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Sociedade
Vigiada
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Jaques de Camargo Penteado
(Procurador de Justiça do Estado de São
Paulo e Professor de Direito Processual)
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"Por trás de Winston a voz da teletela tagarelava a
respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e
transmitia simultaneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um
cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de
visão da placa metálica, poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de
determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível
saber com que freqüência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento ligava para a
casa deste ou daquele indivíduo. Era concebível, mesmo, que observasse todo mundo ao
mesmo tempo. A realidade é que podia ligar determinada linha no momento que desejasse.
Tinha-se que viver e vivia-se por hábito transformado em instinto na
suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no
escuro" George Orwell, 1984, 7a ed., São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1973,
p. 8.
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Introdução
Animal racional, o homem é formado de
matéria e espírito. Neste interagem a inteligência, a vontade, a memória e a
imaginação que operam por meio do corpo. O intelecto é apto para encontrar a verdade e
a vontade é capaz de recepcionar o bem. Exsurge a magnífica possibilidade de opção que
se traduz na liberdade e caracteriza a pessoa humana. "A liberdade humana há de pois
constituir antes um ser de espécie positiva: a estrutura íntima de tudo quanto acontece
por meio do homem e que aponta para a sua essência. Um ente é livre, não na medida em
que é independente de outros entes ou de leis, mas na medida em que é dependente de si
próprio, em que se possui a si mesmo, e nesta relação consigo mesmo encontra o
fundamento bastante do seu ser e do seu comportamento"(1).
No Interior do homem, a vontade movimenta a
inteligência para conhecer o bem e se delineia a própria vida individual com a
definição daquilo que o ser humano quer e aquilo que não quer. Fica traçada a
irrepetibilidade de cada vida. Planos e desejos, gostos e desgostos, satisfações e
carências, segurança e medo, idéias e emoções permanecem no interior do homem.
Retiram-no do gênero e o fazem espécie. Deixou-se o abstrato e se está diante da
concreção. Um ser em si que outrem não é capaz de desvendar. É condição de
existência recolher-se na sua interioridade e viver sem intromissão de terceiros. O
conceito moderno de privacidade consiste no "direito de uma pessoa a ser deixada em
paz para viver sua própria vida com o mínimo de ingerências exteriores" (Congresso
de Estocolmo 1967).
Racional, o homem é também social.
Realiza-se na comunidade. Naturais necessidades levam-no a exteriorizar o que está em sua
intimidade. A comunicação é vital. Umas vezes simplesmente para expressar e outras
vezes para se realizar. Aquelas como mecanismos de descompressão ("jogar conversa
fora") e estas diante da impotência para, isoladamente, alcançar os seus fins
(terceira dimensão revolucionária: liberdade, igualdade e fraternidade). Confia o seu
interior por mero exercício de sociabilidade e descobre a sua intimidade para receber
ajuda qualificada, conseguir trabalho que o dignifique. Abre-se ao amigo e se revela ao
profissional capaz de o curar, amparar, ilustrar, assegurar. Precisa do médico, do
advogado, do empregador... Precisa ser ele mesmo, espontaneamente, livre(2).
"Ainda que a legislação de um país
não protegesse a vida privada existiria em todos os homens um dever moral de o fazer, já
que se trata de âmbitos que se referem à dignidade da pessoa como tal, aos seus direitos
fundamentais, naturais. Com efeito, se a pessoa só fosse pessoa pelo reconhecimento da
sociedade não haveria nenhuma razão para que se respeitasse a sua intimidade e vida
privada. No entanto, a verdade é precisamente o contrário: a sociedade é para a pessoa,
não a pessoa para a sociedade. Como já se viu noutros temas, as pessoas têm deveres
muito concretos para com a sociedade, mas entre estes deveres não está incluído a sua
anulação, a desaparição da sua personalidade"(3).
As normas em vigor
No caso brasileiro, a Constituição da
República garante um estado democrático de direito, a dignidade da pessoa humana,
visando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com prevalência dos
direitos humanos, sendo invioláveis a "intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação", a casa é o asilo inviolável do indivíduo e
inviolável é a comunicação entre as pessoas, são inadmissíveis as provas obtidas por
meios ilícitos, poderá haver restrição à publicidade dos atos processuais quando a
defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem (arts. 1 o, 3o, 4o e 5o).
Os organismos internacionais também asseguram
a privacidade. Proclama a Declaração Universal dos Direitos do Homem que "ninguém
será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua
correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à
proteção da lei contra tais interferências ou ataques" (art. XII). Enuncia o Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos que "ninguém poderá ser objeto de
ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu
domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais a sua honra e
reputação" e "toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas
ingerências ou ofensas" (art. 17).
Sob o título de proteção da honra e da
dignidade, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos dispõe que "ninguém poder
ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua
família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua
honra ou reputação" (art. 11, n. 2).
Também a Convenção Européia dos Direitos
do Homem determina que "qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada
e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência" e "não pode haver
ingerências da autoridade pública no exercício destes direitos senão quando esta
ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade
democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública,
para o bem-estar econômico do país, a defesa da ordem e a prevenção de infrações
penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades
de terceiros" (art. 8 o).
A doutrina européia exige do Estado "um
papel activo inerente ao efectivo respeito da vida privada e familiar", devendo ser
ressalvado "um justo equilíbrio entre o interesse geral e o interesse do
indivíduo", entendendo-se que o "direito ao respeito da vida privada não se
limitava a possibilitar ao indivíduo o viver protegido da publicidade no desenvolvimento
de sua personalidade, mas ainda o de travar relações com outros seres humanos",
exigindo-se que a lei reguladora seja "acessível, precisa e compatível com a
preeminência do direito, pois o cidadão deve poder dispor de informações suficientes,
nas circunstâncias do caso, sobre as normas jurídicas aplicáveis e poder prever as
conseqüências que podem decorrer de determinado acto", lei que deve "fixar o
conteúdo da restrição; os cidadãos poderão reclamar um controle sobre essas
restrições, sempre que possível judicial, ainda que um controle parlamentar e mesmo um
administrativo com um mínimo de eficácia se admita", a "medida deve responder
a um motivo social imperioso ou a motivos pertinentes e suficientes; a medida restritiva
terá de ser a menos gravosa das disponíveis, no justo equilíbrio entre o interesse
público e a vida privada, e mostra-se proporcional ao fim a atingir"(4).
Os valores de nosso tempo
O Estado, os organismos privados e cada um de
nós, individual e concretamente considerados, estamos convocados à educação para a
cidadania, para a convivência das pessoas, para a construção de situação propícia ao
desenvolvimento de cada um segundo as suas potencialidades. Como nos realizamos em
sociedade, precisamos promover o bem comum que compreende o respeito pela pessoa, o
provimento das suas necessidades básicas e a fixação de uma ordem justa e permanente.
Uma sociedade que se baseie no consumismo
desenfreado, na concentração perniciosa das rendas, no amoralismo dos meios de
comunicação de massa, no desinteresse pelo destino dos mais fracos, pautando-se pelo
radicalismo do movimento de lei e ordem que cria um número cada vez maior de figuras
criminosas e comina penas cada vez mais graves, não pode ainda que a pretexto de
proteger a propriedade instalar um sistema de vigilância totalitário que prive o
ser humano de sua natural inclinação à sociabilidade.
É lógico que não se pode viver com um
trânsito caótico e inseguro e que os avanços tecnológicos devem ser empregados para
punir os infratores, mas não é razoável que se fotografe o motorista (basta a placa do
veículo), deve ser disciplinado o destino da fotografia, o responsável por sua
custódia, a questão de sua divulgação, a sua destruição oportuna, as conseqüências
da publicidade indevida e tantos outros pontos. O que não se aceita é um método de
instrução de motoristas que não os ensina a dirigir cabalmente, um processo de
habilitação superficial, a eventual corrupção de fiscais de trânsito e, diante de
tanta imprevisão, que o cidadão cumpridor dos seus deveres acabe fotografado no interior
de seu carro e, pior, tenha a fotografia divulgada.
Pior ainda se o cidadão retratado for uma
autoridade pública e não houver notícia de que tenha sido multado por eventual
violação de regra de trânsito. Seriam normas que, como teias de aranha, prenderiam os
débeis, mas seriam destruídas pelos fortes e poderosos. Teríamos um sistema em que os
idosos, as senhoras e os pacatos seriam constrangidos por truculentos "seguranças
particulares" à porta de bancos e os grandes crimes financeiros continuariam a ser
perpetrados pelos "colarinhos brancos" que entram no mesmo edifício pelo
heliporto. A segurança com justiça deve ser igual para todos.
Não é possível um guarda para cada
cidadão. Um cidadão, em princípio, não precisa de guarda porque bem formado. A
democracia implica educação para o respeito aos direitos dos demais. O homem não é nem
o inocente de Rousseau e nem o perverso de Hobbes, mas um ser com qualidades positivas e
negativas e que pode lesar bens jurídicos alheios e, portanto, ser submetido ao devido
processo legal e punido com justiça para que aprenda a viver em comunidade, se recupere e
para que os demais evitem violar as normas. É evidente a vantagem de se prevenir a
ocorrência de infrações. Contudo, a forma de prevenir violações é importante.
Devemos promover segurança sem violar os
direitos humanos. Portanto, a vigilância eletrônica deve ser objeto de legislação
específica que preveja as hipóteses de aplicação, a forma de sua utilização, a
preservação das imagens gravadas, a disciplina de seu uso, guarda e destruição. O
problema não é do uso da tecnologia ou da presença física de um funcionário
encarregado de segurança, mas a falta de norma que, criando um sistema equilibrado,
enseje a vigilância com certa cautelaridade, exigindo ao menos a probabilidade de lesão
a bem jurídico para a sua atuação, em vez de total e indiscriminada incidência.
Ninguém questionaria que se acionasse o
sistema de filmagem das cenas de um assalto a partir do momento em que se percebesse a
ocorrência ilícita, o que não é aceitável é que todos os cidadãos sejam submetidos
à gravação indiscriminada em situações de absoluta tranqüilidade. Por outro lado, as
gravações de crimes deveriam ser imediatamente entregues para as autoridades públicas
definidas em lei, pois não é razoável que se veicule em redes de televisão as cenas
que identificam inocentes, prováveis testemunhas que podem ser alvos dos integrantes do
crime organizado. Não se sabe se houve cortes nas filmagens e sequer o seu destino.
Portanto, deve ser regulada por lei a atividade preventiva de colheita de provas de
infrações, fixando-se um mínimo de razoabilidade para início das filmagens.
Enquanto não há sequer ameaça de lesão a
bem jurídico não deve ser permitida a filmagem. Em princípio, as cidades devem ter um
mínimo de segurança para que sejam utilizadas por aqueles que pagam impostos. Uma cidade
insegura não atrai investimentos, turismo e não oferece um nível adequado de vida aos
seus integrantes. Se o grau de violência é tão intenso que exigiria a instalação
permanente de sistema de vigilância eletrônica é porque as autoridades encarregadas da
segurança falharam. Estas autoridades estão convocadas a melhorar a distribuição de
renda, a escola pública e privada, a saúde pública, o sistema carcerário. Punir os
culpados com justiça e não subtrair a privacidade dos cidadãos.
Hipóteses de desvendamento da privacidade
Em princípio a Constituição Federal protege
a privacidade das pessoas. É viável a interceptação telefônica, por ordem judicial,
nas hipóteses e na forma da lei, para fins de investigação criminal ou instrução
processual. Sobreveio a Lei 9.296/96 que impede a gravação telefônica quando não
houver indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal, a prova
puder ser feita por outros meios disponíveis ou o fato investigado constituir infração
punida, no máximo, com pena de detenção. Como diz Nelson Nery Jr. a "solução da
lei, quanto à necessidade da interceptação telefônica nada mais é do que, na
prática, a adoção do princípio da proporcionalidade, já que a ofensa ao direito
constitucional de inviolabilidade da comunicação telefônica não se justifica, ou seja,
é maior do que o benefício que eventualmente se pretenda obter com tal ofensa"(5).
Exige-se, mais, a descrição clara da situação investigada e a indicação dos
investigados. O pedido deverá demonstrar que a interceptação é necessária à
apuração de infração penal e os meios a serem empregados. A decisão judicial deverá
ser fundamentada, indicando a forma de interceptação e a sua duração que não poderá
exceder 15 dias, em regra. A gravação será transcrita e encaminhada ao juiz acompanhada
de relatório. Prevê a inutilização da gravação que não interessar à prova.
É crime realizar interceptação de
comunicações telefônicas, de informática ou de telemática, sem autorização judicial
ou com objetivos não autorizados em lei. A pena é 2 a 4 anos de reclusão. Enfatiza-se a
preservação da privacidade: "assim, o terceiro, cuja conversa foi interceptada em
face de ter mantido comunicação com o investigado, deve ter sua intimidade respeitada.
Pode participar do incidente de inutilização da prova. Para proteger a sua privacidade,
deve-se assegurar sigilo da conversa durante o processo, até o seu encerramento e, por
isso mesmo, pune-se a revelação do segredo de justiça"(6).
Os demais casos são protegidos pelo direito à indenização pelo dano material ou moral
decorrente da violação, em regra.
"No campo das proibições da prova, a
tônica é dada pela natureza processual ou substancial da vedação: a proibição tem
natureza exclusivamente processual quando for colocada em função de interesses atinentes
à lógica e à finalidade do processo; tem, pelo contrário natureza substancial quando,
embora servindo imediatamente também a interesses processuais, é colocada essencialmente
em função dos direitos que o ordenamento reconhece aos indivíduos, independentemente do
processo"(7). De ambas as situações exsurge a ilegalidade
(ilegitimidade na primeira e ilicitude na segunda). A ilegitimidade é sancionada com
nulidade. A ilicitude com a inadmissibilidade da prova. A violação da privacidade, em
princípio, gera a inadmissibilidade da prova. Não deve ser incluída no processo. Se o
for deve ser excluída. A ilicitude da prova obtida com violação de privacidade
estende-se às provas derivadas. Aplica-se a teoria da árvore envenenada que, assim,
produz frutos imprestáveis.
Casos julgados
O direito norte-americano vem alargando o
campo de inadmissibilidade de provas ilícitas. Desde 1914, no caso Weeks, a Suprema Corte
considerou "um prejudicial erro a admissão, por uma corte federal, de documentos
apreendidos na casa do acusado sem o respectivo mandado, com violação da IV Emenda; a
partir daí, fixou-se nas cortes federais, a regra de exclusão segundo a qual são
inadmissíveis as provas obtidas com violação das garantias constitucionais; e essa
regra passou a vigorar também, posteriormente, na maioria dos estados americanos"(8).
Veja-se que Frank Costello, conhecido big shot norte-americano, ao ser inquirido, em New
York, pela Comissão Parlamentar de Inquérito incumbida de investigar a ação corruptora
do banditismo organizado, opôs-se, com êxito, a ser televisionado com base no direito à
imagem, pois não queria ver amplificada a sua posição de mero acusado que poderia ser
absolvido.
O caso Nixon, segundo lembra Clóvis Almir
Vital de Uzeda, é um exemplo de proteção á privacidade, de um governo de leis e não
de reis, pois tudo começou com a invasão do escritório do Partido Democrático por
alguns cubanos que foram presos, seguindo-se proposta de acordo em que receberiam a
suspensão do processo que tratava do caso como simples invasão, mas o juiz percebeu que
não era razoável a barganha, já que cubanos recém-chegados não se prestariam à uma
simples invasão sem outros interesses, vislumbrando crime de maior gravidade e
participação de outras pessoas. Percebera um delito com conotação política e as
investigações tiveram continuidade, obtendo-se algumas confissões e delações de forma
que se chegou à conclusão de que havia um crime grave e existiam indícios de co-autoria
do Presidente. Com base nisso cautelaridade foi ordenada a apreensão de
fitas que o Presidente tinha em seu poder e continham algumas conversas com terceiros
sobre o caso. Nixon alegou privilégio presidencial para não entregar as fitas, mas a
Suprema Corte, por unanimidade ordenou a entrega das fitas. O conteúdo foi avaliado como
prova de co-responsabilidade presidencial e a conseqüência foi a renúncia. Portanto,
tudo começou porque se preservou a inviolabilidade do escritório político e houve mera
apreensão de fitas que estavam no governo. Tudo dependendo de autorização judicial e
depois de prova do crime e de indícios da autoria.
Recentemente a justiça norte-americana
reconheceu o direito à privacidade da esposa cujo marido instalou sistema de
monitoramento visual de sua residência que controlava do seu escritório.
A nossa Constituição Federal, como vimos,
protege integralmente a privacidade. Muito antes da atual Constituição, em 1922, a Miss
Brasil da época obteve interdito proibitório contra cinegrafista que a filmou em
ângulos inconvenientes à sua reputação e não se divulgou a filmagem. Pode-se obter
medida cautelar impediente de divulgação indevida da própria imagem. Como escreveu
Walter Moraes um dos maiores estudiosos do direito à personalidade trata-se
de bem jurídico autônomo. A regra de aquisição da imagem é a regra de conteúdo
negativo porque a própria imagem é para o sujeito um bem inato, como inato é o direito
a ela. A pessoa surge no mundo do direito já revestida de uma figura que lhe compõe
naturalmente a personalidade. Com a idéia de personalidade é necessariamente anterior à
aquisição (que pressupõe aquela), o direito à imagem não se adquire, surge com a
personalidade. No curso da vida, o sujeito tampouco pode adquirir outra imagem, mas apenas
transformá-la. O ato de fotografar alguém depende do consentimento deste enquanto
implique reprodução que é presumida. Não é verdade que podendo ver possa fotografar,
pois este ato fixa a imagem e induz a reprodução. Ver é natural; fotografar, não. O
Código Civil assegurava à pessoa representada a oposição à reprodução de seu
retrato (art. 666, inc. X). A lei de direitos autorais também exige autorização do
retratado para eventual reprodução(9).
Privacidade e consumidor
Nas hipóteses de seleção de pessoal ou
abertura de crédito é comum a solicitação de dados para compor cadastros. É
aceitável a exigência desde que haja autorização do investigado, necessidade,
correlação entre a investigação e o objetivo visado, limitação, preservação e
possibilidade de contestar eventuais dados incorretos. Trata-se, ainda uma vez, da
aplicação da regra da proporcionalidade, isto é, não se pode violar a privacidade que,
em princípio, é intangível, salvo a imperiosa necessidade de consecução de um bem
igual ou superior à própria privacidade. Ninguém deve ser compelido a negociar com um
desconhecido, mas não é necessário que se conheça a intimidade de outrem para
concessão de mero crédito de valor pouco expressivo. Como a fidelidade é essencial a
todo relacionamento humano necessidade da confiança para a normalidade das
tratativas é razoável que se conheça o passado de um candidato a um posto, mas
não se pode admitir a devassa indiscriminada de sua vida e, muito menos, a divulgação
indevida de dados obtidos. Penso que todos devamos defender a privacidade, justamente
quando não estamos envolvidos no processo de sua eventual violação. Não é de esperar
que lute pela preservação da privacidade o desempregado ávido por encontrar trabalho.
Não é bom que nos acostumemos à violação da privacidade, sob pena de perdermos a
nossa pessoalidade. Dizer o que pensamos, acreditar na volatilidade da palavra, preservar
a liberdade individual é essencial à humanidade.
Penso que é razoável a informação ao
interessado acerca da negativa avaliação de seus dados, até porque os seres humanos tem
esta maravilhosa possibilidade de se aperfeiçoar e, conhecendo eventual erro, mudar para
melhor. O aperfeiçoamento interessa a todos. Pode ser evitado um erro de captação de
dados. Superada uma informação parcial. Deve ser instituída a possibilidade de revisão
das decisões, justamente porque somos falíveis. Conta-se que um importante membro da
justiça foi injustamente preterido em suas promoções em face de errada anotação em
sua ficha funcional.
Todos têm direito a receber dos órgãos
públicos as informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral,
que serão prestados no prazo legal, sob pena de responsabilidade, salvo caso de sigilo
que implique a segurança social (Art. XXXIII, da Constituição Federal). É assegurado o
remédio do habeas data para cognição de informações relativas à pessoa do
interessado, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de
caráter público. É possível a retificação de dados, via habeas data, quando não se
prefira fazê-lo por processo sigiloso. O consumidor pode ter acesso às informações
existentes em cadastros arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.
Estes cadastros devem ser claros e as suas informações negativas não podem compreender
período superior a 5 anos. O interessado pode exigir a correção de dados inexatos (art.
43, do Código de Defesa do Consumidor).
No final do século passado, um parlamentar
inglês recomendava o encerramento das atividades do Departamento de Patentes e
Invenções britânico, proclamando que tudo o que poderia ser descoberto já estava
desvendado. Caso tivesse vivido alguns anos mais, ficaria assombrado. Todavia, se chegasse
ao final deste milênio, constataria que a revolução tecnológica pode anular direitos e
garantias individuais conquistados ao longo do tempo por revoluções que envolveram os
ideais e as lutas de muitos. Impressiona perceber que a técnica destinada a assegurar o
"maior tempo disponível para que os homens possam efetivamente participar do mundo
da cultura"(10), institua uma cultura sem o homem, sem os seus
ideais e sem os seus direitos fundamentais. Interessa o lucro, o emprego de novas
tecnologias no tempo mais rápido possível para que não sejam superadas; deixa-se o
individual e se passa ao coletivo no qual importa a empresa, a instituição, em vez da
pessoa. Poderemos perder a privacidade, o próprio eu, deixaremos de ser pessoas para ser
membros abstratos de grupos. A história da luta pela liberdade é a história da própria
civilização. A liberdade é essencial ao homem, a tecnologia é para o homem, o homem
deve lutar sempre para se manter livre.
Privacidade e mídia
Os meios de comunicação em geral e a
televisão em particular mereceriam um tratamento específico, pois vivemos sob o império
da "videocracia" que manipula informações e deforma a sociedade. Há ofensa ao
direito da personalidade na filmagem oculta de pessoas em situações constrangedoras. O
desserviço é evidente. No lugar de ensinar o respeito ao próximo como essencial à
cidadania, mostra-se impunemente a ridicularização dos seres humanos. Os atingidos
deveriam acionar os culpados, as autoridades deveriam tomar providências e cassar as
concessões aos infratores e nós deveríamos deixar de assistir a programas que firam a
imagem das pessoas.
Privacidade e passividade
As pessoas aceitam a invasão da privacidade
porque estão desprotegidas pelo Estado. Por medo, insegurança e falta de confiança,
passivamente, aceitam as violações à sua imagem e interioridade imaginando que ficarão
mais resguardadas. Fugimos das praças, muramos as casas, gradeamos as janelas,
eletrificamos as cercas, blindamos os carros, fixamos olhos virtuais, perdemos a
privacidade e continuamos presa fácil da violência. Olvidamos as causas interiores.
Estamos vivendo uma crise de valores. Uma crise não é o fim, mas o momento de retificar.
Boa parte dos problemas sociais, inclusive a criminalidade, advém da perda do valor da
Família como instituição natural de formação dos homens. Os casamentos são
descartáveis, os filhos entregues à babá eletrônica, os velhos mandados aos asilos;
foi criado um verdadeiro caos e, depois, tentamos resolver tudo a partir de soluções
externas e colocamos um olho para mostrar nossos eventuais desvios quando deveríamos usar
a tecnologia para aumentar nossa possibilidade de fazer coisas boas, talvez pequenas
coisas no dia a dia, mas essenciais à natureza humana que é social.
A segurança da preservação de dados é
praticamente nenhuma. O caixa do banco que manipula os seus cheques pode saber onde você
comeu, quem é o seu médico, que contratou um advogado criminalista... É preciso manter
a privacidade. Colher menos dados. Preservá-los. Por que devo fornecer meu telefone se
uso um cartão de crédito? Por que devo fornecer meus dados quando emito um cheque para
pagar uma conta qualquer?
Muitas das atividades de investigação
particular são ilegais. A Constituição Federal não as permite. Uma importante revista
acaba de registrar que altos executivos pagam experts na violação da privacidade para
conhecer a vida de seus subordinados. Lucros compensam a violação da liberdade
individual? A resposta a esta indagação dá o rumo da sociedade que desejamos(11).
Conclusão
Devemos encontrar o ponto de equilíbrio:
proteger os bens e preservar os direitos fundamentais. Penso que devemos ser livres,
iguais e fraternos. Vigiados totalitariamente, teremos as nossas pessoas sob o poder de
uns poucos que nos tratarão como objetos. Perderemos a pessoalidade.
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1- Jorge de Figueiredo Dias, Liberdade-Culpa-Direito
Penal, 3a ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 144.
2- "O desacerto moral, o pecado, o vício,
é, nesse contexto, precipuamente uma voluntária recusa a seguir leis que estão
impressas no próprio ser do homem. A-gir contra a moral adquire, desse modo, um caráter
de auto-agressão: assim co-mo golpear uma parede com a cabeça viola leis
físico-biológicas, assim também pode haver uma violação de leis morais, referentes à
realização do ser do ho-mem em sua totalidade. Por exemplo, alguém que pautasse sua
vida pela má-xma: "Amar-me a mim mesmo sobre todas coisas!" estaria violando
também u-ma lei natural, referente à natureza humana: pois o homem é um ser tal que sua
felicidade, sua realização, é como diz Kierkgaard uma porta que abre para
fora: quem a força para abrir para dentro, emperra-a" (Luiz Jean Lauand, Ética e
Antropologia, São Paulo, Mandruvá, 1997, p. 12).
3- Rafael Gomez Perez, Problemas Morais da
Existência Humana, Lisboa, Edições Prumo, 1983, p.184.
4- Ireneu Cabral Barreto, A Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Aequitas-Editorial Notícias, 1995, p. 126.
5- Nelson Nery Jr., "Proibição da Prova
Ilícita", in Justiça Penal 4, coord. Jaques de Camargo Penteado, São Paulo,
Revista dos Tribunais, 1997, p. 26.
6- Antonio Scarance Fernandes, "A Lei de
Interceptação Telefônica", in Justiça Penal 4, coord. Jaques de Camargo
Penteado, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 68.
7- Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance
Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho, As Nulidades no Processo Penal, 6a ed.,
São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 131.
8- Antonio Magalhães Gomes Filho, Direito à
Prova no Processo Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 101.
9- Walter Moraes, Direito à Própria Imagem,
RT 443/64
10- Miguel Reale, "Globalização e crise da
liberdade", O Estado de S. Paulo, 10.8.1996, p. A2.
11- Recomenda-se a leitura do clássico "O Direito de Estar
Só: Tutela Penal da Intimidade", de Paulo José da Costa Jr., São Paulo, Revista
dos Tribunais, 1970.
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