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Confúcio e a Revelação Primitiva
 

Mario Bruno Sproviero
(Prof. Associado DLO-FFLCHUSP)

 

 

"Uma consciência autêntica da tradição nos torna livres e independentes em relação ao conservadorismo daqueles que se pretendem 'os guardiães da tradição'. E na verdade pode ocorrer que esses famigerados 'bastiões da tradição' por se aferrarem a formas históricas impeçam a verdadeira transmissão daquilo que realmente é valioso (e que só pode ser transmitido sob formas históricas transformadas). E há uma transmissão autêntica das tradições essenciais que o simples conservadorismo nem sequer é capaz de divisar. Sem dúvida, no conjunto, o que menos importa para a verdadeira Tradição é aquilo que normalmente se chama de 'as tradições'" (Pieper(1))

 

 

Introdução

A finalidade deste artigo é mostrar como a tradição extremo-oriental veiculada por Confúcio (551-479a.C.) remonta a uma Antigüidade portadora de uma sabedoria divina, preservada e ao mesmo tempo corrompida nos tempos posteriores, e que a chamada escola confuciana cuidou, naqueles tempos de extremo caos político-social, de fixar e transmitir por sua vez à posteridade, e que por mais de dois milênios tem se constituído na unidade cultural do povo chinês.

Para isto, temos que dividir o presente artigo em duas partes: a primeira será dedicada ao pensamento tradicionalista(2) ocidental; a segunda, a Confúcio.

 

 

Primeira Parte

 

Concepção cíclica e linear da História

Costuma-se separar radicalmente duas concepções de história: uma linear e outra cíclica: "para o cristianismo primitivo como também para o judaísmo bíblico e para a religião iraniana, a expressão simbólica do tempo é a linha, enquanto para o helenismo é o círculo(3)".

Na concepção cíclica, teríamos, a exemplo do que acontece com a natureza, uma repetição de ritmos cósmicos, sem meta última e definitiva; já a outra considera uma tensão em direção a uma meta que será alcançada e que é o movente da própria história.

Esta distinção é fantasista e baseada na concepção do eterno retorno, de modo algum universal. No próprio Guénon, ainda que seu pensamento não seja explícito quanto a este ponto, há uma Tradição Primordial, polar, a partir de um mítico povo, os hiperbóreos(4) e depois de algumas "humanidades" extintas estaríamos no fim de um ciclo para iniciar outro e assim indefinidamente como no mágico pensamento astrológico.

Ora, esta repetição indefinida, sem início e sem fim, e que nos Upanisads chama-se samsãra, ocorre posteriormente, em momentos de crise e desespero. Justamente a proposta do budismo é a libertação deste ciclo infernal(5) .

Nos Vedas (ca 1000 a.C.), as mais antigas escrituras hindus, não há traço desta concepção. Já nos Brãmanas, textos para guiar os sacerdotes nos complicados rituais, surge outra concepção. Citemos Sarvepalli Radhakrishnan (1888-1975), certamente uma das maiores autoridades do pensamento hindu: "Thus far the difference between the Vedic and Brãhmanical views is that while according to the Rg - Veda the sinner is reduced to nothing while the virtuous obtain immortality, in the Brãhmanas both are born again to undergo the results of their actions... The suggestion is that there is only one life after this, and its nature is determined by our conduct here"(6).

Paralelamente na China - como nos refere De Groot em sua vasta e até hoje a mais completa obra sobre a religião chinesa - temos: "The reader now knows that, according to Chinese views, a departed human soul may pass into the body of other deceased person. Side by side with this conception the belief prevails, that any excarnated soul my obtain a new body by beeing reborn through a mother. This process is generally known by the term tou tai to make one's way into a uterus.

We, however, have not found any reference to re-incarnation before the age in which the Jin dynasty (265 d.C.-420 d.C.) reigned"(7).

Recorri a esses exemplos, pela importância que revestem: na hipótese de uma revelação divina originária, mostra-se a intromissão de especulações humanas posteriores, inquinando-a. Assim, é essencial verificar se uma determinada concepção é originária ou não: no caso, a transmigração das almas, metempsicose, palingenesia, reencarnação(8) constituem desvios especulativos posteriores. Não há nenhuma revelação divina que as ateste. Donde a importância de constatar a originariedade e universalidade destas concepções: o conceito de Deus, da alma imortal, da importância dos atos desta vida, do juízo pós-morte, do inferno, do paraíso inicial, da queda, do sacrifício(9).

A título de exemplo, eis como Platão (427-347a.C.), cuja obra contém um acervo de antigas tradições, coloca o inferno: "Mas aqueles que pela enormidade de seus pecados mostram-se irremediáveis...; estes estão destinados ao Tártaro, donde não sairão nunca". (Fédon, 113 D)

Voltemos agora ao tema deste tópico, o do tempo cíclico e do tempo linear: o que caracteriza as concepções tradicionais é uma nostalgia de uma época áurea de harmonia cósmica e de felicidade perdida - sem explicação do porquê desta perda - e a procura de reviver esta época no rito. Não há nem poderia haver esperança alguma, pois esta foi trazida justamente pela tradição judaico-cristã, que, no estado de queda (e por causa dele...) completou a primeira revelação. Entre as duas revelações, uma pluralidade de especulações e fantasias humanas, incluindo as de Mircea Eliade (1917-1984), historiador das religiões(10).

A Revelação Primitiva.

Nada melhor do que um trecho do Pe. Ventura, também por se tratar de um clássico difícil de ser encontrado hoje. No contexto, há uma polêmica contra aqueles que admitem o inatismo das idéias como Platão, Descartes (1596-1650) é até o citado tradicionalista, De Bonald. O inatismo leva ao panteísmo: ora, a necessidade do homem ser ensinado quanto a certas idéias básicas levou a essas duas concepções: ou o inatismo, em que o intelecto humano nasce com certas idéias básicas ou a revelação primordial, em que o homem é ensinado de fora(11).

Eis o trecho :

"A alma, em virtude da faculdade do intelecto agente ,abstrai o universal do particular, elevando-se do sensível ao espiritual, ao intelectual, independentemente de qualquer educação e instrução.

Estas observações sobre o fato incontestável que o espírito humano possui algumas idéias que não aprendeu por si, deram lugar à doutrina das idéias inatas que alguns grandes homens adotaram, como é o caso de Platão, Descartes e Leibniz. O que os enganou foi não ter conhecido aquela admirável faculdade do intelecto agente mediante a qual o espírito humano instantaneamente forma por si mesmo as idéias, faculdade que a filosofia cristã apurou(12) mercê destes dois versículos da Sagrada Escritura: "luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo" (Jo 1,9) e "Gravado está, Senhor, sobre nós o lume do teu rosto"(Sl 4,7). S. Tomás (1225-1274) diz que estes dois trechos devem entender-se também filosoficamente.

Não discernindo esta sublime faculdade do espírito humano e por outro lado tendo suficiente inteligência e elevação para não se envolver na trivial doutrina dos sensistas (a de que todas as idéias e concepções universais originam-se dos sentidos) foram obrigados a admitir as idéias inatas, a fim de explicar a existência daquelas concepções no espírito, as quais não podiam resultar das impressões recebidas nos sentidos e precediam a toda instrução.

Mas a ciência das idéias deve fazer outra crítica aos filósofos que se chamam espiritualistas: confundem freqüentemente sob a mesma palavra "idéia", as idéias propriamente ditas que o espírito forma a partir dos "fantasmas" (no sentido técnico de esquema sensível do objeto) dos objetos materiais que nos alcançam através dos sentidos com os conhecimentos mais elevados sobre objetos de que os sentidos não poderiam transmitir nenhum fantasma ao espírito, como o conhecimento de Deus, a espiritualidade e imortalidade da alma, os deveres claros e precisos que tem o homem para com Deus, para com o próximo, para consigo mesmo etc. Quanto a tais concepções, às quais impropriamente se aplica a palavra "idéia", o homem, como acima mostramos por S. Tomás, não as poderia formar por si mesmo; ele só tem a necessidade e o instinto confuso, e deve recebê-las e as recebeu por uma revelação primitiva, a qual por meio da linguagem e da tradição(13), foi transmitida, propagou-se e estabeleceu-se em todo o mundo. Se pois o Sr. De Bonald e sua escola tivesse circunscrito a estas altas noções a sua doutrina sobre a necessidade da palavra para obter as idéias, teria permanecido na verdade. Pois tais idéias só chegam ao homem mediante a sociedade em que se encontram, sempre e em toda a parte, mais ou menos alteradas, mais ou menos corrompidas; o homem só as recebeu por meio da instrução e por meio da palavra. Mas, seu erro foi ter estendido a sua doutrina a toda espécie de idéias ou de concepções puramente intelectuais, às idéias de ser e de suas modificações e atinências, das espécies e dos gêneros, do geral e do particular, do concreto e do abstrato, das causas e dos efeitos, dos princípios e das conseqüências, do bem e do mal moral, ao qual o espírito se eleva mediante o conhecimento do mal e do bem físico; a todas as idéias que constituem os elementos da razão. Com estas idéias fundamentais, a razão está em condições de receber e demonstrar(14) as noções e as verdades tradicionais. Não podendo, então, a razão entender só pela palavra recebida, o espírito forma por sua própria potência, pelo intelecto agente, as idéias, sem a palavra e independentemente da palavra"(15).

 

Temos neste trecho com clareza a posição tradicionalista. Os testemunhos da Antigüidade greco-romana são muitos. Eis um depoimento de Cícero ( 106 - 43 a.C.): "É ademais prescrito pela lei que entre os cultos pátrios observem-se os melhores. Sobre este assunto, quando os Atenienses consultaram Apolo Pítio para saber quais ritos religiosos, deveriam sobremodo observar, o oráculo respondeu: "aqueles que se achavam nas tradições dos antepassados". Voltaram uma segunda vez, dizendo que os costumes dos pais haviam mudado e pedindo quais, entre tanta variedade devessem seguir especialmente, o oráculo respondeu "os melhores". E, em verdade, aquilo que é melhor deve ser considerado mais antigo e mais próximo a Deus". (De Legibus II, XVI).

Este trecho mutatis mutandis poderia ser transcrito para a tradição extremo-oriental.

Podemos dizer que a existência de uma revelação primitiva é atestada nas várias tradições culturais da humanidade. É uma revelação que se refere ao homem antes da queda, é uma revelação do que é o homem diante de Deus, da criação e do seu destino; mas houve a queda(16), também esta atestada universalmente. Por causa da queda(17) houve a revelação especial, voltada para a restauração e transcendência do estado original.

Deve-se aqui notar que como conteúdo era a revelação original superior, mas o ponto é que a finalidade das duas não é a mesma, nem a segunda anula a primeira.

Para compreender isso, ajudar-nos-ão as considerações de De Maistre: "A essência da culpa é então um ato intelectual de separação, um sair da imediatez do conhecimento intelectual e originário concedido ao homem como feliz "estado natural", e a pretensão de uma forma de conhecimento diversa na qual o homem ergue-se a sujeito do conhecimento e portanto a novo centro do mundo(18)".

Notamos também uma explicação para a origem da escrita. No Fedro, Platão, defende, por meio de um mito, a superioridade da oralidade em relação à escrita (274 B-278 E). Também no capítulo 80 de Laozi, da tradição taoísta chinesa, defende-se o mesmo ideal. No entanto, neste estado de queda, não é possível prescindir da mesma, já que não participamos mais daquele pensamento intuitivo originário(19): portanto é um mal necessário para a doença originária. Daí que a revelação especial seja feita por meio da escrita: a Sagrada Escritura. Eis um aclaramento de Joseph de Maistre: "Deus nos concedeu duas revelações: a primeira - insondável, imperscrutável - coincide sem resíduos com a própria criação do homem, com o sopro vital que anima o ser feito à imagem e semelhança de Deus e destinado ao senhorio do universo; a segunda, a cristã, pelo contrário, segue a decadência do homem, o pecado e o afastamento da origem, e está dirigida ao despertar e refecundação dos restos da verdade que, mesmo através da culpa e da queda, mantêm todavia naquele ser degradado a centelha da intuição primigênia da verdade. Neste sentido, revelação é despertar, ou seja, o despertar de algo inato antes desta revelação, presente enquanto fundamento no próprio homem."(20)

Não poderíamos deixar de trazer também a fé de Aristóteles (384-322 a.C) que juntamente com Platão e Cícero constituem os três maiores talentos da Antigüidade greco-romana: "Temo fortemente que aqueles que recusam ver um bem no que é objeto de desejo para todos, não querem dizer nada de nada. Pois aquilo que é admitido pelo consentimento é a própria realidade: rejeitar esta crença geral, é expor-se a não ser digno de fé". (Ética a Nicômaco, Livro X, Cap. II, 4 )

O recém-falecido filósofo alemão Josef Pieper (1904-1997)(21) revive e retoma em nossos dias, sem influência direta segundo nos consta, posições que no século passado foram defendidas pelo Pe. Gioacchino Ventura, de modo tão magistral quanto este. Vejamos as mesmas idéias na formulação de Pieper: "Um dos conceitos mais arraigados na teologia cristã desde os tempos mais remotos aponta para o fundamento - que esclarece e decanta a concepção platônica - a saber: o conhecimento recebido de fonte divina. Quero referir-me ao conceito de 'revelação primitiva'. Numa tentativa de expor seu conteúdo em formulação a mais sucinta possível, consideraríamos os seguintes princípios: no início da história humana está o evento de uma comunicação divina propriamente dita dirigida ao homem. O que foi nela comunicado entrou na tradição sagrada de todos os povos, nomeadamente em seus mitos e se conservou e está neles presente - de uma maneira segura, ainda que desfigurada, exagerada e com bastante freqüência reduzida a algo quase irreconhecível. Essa verdade indestrutível da tradição mítica procede então do mesmo Logos que se fez homem em Cristo; somente a luz deste Logos que entrou na história humana, torna possível o que superava necessariamente as forças do pensamento pré-cristão: a clara separação entre o verdadeiro e o falso dentro do domínio da tradição, bem como a possibilidade de discernimento do 'mito verdadeiro' dos resíduos acidentais e incongruentes"(22).

Para terminar este tópico, não poderia faltar o próprio testemunho da Bíblia. Antes, porém, teceremos algumas considerações sobre a participação da língua grega na própria Bíblia. Quanto a isto são luminosas as considerações de Divo Barsotti: "Deus comunica-se ao homem através de sinais; um destes sinais e também a linguagem, uma cultura. E Deus, nos livros sapienciais, comunica-se ao homem não mais somente através da língua e cultura semítica, mas também através da língua e cultura grega. Ele assume a fala grega para exprimir por meio desta a sua vontade, para revelar-nos a sua Verdade. Deus assume a língua grega e os conceitos gregos, e é ele mesmo que fala"(23). Ora, não é necessário dizer quanto isto representa em termos de universalização da revelação especial. Aqui vamos considerar o Eclesiástico, escrito em hebraico mas que nos chegou apenas na forma grega. O trecho é Eclo 17, 1-12): "O senhor criou o homem da terra e a ela o faz voltar novamente. Deu aos homens número preciso de dias e tempo determinado, deu-lhes poder sobre tudo o que está sobre a terra. Revestiu-os de força como a si mesmo, criou-os à sua imagem. A toda carne inspirou o temor do homem, para que ele domine feras e pássaros. Dotou-os de língua, olhos, ouvidos e lhes deu um coração para pensar. Encheu-os de conhecimento e inteligência e mostrou-lhes o bem e o mal. Pôs sua luz nos seus corações, para lhes mostrar a grandeza de suas obras. Eles louvarão o seu santo nome, narrando a grandeza de suas obras. Concedeu-lhes o conhecimento, repartiu com eles a lei da vida. Fez com eles uma aliança eterna e deu-lhes a conhecer seus julgamentos".

O trecho fala por si e é muito rico em sugestões e implicações.

O versículo 6: "dotou-os de língua, olhos, ouvidos e lhes deu um coração para pensar" indica que Deus deu ao homem a linguagem. A palavra usada na Septuaginta(24) é greek1.gif (1412 bytes) , ac. sing. fem. de greek2.gif (1367 bytes), que do significado de 'ponta', passou a significar tanto língua (órgão) quanto língua (linguagem, idioma). Deus então deu-lhes a linguagem, os sentidos e a capacidade de pensar. O versículo 7: "encheu-os de conhecimento e inteligência e mostrou-lhes o bem e o mal", ainda mais claramente indica que o lumem foi dotado de conhecimentos (encheu-os!) e de inteligência para compreender. O versículo 11: "concedeu-lhes o conhecimento..." reforça a idéia.

Esta mesma idéia é a que está presente no fundo da conhecida sentença de S. Paulo em Rom I, 19-20: "Porque o que se pode conhecer de Deus é manifesto entre eles, pois Deus lho revelou".

Há também na Antigüidade outras interpretações: céticas, da origem animal do homem etc., mas é inegável a concepção da revelação originária em culturas e ambientes independentes entre si. Às vezes encontram-se num mesmo autor (como Cícero, Platão etc.) o conflito entre ambas as duas concepções, indicando que essa revelação ora é aceita, ora é contestada, ora é falsificada. Por exemplo, depois de todas as vertiginosas elucubrações sobre a linguagem, mesmo talvez não sendo a opinião de Platão como filósofo(25), Crátilo, como que dizendo que depois de todas os malabarismos especulativos o melhor é ater-se a tradição, afirma: "Creio, Sócrates, que a explicação mais verdadeira deste problema seja que um certo poder superior ao homem tenha dado os primeiros nomes aos objetos.(Crátilo, 438 A.C).

 

Tradição e Tradicionalismo.

Não poderíamos deixar de tecer, antes de tratarmos da tradição chinesa, algumas considerações sobre o uso, abuso e ambigüidade que se faz do termo tradição. O título deste tópico corresponde a um capítulo de um dos livros do citado Guénon(26).

A primeira observação é sobre a confusão entre tradicionalismo e conservadorismo. Pode-se ser conservador em certo assunto, contestador em outro, revolucionário ainda em outro. Admitida a tradição divina, então, como constatamos, esta está sempre ligada a outras "tradições" humanas, falseada, etc. Então é necessário depurá-la, recriá-la, caso contrário seria tradição morta. Para um pensador radical como Guénon, todo o mundo moderno deve ser ultrapassado, contestado. Este mundo não apresenta apenas tradições humanas, mas tradições incompatíveis com a tradição divina. Eis como Guénon inicia o citado capítulo: "A falsificação de todas as coisas que é, como já o dissemos, um dos traços característicos de nossa época, não é, falando propriamente, ainda a subversão, mas tal falsificação contribui bastante para prepará-la; mostra-se talvez melhor na falsificação da linguagem(27), ou seja, no emprego abusivo de certas palavras desviadas de seu sentido verdadeiro, emprego que é imposto de certo modo por uma sugestão constante por parte de todos aqueles que, por um pretexto ou outro, exercem uma influência qualquer sobre a mentalidade pública... A mentalidade moderna em tudo que a caracteriza como tal, é tão somente o produto de uma vasta sugestão coletiva que, exercendo-se continuamente no curso de vários séculos, determinou a formação e o desenvolvimento progressivo do espírito antitradicional, em que se resume definitivamente todo o conjunto de traços distintivos desta mentalidade... A própria idéia de tradição foi destruída a tal ponto que aqueles que aspiravam a reencontrá-la já não sabem para que lado dirigir-se... Todos os empregos abusivos desta palavra 'tradição'... a começar pelo mais vulgar, aquele que o torna sinônimo de 'costume' ou de 'usos', levam a uma confusão da tradição com as coisas humanas mais banais e desprovidas de todo sentido profundo".

Mas o que Guénon considera mais degenerado é rebaixar a idéia de tradição a um nível todo humano, quando, pelo contrário, o que caracteriza o tradicional é seu elemento supra-humano(28). Assim, parece a Guénon que o uso do termo em expressões como 'tradição humanista' seja uma verdadeira contradição.

Não é necessário porém chegar a tal radicalidade. A exemplo da sabedoria, em que se pode falar de uma sabedoria divina e de uma humana, também se pode falar de uma tradição divina e de tradições humanas. Entre essas pode haver inclusive incompatibilidade. Assim nos diz S. Paulo que o que é Sabedoria para os homens é loucura para Deus e vice-versa: "Ninguém se engane a si mesmo; se alguém dentre vós se tem por sábio neste mundo, faça-se insensato para ser sábio. Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus". (1Co 3 18, 19 ) E para terminar esta primeira parte, a expressiva citação do Evangelho: "pois, deixando o mandamento de Deus, abraçais a tradição dos homens..."
( Mc 7, 8 )

Segunda Parte WB00545_.gif (562 bytes)


1. "Le Concept de Tradition" La Table Ronde, No. 150, juin 1960, Paris, p. 93.

2. Há, no tradicionalismo, muitas correntes e grupos diferentes, mesmo contrastantes. Houve um forte movimento tradicionalista católico que medeia entre o fim da Revolução Francesa (1789-1799) e o fim do prontificado de Pio IX (1846-1878). Entre os mais importantes autores temos: Joseph de Maistre (1753- 1821); Louis de Bonald (1754-1840); Robert de Lamennais (1782-1854); François René de Chateaubriand (1768-1848); Auguste Nicolas (sua principal obra é de 1845); Henri Lacordaire (1802-1861) e o principal e mais lúcido, o Pe. Gioacchino Ventura (1792-1861). Este movimento, depois completamente erradicado da Igreja, não deve ser confundido com o dos chamados católicos tradicionalistas pós-conciliares. Posteriormente, tivemos neste século um movimento tradicionalista, centrado em René Guénon (1886-1951), acérrimo crítico da mentalidade moderna, defensor de uma tradição primordial, mas infelizmente inquinado pelo pensamento gnósticoesotérico e por procurar reconstituí-la a partir da tradição posterior do panteísmo do Advaita Vedanta. Não deixa, no entanto, de contribuir com elementos valiosos para o esclarecimento da "Tradição".

3. O. Cullmann - Cristo e il tempo. Il Molino, Bologna, 1965. P. 74.

4. René Guénon. Formes traditionelles et Cycles Cosmiques. Gallimard, Paris, 1970, pp. 35 - 51.

5. O dicionário sânscrito de Monier - Williams, assim nos explica a palavra sam- sãra: "going or wandering through, undergoing transmigration; course, passage, passing trhough a succession of states, circuit of mundane existence, transmigration, metempsychosis, the world, secular life, worldly illusion" (p. 1119).

6. Radhakrishnan - Indian Philosophy, vol. I. George Allen Unwin Ltd, London, 1923. p. 134

7. J. J. M. De Groot. The Religious System of China. Volume IV, Book II. 1892. Reprinted by Ch'eng Publishing Co., Taipei, 1976. p. 143.

8. Concepções afins, mas não idênticas. A esse respeito é pertinente o critério de R. Guénon: se uma doutrina inclui a reencarnação, não faz parte da revelação primordial...

9. Não é escopo deste artigo entrar em detalhes. Para tanto, a obra básica ainda é: W. Schmidt Der Ursprung der Gottesidee, Münster, 1912 - 1949, 12 vol. Quanto ao inferno, recomendamos: Michel Carrouges et alii. L'Enfer. Les Editions de la Revue des Jeunes. Paris, 1950.

10. M. Eliade - Das Heilige und das Profane. Rowolt, Hamburg, 1957 e M. Eliade. La Nostalgie des Origenes - Gallimard, 1971.

11. Recomenda-se para esta questão o tratamento realmente magistral que S. Tomás lhe consagra no De Veritate, na questão 18: "O conhecimento do primeiro homem no estado de inocência".

12. Aperfeiçoando Aristóteles no De Anima.

13. De certo modo, mas não necessariamente, podem coligar-se o recebimento de uma revelação primitiva e o da primeira linguagem; em todo caso, esta revelação se transmite através da linguagem humana e esta é seu depósito.

14. Quanto a estas verdades, a razão é apenas demonstrativa e, em nada, inventiva. Assim, Platão no Fedro procura demonstrar e refletir sobre todas as conseqüências da imortalidade da alma. Sua crença inicial é declarada do modo mais explícito possível: "Para um ser privado de alma não há bem ou mal que tenha valor, mas o bem e o mal valem somente em referência à alma, quer unida ao corpo ou separada dele. É preciso certamente crer nos relatos sagrados antigos que nos revelam que a alma é imortal e que recebe um juízo e paga penas gravíssimas, uma vez que, seja separada do corpo". (Carta VII, 335 A)

15. Extraído de: Gioacchino Ventura Opere. Vol III: La Ragione Filosofica e la Ragione Cattolica. Conferenze predicate a Parigi nell'anno 1851. Versione italiana. Presso Gabriele Sarracino, Napoli, 1856, pp. 75-76.

16. Deve-se considerar a universalidade do sacrifício e da expiação em todas as culturas, como diz De Maistre: "e como a presença do mal no mundo mostra-se inexplicável fora daquele pecado original que explica tudo e sem o qual nada pode ser explicado, mas que, em si não é susceptível de nenhuma explicação "racional", donde seu caráter insuprimível de evento misterioso e todavia plausível porque admitido e apresentado pela tradição universal" (Cf. Marco Ravera, Joseph de Maistre, Pensatore dell'Origine. Murgia, 1986. pp. 57-58). Quanto a isso nos diz o abade Rambaud: "não é a partir do pecado que se deve compreender o que deveria ser a redenção, mas a partir do evento Cristo, Filho de Deus, de sua morte e ressurreição que se pode compreender simultaneamente o pecado e a redenção" (Cf. L'Enfer, op. cit., pp. 337-338).

17. Um dos principais efeitos da queda é o caráter esquecedor do ser humano, oportunamente analisado por Luiz Jean Lauand em "Educazione e Memoria" Collatio, a. 1, n. 1, Enero-Junio 1998, Madrid, Ediciones de la Universidad Autónoma de Madrid, trad. de Mario Sproviero, pp. 41-48.

18. Marcos Ravera, op. cit. p. 58.

19. Note-se como a intuição - que propriamente falando só poderia ser intelectual - foi sempre mais criticada pelo pensamento filosófico, principalmente hegeliano. No neo-hegeliano italiano Giovanni Gentile (1875-1944) temos a crítica mais radical possível ao pensamento intuitivo.

20. Ravera, op. cit. 83. 84.

21. Quanto a este tema recomendamos especialmente: Über die platonischen Mythen ("Sobre os mitos platônicos") Kösel-Verlag, München 1965 e Überlieferung ("Tradição") Kösel-Verlag, München, 1970.

22. Über die platonischen Mythen, pp. 80-81.

23. D. Barsotti, Meditazione Sul Libro della Sapienza, Queriniana, 1976, pp. 10-11.

24. A versão grega do Antigo Testamento feita em Alexandria durante o reinado de Ptolomeu II Filadelfo (285-274 a.C.).

25. A distinção de Platão como filósofo e como teólogo, isto é, enquanto especulador a partir da razão individual e enquanto pensador e depositário da tradição remonta a Clemente de Alexandria (150 - ca 215 d. C.) e é fundamental para a interpretação de Platão.

26. R. Guénon - Le Régne de la Quantité et les Signes des Temps. Gallimard, Paris, 1945. Capítulo XXI: "Tradition et Traditionalisme".

27. É um tema proposto também por Confúcio: a retificação dos nomes.

28. No entanto, neste ponto como em outros, é bastante ambígua a posição de Guénon, já que ele nunca atribui a tradição a Deus.