Clique aqui para voltar para o Lar da Mandruvá

Et Pilo sua Umbra... -
Inscrições em Relógios de Sol

 

Luiz Jean Lauand
(Prof. Assoc. FEUSP

"Ostendit similitudinem et dicit quod sol est
mensura et numerus
horarum et dierum totius nostri
temporis, quod maxime mensuratur et numeratur
per motum solis".
(Tomás de Aquino In de Div. Nom. cp. 4, lc. 3)

 

     Quem entenda a história como um saber essencialmente ligado à compreensão, não menosprezará por princípio fontes "menores", que na verdade podem ser decisivas para a captação do "outro", que se manifesta - por vezes de modo único e especial - em formas aparentemente irrelevantes como as inscrições em pára-choques de caminhão no Brasil ou - em seu equivalente medieval e antigo - as inscrições em relógios de sol. Aliás, é este precisamente o lembrete de uma das mais legítimas representantes dessas inscrições: Et pilo sua umbra, mesmo um fio de cabelo produz sua sombra.

 

     Para a compreensão de outra cultura, distante da nossa no tempo ou no espaço, não são importantes somente as grandes fontes, os "grandes documentos", os autores de peso, mas também (e, por vezes, principalmente) as grandes pistas que nos são dadas por fontes à primeira vista sem maior importância, mas que freqüentemente são as mais reveladoras da alma do povo.

     Esta é a razão pela qual o Dictionnaire Robert de Proverbes et Dictons, Nouv. ed., Paris, 1989, no capítulo dedicado ao Brasil, contempla exclusivamente nosso "fait unique" das inscrições em pára-choques de caminhões(1). Guardadas as devidas proporções (o espírito lúdico e o senso religioso são características do Brasil e da Idade Média, mas os relógios medievais tendem mais para este, enquanto nossos caminhoneiros trabalham mais com aquele), talvez o mesmo papel, a mesma "filosofia" popular, a mesma ingenuidade brasileira sejam exercidas pelas inscrições nos relógios de sol.

     Seja como for, a sentença curta, por vezes rimada ou ritmada, incisiva, que faz pensar e transmite uma mensagem - freqüentemente sobre o sentido do tempo e da eternidade, da contingência e da efêmera condição humana - acompanham os relógios de sol em sua silenciosa missão: o viandante que quer a hora deve meditar sobre a sentença proposta. Algumas, como as de número 22 e 38, por exemplo, evocam irresistivelmente o senso lúdico brasileiro.

     Apresentamos, a seguir, uma seleção de cem dessas sentenças a partir da coletânea - com mais de 1000 inscrições - de Jesus de la Calle(2): http://www.sundials.co.uk/mottoesp.htm.

 

 

INSCRIÇÕES

 

1. Muito antes de se falar em fontes alternativas de energia(3), já o relógio de sol apregoava:

A LUMINE MOTUS Movido a luz G05

 

2. A objetividade do tempo:

ABSQUE SOLE, ABSQUE USU Sem sol, sem hora G20

 

3. A vida eterna depende do bem agir neste momento (no dizer de Macbeth: "In this shoal of time, we jump the life to come"):

AB HOC MOMENTO PENDET AETERNITAS Deste momento depende a eternidade G14

 

4-5. O convite ao bom comportamento diante de Deus é reforçado pelo fato de não sabermos qual será nossa última hora:

AB ULTIMA CAVE Cuidado na última hora G16

AB UNA PENDET AETERNITAS A eternidade depende de uma hora G18

6. A vida humana, como o ciclo do dia, tende à morte:

AD OCCASUM TENDIMUS OMNES Tendemos todos ao ocaso G22

 

7. O sol é a alegoria clássica para Cristo:

ADORA SOLEM QUI NON FACIT OCCASUM Adora o sol que não tem ocaso G514

 

8-10. Freqüentemente aponta-se para a dimensão subjetiva do tempo:

AFFLICTIS LENTAE CELERES GAUDENTIBUS HORAE Lentas as horas tristes, rápidas as alegres G30

AMICIS AEQUA IBIT HORA Entre amigos não se sente o passar das horas B472

AMICIS QUALIBET HORA Para os amigos, qualquer hora G43

 

11. O relógio louva a si mesmo, como distribuidor harmônico (temperare) do tempo:

ARTE MIRA MORTALIUM TEMPERAT HORAS Um admirável aparelho organiza as horas dos mortais G58

12. A prudente atenção ao presente requer a experiência do passado e a previsão do futuro:

ASPICE, RESPICE, PROSPICE Veja, reveja, preveja G72

 

13. Celebração ao surgimento:

AURORA HORA AUREA Aurora (é a) hora áurea G80

 

14. O valor salvífico do tempo:

BREVES SUNT, SINT UTILES As horas são breves: que sejam úteis B672

 

15-17. Mensagens bíblicas e religiosas (referentes ao tempo, ao sol, à sombra etc.) também são constantes:

CADENS SOL NON OCCIDAT SUPER IRACUNDIAM VESTRAM Não se ponha o sol sobre a vossa ira (Ef. 4, 26) B371

CHRISTUS SOLUS MIHI SALUS Cristo é minha única salvação G124

COELI LUX NOSTRA DUX Do céu a luz nos conduz G132

18-19. Nos vazios da existência, Deus, silenciosamente, está presente:

DEUS HABET HORAS ET MORAS Deus tem suas horas e suas pausas G187

DEUS MOVET, UMBRA DOCET Deus move a sombra que ensina G189, B245

 

20. A voz existencialista se faz presente, beirando o desespero:

DIES NOSTRI QUASI UMBRA SUPER TERRAM (I Cro 29, 15) Nossos dias na terra são como uma sombra G209

 

21. O sutil indicador:

DIGITUS DEI DUCET ME O dedo de Deus me conduz G216

 

22. O lúdico:

DO, SI SOL Dou (a hora) se há sol G226

 

23. O salmo:

DOMINUS ILLUMINATIO MEA (Sl, 26.1) O Senhor é a minha luz G232

24. O pequeno:

ET PILO SUA UMBRA Mesmo um fio de cabelo tem sua sombra G283

 

25. Ainda o nihilismo humano:

EXPLEBO NUMERUM REDDARQUE TENEBRIS Completarei meu tempo e retornarei às trevas G293

 

26. Ao contrário dos homens:

FALLERE NESCIO Não sei enganar

 

27. Murphy:

FELICIBUS BREVIS, MISERIS HORA LONGA A hora é curta para os felizes e longa para os aflitos G301

 

28. O tempo em perspectiva humana, devorador:

FERT OMNIA AETAS O tempo tudo leva G305

 

29. O dístico beneditino:

FESTINA LENTE Apressa-te devagar G306,B711

30. O trocadilho:

FESTINA MOX NOX Apressa-te, logo será noite G307

31-32. Ainda o efêmero humano:

FORSITAN ULTIMA Talvez a (tua) última (hora)? G317

FORTE TUA Talvez a tua (hora)? G318,B774

 

33. O eterno no temporal:

FUGIT HORA, CARITAS MANET As horas vão, permanece o amor G332

34-35. Nada é permanente:

FUGIT HORA, VENIT HORA Hora vai, hora vem G340, B544

FUGIT, DUM ASPICIS Ela escapa enquanto a fitas G330

 

36. O conhecido provérbio:

HOMO PROPONIT DEUS DISPONIT O homem propõe e Deus dispõe G404

 

37. Ainda o subjetivo:

HORA BREVIS AMICI, LENTA ONEROSI Rápida é a hora com os amigos; lenta, com os chatos G416,B473

 

38. O lúdico no trocadilho alusivo à resposta das ladaínhas "ora pro nobis", "rogai por nós":

HORA PRO NOBIS Que a hora nos seja favorável

 

39. Em meio ao pessimismo da consideração da contingência humana, um poema luminoso:

HORAS NON NOTO NISI LUCIDAS Não registro senão as horas luminosas

40. Vã é a busca do tempo perdido:

IRREPARABILE TEMPUS O tempo não volta G523

 

41. Conformismo:

ITA VITA Assim é a vida G529,B569

 

42. A plenitude da vida:

JUBILATE DEO Alegrai-vos em Deus G555

 

43-45. O trabalho na condição humana:

LABORA DUM LUCET Trabalha enquanto há luz G602

LABORARE EST ORARE Trabalhar é orar G603

LEX DEI LUX DIEI A lei de Deus é a luz do dia G647

 

46. Outro poema sintético:

LUCE LUCENTE RENASCOR Quando a luz brilhar, renascerei G671

 

47. Outra alusão religiosa:

LUCET OMNIBUS Ele brilha para todos G674

48-49. Como diz Pro 8, 30-31, a Sabedoria divina cria brincando:

LUDIMUS, INTEREA CELERI NOS LUDIMUR HORA Brincamos enquanto a hora veloz brinca conosco

LUDUS LABORQUE COMPOSITA REPETANTUR HORA O brincar e o trabalho têm sua hora adequada G675,B657

 

50. Inteligência - etimológica e realmente - é ler dentro (intus legere):

LUMEN IN UMBRA, LUMEN AB INTUS O sentido desta sombra está na luz interior (da inteligência)

 

51. Ainda a dialética luz/sombra:

LUMEN ME REGIT VOS UMBRA Eu sou governado pela luz; vocês, pela sombra G680.

 

52. A luz do conhecimento faz-se acompanhar, para o homem, de sombras e mistério:

LUX UMBRAM PRAEBET, MISTERIA AUTEM VERITAS A luz oferece a sombra; a verdade, os mistérios

53. O valor do pequeno:

MAGNI MOMENTI MINUTIAE As coisas pequenas são de grande importância G698

 

54. Emaús:

MANE NOBISCUM, DOMINE, QUONIAM ADVESPERASCIT Fica conosco, Senhor, porque está anoitecendo (Lc 24,29) G708

 

55. O silêncio eloqüente:

MUTUS LOQUOR Falo, calado

 

56. O valor dos momentos:

NE ABUTERE Não a desaproveites G774,B708

 

57. Interdependência:

NE REGO NISI REGAR Não regulo, se não sou regulado G816

58. Outra versão do anseio de felicidade:

NON HORAS NUMERO NISI SERENAS Só conto as horas serenas G811.

59. Ainda o tesouro do tempo:

NOS EXIGUUM TEMPUS HABEMUS, SED MULTUM PERDIMUS Nosso tempo já é pouco e ainda desperdiçamos tanto G824

 

60. Bem ou mal, a vida sempre ensina:

NULLA FLUAT CUIUS NON MEMINISSE VELIS Nenhuma (hora) passe que não desejes recordar G846,B362

 

61-63. A fugacidade:

NUNC EST HERI CRASTINAE DIEI Agora é o ontem de amanhã

OMNIA FERT TEMPUS, OMNIA RAPIT TEMPUS O tempo tudo traz; o tempo tudo leva

OMNIA SOMNIA Tudo é sonho G902

 

64. Sempre alerta:

OPTIMA FORTE TIBI Talvez a tua melhor (hora) G919

 

65. Uma rima com o lema beneditino:

ORA ET LABORA, SED HORA Reza e trabalha, mas na (devida) hora

66. Tal como o sol...:

ORIENTE ORIENS, CADENTE CADENS Nascendo no Oriente, acabando no Ocidente G933

 

67. O repouso só é repouso em função do trabalho:

POST LABOREM REQUIES Depois do trabalho, o repouso B666

 

68-69. Evocando o Eclesiastes:

PRAETERITUM NIHIL, PRAESENS INSTABILE, FUTURUM INCERTUM O passado é nada, o presente é instável, o futuro é incerto G990

PUNCTUM TEMPORIS OMNIS VITA A vida inteira é um ponto do tempo

 

70. A morte como consumação:

QUALIS VITA FINIS VITAE Tal é a vida, tal seu final

 

71-72. Outras sentenças bíblicas:

QUANDO CONSURGES E SOMNO TUO? (Pro. 6,9) Quando despertarás de teu sono?

QUI MALE AGIT ODIT LUCEM (Jo, 3, 20) Quem faz o mal odeia a luz B207

 

73. Uma pitada de simpatia:

SALVE VIATOR, VIDE HORAM Salve, ó viandante, olha a hora

 

74. Religiosamente:

SEQUERE DEUM UT EGO SOLEM Segue a Deus como eu sigo o sol

 

75. Atrasou, dançou:

SERIO VENIENTIBUS OSSA Para os atrasados, os ossos

 

76. Sempre de novo a caducidade:

SIC LABERIS, NON IPSE SENTIS Assim declinas (como as horas) e não reparas B595

 

77. O relógio, como o homem, anseia pela luz:

SINE NUBE TIBI QUAELIBET HORA FLUAT Que cada hora seja para ti sem nuvens G605

78. Alguns registram enigmas:

SINE PEDE CURRO, SINE LINGUA DICO Não tenho pé e corro; não tenho língua e falo

79. A fé como luz:

SINE SOLE EGO, TU SINE FIDE NIHIL POSSUMUS FACERE Eu sem sol e tu sem fé, nada podemos fazer

 

80. Cristo, o sol:

SOL LUCET OMNIBUS O sol brilha para todos

81. A sombra como luz:

SOL ME VOS UMBRA REGIT Eu sou guiado pelo sol; tu, pela sombra B241

 

82-84. Jogos com "sol":

SOL SOLUS NON SOLI O sol é único, mas não para um só

SOL SOLUS SOLES SOLARI Só o sol sói consolar

SOLI SOLI Só ao sol

 

85. Para a mentalidade alegórica dos antigos o relógio é um modelo da vida humana:

SPECULUM VITAE Sou o espelho da vida

 

86. As horas de cada um:

SUA CUIQUE HORA Cada um tem sua hora B942

87. Ainda os jogos com "sol":

SUM SI SOL SIT Sou se o sol está

88. Tarda mas não falta:

TARDA SAEPE SED CERTA VERITAS AC JUSTITIA VENIT A justiça e a verdade freqüentemente tardam, mas não faltam B186

 

89. A luz sobrenatural:

TE REGAT ALIA LUX Que outra luz te guie B336

 

90. Jogo:

TEMPORA TEMPORE TEMPERA Oportunamente aproveita as épocas

 

91. Deus falando...:

TEMPORIS MEMOR MEI, TIBI POSUI MONITOREM Cuida de meu tempo, para isto te dei este medidor

 

92. O reverso do tempo que passa:

TEMPUS AETERNITATEM EMIT Com o tempo se compra a eternidade B366

 

93. O tempo imagem da eternidade:

TEMPUS FUIT EST ET ERIT O tempo foi, é e será

94. O império do tempo:

TEMPUS RERUM IMPERATOR O tempo rege todas as coisas

 

95. O que passa e o que fica:

TRANSIT HORA, MANENT OPERA As horas passam, as obras ficam

 

96-99. O jogo luz/sombra como imagem da criatura que procede do Ser a partir do nada:

UMBRA MONET UMBRAM A sombra avisa a sombra (que és tu)

UMBRA SUMUS Sombra somos B302

UMBRAE MULTAE, LUX EST UNICA As sombras são muitas; a luz, única

VIVENTIBUS LUMEN SOLIS. DORMIENTIBUS LUMEN DEI Para os que vivem, a luz do sol; para os que dormem, a luz de Deus

 

100. Despertar para o sentido do que se faz:

VIVERE MEMENTO Lembra-te de viver B446

 

 

1- De fato, muito antes de entrar em vigor a moda - hoje em dia, mundial - dos adesivos em camisetas ou veículos (desde propaganda política aos "eu 'coração' tal cidade, passando por sentenças humorísticas, piegas ou publicitárias), já os "irmãos da estrada" apregoavam suas tiradas em mensagens bem-humoradas, "filosóficas", eróticas ou religiosas, freqüentemente ligadas à própria condição profissional (que, num país de dimensões continentais como o Brasil, significa, em muitos casos, uma autêntica epopéia). A insegurança e a solidão da viagem, o status de possuir um caminhão, a dureza do trabalho e a ingenuidade da alma brasileira, que não teme se expor, consubstanciaram-se em milhares de máximas como: "Em cada coração uma saudade", "Dirigido por mim, guiado por Deus", "Ao invejoso dói mais o sucesso alheio do que o próprio fracasso", "Pão de pobre sempre cai com a manteiga para baixo", "Marido de mulher feia detesta feriado", "Feliz foi Adão que não teve sogra nem caminhão", "Se grito (buzina) resolvesse, porco não morria", "Em casa, alguém reza por mim", "Carona, só de saia", "Sem caminhão, o Brasil pára", "Se me vir abraçado com mulher feia, pode apartar que é briga", "Se casamento fosse bom, não precisava de testemunha" etc.

2- Suas fontes principais são os clássicos: Boursier, C. 800 devises de cadrans solaires, Paris, Berger-Levrault. (abreviado por B) e Gatty, Arthur, Mrs: 1872: The Book of Sundials, London, Bell and Daldy, 1872 (abreviado por G) e outras. Ilustrações extraídas de CLOCKS and TIME Sundials by F. J. Britten http://www.ubr.com/clocks/sundial/sunfg.html

3- Que, no Brasil, deu origem ao ambíguo dístico: "movido a álcool".