|
|
Confúcio e a Revelação Primitiva |
|
Mario Bruno Sproviero
(Prof. Associado DLO-FFLCHUSP)
"Uma consciência autêntica da tradição
nos torna livres e independentes em relação ao conservadorismo daqueles que se pretendem
'os guardiães da tradição'. E na verdade pode ocorrer que esses famigerados 'bastiões
da tradição' por se aferrarem a formas históricas impeçam a verdadeira transmissão
daquilo que realmente é valioso (e que só pode ser transmitido sob formas históricas
transformadas). E há uma transmissão autêntica das tradições essenciais que o simples
conservadorismo nem sequer é capaz de divisar. Sem dúvida, no conjunto, o que menos
importa para a verdadeira Tradição é aquilo que normalmente se chama de 'as
tradições'" (Pieper(1))
Introdução
A finalidade deste artigo é mostrar como a
tradição extremo-oriental veiculada por Confúcio (551-479a.C.) remonta a uma
Antigüidade portadora de uma sabedoria divina, preservada e ao mesmo tempo corrompida nos
tempos posteriores, e que a chamada escola confuciana cuidou, naqueles tempos de extremo
caos político-social, de fixar e transmitir por sua vez à posteridade, e que por mais de
dois milênios tem se constituído na unidade cultural do povo chinês.
Para isto, temos que dividir o presente artigo em duas partes: a
primeira será dedicada ao pensamento tradicionalista(2) ocidental;
a segunda, a Confúcio.
Primeira Parte
Concepção cíclica e linear da História
Costuma-se separar radicalmente duas
concepções de história: uma linear e outra cíclica: "para o cristianismo
primitivo como também para o judaísmo bíblico e para a religião iraniana, a expressão
simbólica do tempo é a linha, enquanto para o helenismo é o círculo(3)".
Na concepção cíclica, teríamos, a exemplo do que acontece com a
natureza, uma repetição de ritmos cósmicos, sem meta última e definitiva; já a outra
considera uma tensão em direção a uma meta que será alcançada e que é o movente da
própria história.
Esta distinção é fantasista e baseada na concepção do eterno
retorno, de modo algum universal. No próprio Guénon, ainda que seu pensamento não seja
explícito quanto a este ponto, há uma Tradição Primordial, polar, a partir de um
mítico povo, os hiperbóreos(4) e depois de algumas
"humanidades" extintas estaríamos no fim de um ciclo para iniciar outro e assim
indefinidamente como no mágico pensamento astrológico.
Ora, esta repetição indefinida, sem início e sem fim, e que nos
Upanisads chama-se samsãra, ocorre posteriormente, em momentos de crise e
desespero. Justamente a proposta do budismo é a libertação deste ciclo infernal(5)
.
Nos Vedas (ca 1000 a.C.), as mais antigas escrituras hindus, não há
traço desta concepção. Já nos Brãmanas, textos para guiar os sacerdotes nos
complicados rituais, surge outra concepção. Citemos Sarvepalli Radhakrishnan
(1888-1975), certamente uma das maiores autoridades do pensamento hindu: "Thus far
the difference between the Vedic and Brãhmanical views is that while according to the Rg
- Veda the sinner is reduced to nothing while the virtuous obtain immortality, in the
Brãhmanas both are born again to undergo the results of their actions... The suggestion
is that there is only one life after this, and its nature is determined by our conduct
here"(6).
Paralelamente na China - como nos refere De Groot em sua vasta e até
hoje a mais completa obra sobre a religião chinesa - temos: "The reader now knows
that, according to Chinese views, a departed human soul may pass into the body of other
deceased person. Side by side with this conception the belief prevails, that any
excarnated soul my obtain a new body by beeing reborn through a mother. This process is
generally known by the term tou tai to make one's way into a uterus.
We, however, have not found any reference to
re-incarnation before the age in which the Jin dynasty (265 d.C.-420 d.C.)
reigned" (7).
Recorri a esses exemplos, pela importância que
revestem: na hipótese de uma revelação divina originária, mostra-se a intromissão de
especulações humanas posteriores, inquinando-a. Assim, é essencial verificar se uma
determinada concepção é originária ou não: no caso, a transmigração das almas,
metempsicose, palingenesia, reencarnação(8) constituem desvios
especulativos posteriores. Não há nenhuma revelação divina que as ateste. Donde a
importância de constatar a originariedade e universalidade destas concepções: o
conceito de Deus, da alma imortal, da importância dos atos desta vida, do juízo
pós-morte, do inferno, do paraíso inicial, da queda, do sacrifício(9).
A título de exemplo, eis como Platão (427-347a.C.), cuja obra contém
um acervo de antigas tradições, coloca o inferno: "Mas aqueles que pela enormidade
de seus pecados mostram-se irremediáveis...; estes estão destinados ao Tártaro, donde
não sairão nunca". (Fédon, 113 D)
Voltemos agora ao tema deste tópico, o do tempo cíclico e do tempo
linear: o que caracteriza as concepções tradicionais é uma nostalgia de uma época
áurea de harmonia cósmica e de felicidade perdida - sem explicação do porquê desta
perda - e a procura de reviver esta época no rito. Não há nem poderia haver esperança
alguma, pois esta foi trazida justamente pela tradição judaico-cristã, que, no estado
de queda (e por causa dele...) completou a primeira revelação. Entre as duas
revelações, uma pluralidade de especulações e fantasias humanas, incluindo as de
Mircea Eliade (1917-1984), historiador das religiões(10).
A Revelação Primitiva.
Nada melhor do que um trecho do Pe. Ventura,
também por se tratar de um clássico difícil de ser encontrado hoje. No contexto, há
uma polêmica contra aqueles que admitem o inatismo das idéias como Platão, Descartes
(1596-1650) é até o citado tradicionalista, De Bonald. O inatismo leva ao panteísmo:
ora, a necessidade do homem ser ensinado quanto a certas idéias básicas levou a essas
duas concepções: ou o inatismo, em que o intelecto humano nasce com certas idéias
básicas ou a revelação primordial, em que o homem é ensinado de fora(11).
Eis o trecho :
"A alma, em virtude da faculdade do intelecto agente
,abstrai o universal do particular, elevando-se do sensível ao espiritual, ao
intelectual, independentemente de qualquer educação e instrução.
Estas observações sobre o fato incontestável que o espírito
humano possui algumas idéias que não aprendeu por si, deram lugar à doutrina das idéias
inatas que alguns grandes homens adotaram, como é o caso de Platão, Descartes e
Leibniz. O que os enganou foi não ter conhecido aquela admirável faculdade do intelecto
agente mediante a qual o espírito humano instantaneamente forma por si mesmo as
idéias, faculdade que a filosofia cristã apurou(12) mercê destes
dois versículos da Sagrada Escritura: "luz verdadeira que ilumina todo o homem que
vem a este mundo" (Jo 1,9) e "Gravado está, Senhor, sobre nós o lume do teu
rosto"(Sl 4,7). S. Tomás (1225-1274) diz que estes dois trechos devem entender-se
também filosoficamente.
Não discernindo esta sublime faculdade do espírito humano e por outro
lado tendo suficiente inteligência e elevação para não se envolver na trivial doutrina
dos sensistas (a de que todas as idéias e concepções universais originam-se
dos sentidos) foram obrigados a admitir as idéias inatas, a fim de explicar a
existência daquelas concepções no espírito, as quais não podiam resultar das
impressões recebidas nos sentidos e precediam a toda instrução.
Mas a ciência das idéias deve fazer outra crítica aos filósofos que
se chamam espiritualistas: confundem freqüentemente sob a mesma palavra "idéia",
as idéias propriamente ditas que o espírito forma a partir dos
"fantasmas" (no sentido técnico de esquema sensível do objeto) dos objetos
materiais que nos alcançam através dos sentidos com os conhecimentos mais
elevados sobre objetos de que os sentidos não poderiam transmitir nenhum fantasma ao
espírito, como o conhecimento de Deus, a espiritualidade e imortalidade da alma, os
deveres claros e precisos que tem o homem para com Deus, para com o próximo, para consigo
mesmo etc. Quanto a tais concepções, às quais impropriamente se aplica a palavra "idéia",
o homem, como acima mostramos por S. Tomás, não as poderia formar por si mesmo; ele só
tem a necessidade e o instinto confuso, e deve recebê-las e as recebeu por uma
revelação primitiva, a qual por meio da linguagem e da tradição(13),
foi transmitida, propagou-se e estabeleceu-se em todo o mundo. Se pois o Sr. De Bonald e
sua escola tivesse circunscrito a estas altas noções a sua doutrina sobre a
necessidade da palavra para obter as idéias, teria permanecido na verdade. Pois tais
idéias só chegam ao homem mediante a sociedade em que se encontram, sempre e em toda a
parte, mais ou menos alteradas, mais ou menos corrompidas; o homem só as recebeu por meio
da instrução e por meio da palavra. Mas, seu erro foi ter estendido a sua
doutrina a toda espécie de idéias ou de concepções puramente intelectuais, às
idéias de ser e de suas modificações e atinências, das espécies e dos gêneros, do
geral e do particular, do concreto e do abstrato, das causas e dos efeitos, dos
princípios e das conseqüências, do bem e do mal moral, ao qual o espírito se eleva
mediante o conhecimento do mal e do bem físico; a todas as idéias que constituem
os elementos da razão. Com estas idéias fundamentais, a razão está em condições de
receber e demonstrar(14) as noções e as verdades
tradicionais. Não podendo, então, a razão entender só pela palavra recebida, o
espírito forma por sua própria potência, pelo intelecto agente, as idéias, sem
a palavra e independentemente da palavra"(15).
Temos neste trecho com clareza a posição tradicionalista. Os
testemunhos da Antigüidade greco-romana são muitos. Eis um depoimento de Cícero ( 106 -
43 a.C.): "É ademais prescrito pela lei que entre os cultos pátrios observem-se os
melhores. Sobre este assunto, quando os Atenienses consultaram Apolo Pítio para saber
quais ritos religiosos, deveriam sobremodo observar, o oráculo respondeu: "aqueles
que se achavam nas tradições dos antepassados". Voltaram uma segunda vez, dizendo
que os costumes dos pais haviam mudado e pedindo quais, entre tanta variedade devessem
seguir especialmente, o oráculo respondeu "os melhores". E, em verdade, aquilo
que é melhor deve ser considerado mais antigo e mais próximo a Deus". (De
Legibus II, XVI).
Este trecho mutatis mutandis poderia ser transcrito para a
tradição extremo-oriental.
Podemos dizer que a existência de uma revelação primitiva é
atestada nas várias tradições culturais da humanidade. É uma revelação que se refere
ao homem antes da queda, é uma revelação do que é o homem diante de Deus, da criação
e do seu destino; mas houve a queda(16), também esta atestada
universalmente. Por causa da queda(17) houve a revelação especial,
voltada para a restauração e transcendência do estado original.
Deve-se aqui notar que como conteúdo era a revelação original
superior, mas o ponto é que a finalidade das duas não é a mesma, nem a segunda anula a
primeira.
Para compreender isso, ajudar-nos-ão as considerações de De Maistre:
"A essência da culpa é então um ato intelectual de separação, um sair da
imediatez do conhecimento intelectual e originário concedido ao homem como feliz
"estado natural", e a pretensão de uma forma de conhecimento diversa na qual o
homem ergue-se a sujeito do conhecimento e portanto a novo centro do mundo(18)".
Notamos também uma explicação para a origem da escrita. No Fedro,
Platão, defende, por meio de um mito, a superioridade da oralidade em relação à
escrita (274 B-278 E). Também no capítulo 80 de Laozi, da tradição taoísta chinesa,
defende-se o mesmo ideal. No entanto, neste estado de queda, não é possível prescindir
da mesma, já que não participamos mais daquele pensamento intuitivo originário(19):
portanto é um mal necessário para a doença originária. Daí que a revelação especial
seja feita por meio da escrita: a Sagrada Escritura. Eis um aclaramento de Joseph de
Maistre: "Deus nos concedeu duas revelações: a primeira - insondável,
imperscrutável - coincide sem resíduos com a própria criação do homem, com o sopro
vital que anima o ser feito à imagem e semelhança de Deus e destinado ao senhorio do
universo; a segunda, a cristã, pelo contrário, segue a decadência do homem, o pecado e
o afastamento da origem, e está dirigida ao despertar e refecundação dos restos da
verdade que, mesmo através da culpa e da queda, mantêm todavia naquele ser degradado a
centelha da intuição primigênia da verdade. Neste sentido, revelação é despertar, ou
seja, o despertar de algo inato antes desta revelação, presente enquanto fundamento no
próprio homem."(20)
Não poderíamos deixar de trazer também a fé de Aristóteles
(384-322 a.C) que juntamente com Platão e Cícero constituem os três maiores talentos da
Antigüidade greco-romana: "Temo fortemente que aqueles que recusam ver um bem no que
é objeto de desejo para todos, não querem dizer nada de nada. Pois aquilo que é
admitido pelo consentimento é a própria realidade: rejeitar esta crença geral, é
expor-se a não ser digno de fé". (Ética a Nicômaco, Livro X, Cap. II, 4 )
O recém-falecido filósofo alemão Josef Pieper (1904-1997)(21)
revive e retoma em nossos dias, sem influência direta segundo nos consta, posições que
no século passado foram defendidas pelo Pe. Gioacchino Ventura, de modo tão magistral
quanto este. Vejamos as mesmas idéias na formulação de Pieper: "Um dos conceitos
mais arraigados na teologia cristã desde os tempos mais remotos aponta para o fundamento
- que esclarece e decanta a concepção platônica - a saber: o conhecimento recebido de
fonte divina. Quero referir-me ao conceito de 'revelação primitiva'. Numa tentativa de
expor seu conteúdo em formulação a mais sucinta possível, consideraríamos os
seguintes princípios: no início da história humana está o evento de uma comunicação
divina propriamente dita dirigida ao homem. O que foi nela comunicado entrou na tradição
sagrada de todos os povos, nomeadamente em seus mitos e se conservou e está neles
presente - de uma maneira segura, ainda que desfigurada, exagerada e com bastante
freqüência reduzida a algo quase irreconhecível. Essa verdade indestrutível da
tradição mítica procede então do mesmo Logos que se fez homem em Cristo; somente a luz
deste Logos que entrou na história humana, torna possível o que superava necessariamente
as forças do pensamento pré-cristão: a clara separação entre o verdadeiro e o falso
dentro do domínio da tradição, bem como a possibilidade de discernimento do 'mito
verdadeiro' dos resíduos acidentais e incongruentes"(22).
Para terminar este tópico, não poderia faltar o próprio testemunho
da Bíblia. Antes, porém, teceremos algumas considerações sobre a participação da
língua grega na própria Bíblia. Quanto a isto são luminosas as considerações de Divo
Barsotti: "Deus comunica-se ao homem através de sinais; um destes sinais e também a
linguagem, uma cultura. E Deus, nos livros sapienciais, comunica-se ao homem não mais
somente através da língua e cultura semítica, mas também através da língua e cultura
grega. Ele assume a fala grega para exprimir por meio desta a sua vontade, para
revelar-nos a sua Verdade. Deus assume a língua grega e os conceitos gregos, e é ele
mesmo que fala"(23). Ora, não é necessário dizer quanto isto
representa em termos de universalização da revelação especial. Aqui vamos considerar o
Eclesiástico, escrito em hebraico mas que nos chegou apenas na forma grega. O
trecho é Eclo 17, 1-12): "O senhor criou o homem da terra e a ela o faz voltar
novamente. Deu aos homens número preciso de dias e tempo determinado, deu-lhes poder
sobre tudo o que está sobre a terra. Revestiu-os de força como a si mesmo, criou-os à
sua imagem. A toda carne inspirou o temor do homem, para que ele domine feras e pássaros.
Dotou-os de língua, olhos, ouvidos e lhes deu um coração para pensar. Encheu-os de
conhecimento e inteligência e mostrou-lhes o bem e o mal. Pôs sua luz nos seus
corações, para lhes mostrar a grandeza de suas obras. Eles louvarão o seu santo nome,
narrando a grandeza de suas obras. Concedeu-lhes o conhecimento, repartiu com eles a lei
da vida. Fez com eles uma aliança eterna e deu-lhes a conhecer seus julgamentos".
O trecho fala por si e é muito rico em sugestões e implicações.
O versículo 6: "dotou-os de língua, olhos, ouvidos e lhes deu um
coração para pensar" indica que Deus deu ao homem a linguagem. A palavra usada na
Septuaginta(24) é , ac. sing. fem. de , que do significado de 'ponta', passou a significar tanto língua
(órgão) quanto língua (linguagem, idioma). Deus então deu-lhes a linguagem, os
sentidos e a capacidade de pensar. O versículo 7: "encheu-os de conhecimento e
inteligência e mostrou-lhes o bem e o mal", ainda mais claramente indica que o lumem
foi dotado de conhecimentos (encheu-os!) e de inteligência para compreender. O versículo
11: "concedeu-lhes o conhecimento..." reforça a idéia.
Esta mesma idéia é a que está presente no fundo da conhecida
sentença de S. Paulo em Rom I, 19-20: "Porque o que se pode conhecer de Deus é
manifesto entre eles, pois Deus lho revelou".
Há também na Antigüidade outras interpretações: céticas, da
origem animal do homem etc., mas é inegável a concepção da revelação originária em
culturas e ambientes independentes entre si. Às vezes encontram-se num mesmo autor (como
Cícero, Platão etc.) o conflito entre ambas as duas concepções, indicando que essa
revelação ora é aceita, ora é contestada, ora é falsificada. Por exemplo, depois de
todas as vertiginosas elucubrações sobre a linguagem, mesmo talvez não sendo a opinião
de Platão como filósofo(25), Crátilo, como que dizendo que depois
de todas os malabarismos especulativos o melhor é ater-se a tradição, afirma:
"Creio, Sócrates, que a explicação mais verdadeira deste problema seja que um
certo poder superior ao homem tenha dado os primeiros nomes aos objetos.(Crátilo,
438 A.C).
Tradição e Tradicionalismo.
Não poderíamos deixar de tecer, antes de
tratarmos da tradição chinesa, algumas considerações sobre o uso, abuso e ambigüidade
que se faz do termo tradição. O título deste tópico corresponde a um capítulo
de um dos livros do citado Guénon(26).
A primeira observação é sobre a confusão entre tradicionalismo e
conservadorismo. Pode-se ser conservador em certo assunto, contestador em outro,
revolucionário ainda em outro. Admitida a tradição divina, então, como constatamos,
esta está sempre ligada a outras "tradições" humanas, falseada, etc. Então
é necessário depurá-la, recriá-la, caso contrário seria tradição morta. Para um
pensador radical como Guénon, todo o mundo moderno deve ser ultrapassado, contestado.
Este mundo não apresenta apenas tradições humanas, mas tradições incompatíveis com a
tradição divina. Eis como Guénon inicia o citado capítulo: "A falsificação de
todas as coisas que é, como já o dissemos, um dos traços característicos de nossa
época, não é, falando propriamente, ainda a subversão, mas tal falsificação
contribui bastante para prepará-la; mostra-se talvez melhor na falsificação da
linguagem(27), ou seja, no emprego abusivo de certas palavras
desviadas de seu sentido verdadeiro, emprego que é imposto de certo modo por uma
sugestão constante por parte de todos aqueles que, por um pretexto ou outro, exercem uma
influência qualquer sobre a mentalidade pública... A mentalidade moderna em tudo que a
caracteriza como tal, é tão somente o produto de uma vasta sugestão coletiva que,
exercendo-se continuamente no curso de vários séculos, determinou a formação e o
desenvolvimento progressivo do espírito antitradicional, em que se resume definitivamente
todo o conjunto de traços distintivos desta mentalidade... A própria idéia de
tradição foi destruída a tal ponto que aqueles que aspiravam a reencontrá-la já não
sabem para que lado dirigir-se... Todos os empregos abusivos desta palavra 'tradição'...
a começar pelo mais vulgar, aquele que o torna sinônimo de 'costume' ou de 'usos', levam
a uma confusão da tradição com as coisas humanas mais banais e desprovidas de todo
sentido profundo".
Mas o que Guénon considera mais degenerado é rebaixar a idéia de
tradição a um nível todo humano, quando, pelo contrário, o que caracteriza o
tradicional é seu elemento supra-humano(28). Assim, parece a
Guénon que o uso do termo em expressões como 'tradição humanista' seja uma verdadeira
contradição.
Não é necessário porém chegar a tal radicalidade. A exemplo da
sabedoria, em que se pode falar de uma sabedoria divina e de uma humana, também se pode
falar de uma tradição divina e de tradições humanas. Entre essas pode haver inclusive
incompatibilidade. Assim nos diz S. Paulo que o que é Sabedoria para os homens é loucura
para Deus e vice-versa: "Ninguém se engane a si mesmo; se alguém dentre vós se tem
por sábio neste mundo, faça-se insensato para ser sábio. Porque a sabedoria deste mundo
é loucura diante de Deus". (1Co 3 18, 19 ) E para terminar esta primeira parte, a
expressiva citação do Evangelho: "pois, deixando o mandamento de Deus, abraçais a
tradição dos homens..."
( Mc 7, 8 )
Segunda Parte
|
1. "Le Concept de
Tradition" La Table Ronde, No. 150, juin 1960, Paris, p. 93.
2. Há, no tradicionalismo, muitas correntes e
grupos diferentes, mesmo contrastantes. Houve um forte movimento tradicionalista católico
que medeia entre o fim da Revolução Francesa (1789-1799) e o fim do prontificado de Pio
IX (1846-1878). Entre os mais importantes autores temos: Joseph de Maistre (1753- 1821);
Louis de Bonald (1754-1840); Robert de Lamennais (1782-1854); François René de
Chateaubriand (1768-1848); Auguste Nicolas (sua principal obra é de 1845); Henri
Lacordaire (1802-1861) e o principal e mais lúcido, o Pe. Gioacchino Ventura (1792-1861).
Este movimento, depois completamente erradicado da Igreja, não deve ser confundido com o
dos chamados católicos tradicionalistas pós-conciliares. Posteriormente, tivemos neste
século um movimento tradicionalista, centrado em René Guénon (1886-1951), acérrimo
crítico da mentalidade moderna, defensor de uma tradição primordial, mas infelizmente
inquinado pelo pensamento gnósticoesotérico e por procurar reconstituí-la a partir da
tradição posterior do panteísmo do Advaita Vedanta. Não deixa, no entanto, de
contribuir com elementos valiosos para o esclarecimento da "Tradição".
3. O. Cullmann - Cristo e il tempo. Il
Molino, Bologna, 1965. P. 74.
4. René Guénon. Formes traditionelles et
Cycles Cosmiques. Gallimard, Paris, 1970, pp. 35 - 51.
5. O dicionário sânscrito de Monier - Williams,
assim nos explica a palavra sam- sãra: "going or wandering through,
undergoing transmigration; course, passage, passing trhough a succession of states,
circuit of mundane existence, transmigration, metempsychosis, the world, secular life,
worldly illusion" (p. 1119).
6. Radhakrishnan - Indian Philosophy, vol.
I. George Allen Unwin Ltd, London, 1923. p. 134
7. J. J. M. De Groot. The Religious System of
China. Volume IV, Book II. 1892. Reprinted by Ch'eng Publishing Co., Taipei, 1976. p.
143.
8. Concepções afins, mas não idênticas. A
esse respeito é pertinente o critério de R. Guénon: se uma doutrina inclui a
reencarnação, não faz parte da revelação primordial...
9. Não é escopo deste artigo entrar em
detalhes. Para tanto, a obra básica ainda é: W. Schmidt Der Ursprung der Gottesidee,
Münster, 1912 - 1949, 12 vol. Quanto ao inferno, recomendamos: Michel Carrouges et alii. L'Enfer.
Les Editions de la Revue des Jeunes. Paris, 1950.
10. M. Eliade - Das Heilige und das Profane.
Rowolt, Hamburg, 1957 e M. Eliade. La Nostalgie des Origenes - Gallimard, 1971.
11. Recomenda-se para esta questão o tratamento
realmente magistral que S. Tomás lhe consagra no De Veritate, na questão 18:
"O conhecimento do primeiro homem no estado de inocência".
12. Aperfeiçoando Aristóteles no De Anima.
13. De certo modo, mas não necessariamente,
podem coligar-se o recebimento de uma revelação primitiva e o da primeira linguagem; em
todo caso, esta revelação se transmite através da linguagem humana e esta é seu
depósito.
14. Quanto a estas verdades, a razão é apenas
demonstrativa e, em nada, inventiva. Assim, Platão no Fedro procura demonstrar e refletir
sobre todas as conseqüências da imortalidade da alma. Sua crença inicial é declarada
do modo mais explícito possível: "Para um ser privado de alma não há bem ou mal
que tenha valor, mas o bem e o mal valem somente em referência à alma, quer unida ao
corpo ou separada dele. É preciso certamente crer nos relatos sagrados antigos que nos
revelam que a alma é imortal e que recebe um juízo e paga penas gravíssimas, uma vez
que, seja separada do corpo". (Carta VII, 335 A)
15. Extraído de: Gioacchino Ventura Opere.
Vol III: La Ragione Filosofica e la Ragione Cattolica. Conferenze predicate a Parigi
nell'anno 1851. Versione italiana. Presso Gabriele Sarracino, Napoli, 1856, pp. 75-76.
16. Deve-se considerar a universalidade do
sacrifício e da expiação em todas as culturas, como diz De Maistre: "e como a
presença do mal no mundo mostra-se inexplicável fora daquele pecado original que explica
tudo e sem o qual nada pode ser explicado, mas que, em si não é susceptível de nenhuma
explicação "racional", donde seu caráter insuprimível de evento misterioso e
todavia plausível porque admitido e apresentado pela tradição universal" (Cf.
Marco Ravera, Joseph de Maistre, Pensatore dell'Origine. Murgia, 1986. pp. 57-58).
Quanto a isso nos diz o abade Rambaud: "não é a partir do pecado que se deve
compreender o que deveria ser a redenção, mas a partir do evento Cristo, Filho de Deus,
de sua morte e ressurreição que se pode compreender simultaneamente o pecado e a
redenção" (Cf. L'Enfer, op. cit., pp. 337-338).
17. Um dos principais efeitos da queda é o
caráter esquecedor do ser humano, oportunamente analisado por Luiz Jean Lauand em
"Educazione e Memoria" Collatio, a. 1, n. 1, Enero-Junio 1998, Madrid,
Ediciones de la Universidad Autónoma de Madrid, trad. de Mario Sproviero, pp. 41-48.
18. Marcos Ravera, op. cit. p. 58.
19. Note-se como a intuição - que propriamente
falando só poderia ser intelectual - foi sempre mais criticada pelo pensamento
filosófico, principalmente hegeliano. No neo-hegeliano italiano Giovanni Gentile
(1875-1944) temos a crítica mais radical possível ao pensamento intuitivo.
20. Ravera, op. cit. 83. 84.
21. Quanto a este tema recomendamos
especialmente: Über die platonischen Mythen ("Sobre os mitos
platônicos") Kösel-Verlag, München 1965 e Überlieferung ("Tradição")
Kösel-Verlag, München, 1970.
22. Über die platonischen Mythen, pp.
80-81.
23. D. Barsotti, Meditazione Sul Libro della
Sapienza, Queriniana, 1976, pp. 10-11.
24. A versão grega do Antigo Testamento feita em
Alexandria durante o reinado de Ptolomeu II Filadelfo (285-274 a.C.).
25. A distinção de Platão como filósofo e
como teólogo, isto é, enquanto especulador a partir da razão individual e enquanto
pensador e depositário da tradição remonta a Clemente de Alexandria (150 - ca 215 d.
C.) e é fundamental para a interpretação de Platão.
26. R. Guénon - Le Régne de la Quantité et
les Signes des Temps. Gallimard, Paris, 1945. Capítulo XXI: "Tradition et
Traditionalisme".
27. É um tema proposto também por Confúcio: a
retificação dos nomes.
28. No entanto, neste ponto como em outros, é bastante ambígua
a posição de Guénon, já que ele nunca atribui a tradição a Deus.
|
|