato, ao recordar o Rio do passado,
afirma o mestre do Cosme Velho que em tempos idos "o público fluminense [...} ouviu
Stoltz [...] e quase todas as celebridades de há anos"(7). Enquanto esperavam
ansiosamente o momento de ouvir Rosina Stoltz e outras divas do teatro lírico, algumas
belas representantes do público do Rio transformavam seus salões em templos musicais. De
uma jovem vizinha da legação espanhola, ardorosa praticante do bel canto,
escrevia Valera que "me martiriza de continuo con el furor della tempesta".
E acrescenta que na mesma rua que se enchia com seus trinados, ressoavam também as
melodias de um flautista e as vozes de "dos o tres damas igualmente
filarmónicas"(8).
Mas nem só de canto viviam os salões cariocas dos tempos de Valera.
Ao canto se acompanhava com freqüência a dança. Ficaram famosos, por exemplo, os bailes
dados aos sábados na casa dos Bregaro. Os anfitriões eram um velho português, abastado
comerciante, e sua esposa, madura ex-cantora francesa, ainda vaidosa de sua beleza
outonal. Carolina Bregaro, filha do primeiro casamento do anfitrião, era nora da baronesa
de Sorocaba, irmã da marquesa de Santos. Eis por que quando os salões dos Bregaro se
iluminavam, com centenas de candelabros, para a lauta ceia seguida de esplêndido baile, a
eles acorria toda a alta sociedade do Rio de Janeiro(9). Uma dessas festas, amplamente
noticiada pela imprensa da época, deu-se em 1852, no dia de S. João, padroeiro da
senhora Jeannette Bregaro. A ceia foi alegrada com sorteio de prendas, música de piano e
flauta e, como seria de esperar, recital de canto. Algum tempo depois, em agosto de 1852,
a imprensa noticiou outra festa em casa dos Bregaro, desta vez com a presença da própria
Rosina Stoltz(10).
Como diplomata já então residente no Rio de Janeiro, é possível que
Valera haja comparecido a ambas as festas, embora em sua correspondência não se faça
menção expressa de nenhuma delas. O que se sabe é que Jeannette Bregaro logo notou com
interesse a presença do jovem espanhol recém-chegado ao Rio. Ele mesmo, com alusões
veladas, assim o diz a seu amigo de Madri: "Desde que llegué al Brasil, puso los
ojos en mí una cotorrona sabrosa, ex-prima donna, francesa de nación y casada hoy
con el Alfio de Río-Janeiro, usurero riquísimo"(11).
A princípio desdenhada por Valera, Jeannette logrou mais tarde
conquistá-lo, graças ao inesperado apoio do chefe do jovem diplomata. Pois foi o
ministro espanhol, D. José Delavat, quem lhe recomendou que cedesse aos encantos da
madura francesa, já que "la gallina vieja hace buen caldo"(12). Assim foi que
Valera se tornou assíduo convidado dos Bregaro e de seus aparentados, entre os quais a
baronesa de Sorocaba - a cujas relações amistosas com Valera já dedicamos um estudo
particular(13) - e a nora da baronesa, madame Delfim Pereira. Bem se explicam,
portanto, estas palavras em que o jovem espanhol descreve uma das festas em que esteve
presente: "La Baronesa bailará el londum y el fado; ma
Jeannette bailará el cancan y la polka-échevelée, y Madame cantará modiñas
brasileñas"(14).
Fora dos bailes e do teatro, o tempo livre de Valera no Rio era
dedicado a passeios pela cidade. Meta desses passeios era muitas vezes a rua do Ouvidor,
onde costumava comprar uma "infinidad de baratijas". Fazia compras na vã
esperança de agradar a uma compatriota de Jeannette Bregaro, ou seja, madame Finet
"vendedora de perfumes, guantes y otras niñerías"(15). Os passeios tinham de
ser feitos, mesmo no verão, sob o causticante sol tropical. É que à noite qualquer
pedestre podia ser surpreendido pelo improvisado sistema de descarga do lixo da cidade.
Com a habitual mordacidade, Valera assim o descreve: "[...] todos se acuestan a las
10 de la noche, y el que se queda en la calle, después de acabado el teatro, se expone a
que le llenen de lo que tiran de los balcones, y que no tiene nombre"(16).
Atirado às ruas ou amontoado em tonéis, o lixo era recolhido por
escravos, que o despejavam no mar. Muitos anos depois, em tempos de serviços públicos
mais adequados, recordava Joaquim Manuel de Macedo os barris cheios de refugo, esvaziados
nas praias por "escravos e negros africanos", que para isso percorriam a cidade
desde "oito horas da noite até as dez"(17).
Resistindo a este e a outros duros trabalhos que lhes eram reservados,
os escravos mantinham a memória de suas origens e conservavam costumes particulares.
Valera não deixa de registrar suas "fiestas particulares", presididas por
alguém que era nomeado "Rey del Congo o de Guinea"(18). Observa também seus
exercícios de combate, alguns dos quais "consisten en darse topetadas como los
carneros", chegando a tais extremos de força que alguns lutadores "hacen echar
las tripas por la boca al más pintado de los antagonistas"(19).
Os exemplos até agora apresentados esclarecem o que de início se
dizia, ou seja, que o epistolário de Valera é o melhor retrato da experiência por ele
vivida no Brasil dos primeiros anos do governo de Pedro II. São exemplos que esclarecem,
também, por que o epistolário de Valera, a despeito de pouco se ocupar de grandes
eventos da história brasileira e ainda que esteja longe de ser uma descrição
"fiel" da vida social da época (pois à tentação do humorismo o escritor
quase nunca resiste) pode ser de grande valor para quem queira estudar a vida carioca dos
anos ao redor de 1850. Esse epistolário representa, além disso, como temos insistido em
afirmar em outros trabalhos, um documento de importância insubstituível para o
conhecimento dos laços existentes entre Brasil e Espanha no século XIX, ou seja, em um
período que só agora começa a receber atenção mais detida por parte dos pesquisadores
das relações culturais hispano-brasileiras.