O Polígrafo Carlos Drummond de Andrade
"El escritor quiere escribir su mentira y escribe su verdad" Introdução O bem-humorado poeta norte-americano Oliver W. Holmes resumiu em poucas palavras uma das atitudes humanas mais intrigantes: "Dêem-nos o supérfluo da vida, e dispensaremos o necessário". Estar bem informado é importante, mas supérfluo, quando pensamos numa necessidade natural que, por outro lado, deixamos tantas vezes em segundo plano: "Todo homem deseja naturalmente ser sábio" (Aristóteles). Os grandes poetas nos confidenciam que, quanto ao ser humano, podemos afirmar esta dupla verdade: a natural necessidade de conhecermos a explicação total da vida e a concomitante facilidade com que nos aferramos a sucedâneos que satisfazem epidérmica e sempre temporariamente a sede insaciável. Não que os poetas queiram provar por A + B (o que falsearia ou, pelo menos, enfraqueceria o élan poético) teses gnoseológicas e metafísicas. Contudo, por acertarem mais do que imaginam, dão razão às sensatas palavras de Dietrich von Hildebrand, num dos seus livros:
Penso ter identificado a validez deste raciocínio no poema A MÁQUINA DO MUNDO(2), texto central da obra drummondiana. Se bem que, no poema, homem e artista não são de nenhum modo dissociáveis, é também evidente que, no poeta, convivem percepções e intuições discordantes, ambas de algum modo "tatuadas" na carne das palavras. No caso em questão, a filosofia de vida de Drummond foi por ele mesmo definida na sua última grande entrevista, meses antes de falecer: "Eu sou uma pessoa inteiramente pessimista, cética. Não acredito em nenhum valor de ordem política, filosófica, social ou religiosa. Acho a vida uma experiência que tem de ser vivida, mas que se esgota e termina, acabou, não tem nada"(3). Coerentemente, Drummond - observou Paulo Francis várias vezes - não usava seu imenso prestígio para interferir no debate cultural e político brasileiro. Coerentemente não se candidatou a uma vaga da Academia Brasileira de Letras. Coerentemente, pediu que seu sepultamento não tivesse nenhum aceno religioso, e esse desejo foi atendido. Cético, apesar de sua sensibilidade, conseguiu, no entanto, graças a seu talento, tornar alcançável à nossa consciência um ângulo inesperado para observar o mundo, no mencionado poema. Um ângulo que pressupõe justamente o contrário do ceticismo por ele professado. O poema
Anoitece. O sino rouco da igreja, que acompanha o ritmo dos passos do caminhante (não mais peregrino, pois já não existem "mecas" a atingir), convoca os fiéis para a oração noturna. A paisagem escura circunda o lento andarilho e se confunde com as trevas do desengano que se desprendem do próprio homem. Por outra parte, a ambigüidade sintática (em "vinda dos montes") permite entender que a máquina do mundo vem dos montes e também do ser desenganado. Nesta hora decisiva, entreabre-se a máquina do mundo, a mesma que Tétis mostrara a Vasco da Gama, no canto X dos Lusíadas:
O desconcerto gerado pela súbita epifania manifesta-se no uso da conjunção causal "como", logo no primeiro verso. O aparecimento não mais aguardado - pois se esquivava e chorava desconsolado quem tentara abrir à força a (o segredo da) máquina do mundo - é causado pelo próprio término da procura, pela própria desistência, pelo próprio fecho da vida inútil. A máquina do mundo, contendo tudo em si - e em conseqüência também o homem que a procurava -, parece ter esperado que este fizesse a última tentativa para depois, e só depois, recompensá-lo.
A tranqüila superioridade da máquina justifica a decisão de abrir-se agora, no término iminente do dia, e não antes. Abre-se serenamente, respeitando a exaustão do homem que examinara o deserto, que gastara a visão física e intelectual no esforço por conceber o transcendente, e que já renunciara à luta pelo conhecimento metafísico, traço típico do nosso tempo pós-existencialista. O homem se detém, surpreendido pela tardia revelação do objeto da pesquisa há pouco abandonada. Não nos esconde a sua admiração e o seu cansaço. Nem o desabrochar do ressentimento.
O anteriormente vibrante pesquisador tornou-se noturno, ser consumido, cego, incapaz de pensar. Mas está resignado. Não desejaria recobrar a vitalidade, porque - eis o motivo do desânimo - repetimos sempre e inutilmente as mesmas desnorteadas e tristes viagens, pesquisas e experiências. O eterno retorno do nada. "Repetimos" - o poeta pluraliza-se, generalizando o seu sisifismo. A máquina do mundo, porém, faz o convite, oferecendo ao seu possível interlocutor o sentido último, objetivo, inimaginável, o supra-sentido de tudo, a única coisa necessária à plena realização humana. Que somente o faça agora é talvez incompreensível. Por que a demora? Crueldade? Ou uma forma de dar a entender que a verdade não é o resultado exclusivo de nossas forças mas um presente, um dom que não merecemos receber, e que recebemos quando menos esperamos? O convite é feito no silêncio mais profundo da consciência do poeta, onde habita a própria máquina do mundo, mais íntima ao "eu" do que o próprio "eu". Seus olhos e ouvidos, seu coração e sua inteligência são encorajados por um impulso íntimo a acolher o indizível, o absoluto. O convite vem igualmente de "alguém" sobre a montanha, alusão ao caráter místico dos pontos elevados, próximos do céu. O convite traz a Razão de Ser, o que dá valor à espera de toda uma vida, e colhe o suposto peregrino um segundo antes de sua de(x)istência.
O objeto da contemplação é o todo, incluídas aí as idéias e as obras humanas, a natureza, o enigmático, enfim: toda a realidade, que supera os limites da existência individual e exerce, sobre esta mesma existência, irresistível atração. O "absurdo original" não seria propriamente o nauseante, mas sim o que ultrapassa o raciocínio comezinho e igualmente participa da "ordem geométrica de tudo", estranha porque extraordinária em sua harmonia. Há um chamado para esse reino augusto. O sino rouco (1ª estrofe) e as aves negras que pairavam no céu de chumbo (2ª estrofe) eram já um prenúncio, um augúrio deste apelo misterioso. À visão do poeta, e à do leitor, exponhem-se num relance as luminosas verdades, mais altas que todos os monumentos a ela dedicados, entre cujas acepções está não só a de monumento como obra de arte, que homenageia, como também a de suntuoso sepulcro. Tudo vendo - e os anseios humanos resumem-se em ver tudo -, o poeta alcança o grau máximo de objetividade. Independentemente do seu "sim" ou "não" ao chamado, translada para o verso o clarão que reverbera nos seus olhos, ainda que essa visão, que não lhes custa, soe como um insulto. O poeta não pode recalcar a admiração perante o desvendamento da máquina ontológica. O uso constante do enjambement, quebrando desde o início a dicção rotineira e fazendo das falsas terminações dos decassílabos uma ocasião de surpresa, de perda de fôlego, de embaraço até para o leitor - tal uso provoca a sensação do inabarcável, do luminosamente transbordante.
O desdém (sem alardes) é a lúcida reação do ressentido. Nenhum ressentimento por causa de algum defeito da coisa oferta, mas porque faltam a quem foi chamado a fé, o anseio, a esperança, o anelo, a crença, a curiosidade. A face neutra, indefinida (ne uterque, nem uma coisa nem outra), não maltrata, não agride - simplesmente faz baixar o olhar; não afirma - nega por omissão e indiferença. Cortês indiferentismo que jamais expulsa a lucidez, embora não a leve às últimas conseqüências. O problema não reside na percepção do "apelo maravilhoso", mas na vontade, esquiva, reticente, orgulhosa, secretamente magoada. Antes, habitava no "eu" um outro ser, cujo coração ardia de sede pela Resposta. Agora, domina este mesmo "eu" alguém fatigado, incapaz de recepcionar o gratuito, a graça (mesmo que tardia, é graça), que, como tal, surge à margem das explicações racionalistas - e mais ainda do pessimismo epistemológico.
A escuridão tenebrosa envolve o "eu", que entra agora no terceiro movimento da solidão: o balanço da perda ou da perdição? . Os dois movimentos anteriores foram a procura (inútil, aos olhos antes apressados) e o encontro indesejado, descompassos dolorosos, sendo o segundo conseqüência do desgosto experimentado, e não positivamente assimilado, no primeiro. Conclusão Dono de um léxico e de uma sintaxe complexos, o poema expressa uma gravidade que não se converte em reverência, um conhecimento que não resulta em adesão. A tristeza moderada cobre de dignidade o vitimismo, o educado gesto de repúdio. Tudo o que o poeta deseja, vislumbra, e transforma em palavra inesquecível, ele mesmo não o aceita. Que estranho divórcio no qual admiração e rejeição se fazem uma só carne num só poema! A rejeição polida, sem a mais leve cólera, rejeição silenciosa, convive com a descrição do indescritível, com a visão extática. Polígrafos por natureza, os grandes poetas referem-se a mais coisas do que pensam conhecer; expressam mais do que pensam poder expressar, graças ao modo como mergulham suas mãos sensíveis na realidade. E da realidade, e de sua própria subjetividade, retiram tudo mais do que poderia caber no conjunto heterogêneo de suas opiniões ou em sua restrita ideologia. "Je est un autre", dizia Rimbaud, "eu é outro". O poeta se ultrapassa: é superficial e sábio, pessimista e clarividente, cético e místico, triste e beatífico. Por que o poeta não aceita o oferecimento da Máquina, tal como aceitou a mensagem do anjo torto ("vai ser gauche na vida"), anúncio este incomparavelmente menos empolgante? A liberdade humana é tão enigmática quanto a liberdade sobrenatural da Coisa, que quis aparecer no fim do dia, no fim da procura, no início da noite. O "eu", por sua vez, reluta. Ele queria o encontro diurno e este não aconteceu. Talvez por isso desdenha a única coisa necessária - o Saber em busca do qual se entregara ardentemente. Rejeita-a porque sim, porque um "outro ser", uma outra vontade prefere não assumir o papel de filho pródigo, desnudo, a pedir guarida, a aceitar a hora tardia do convite. Desdenha porque sim, porque prefere declinar o auxílio superior, justamente quando lhe faltam as forças da fé, da juventude e da esperança. Carlos Drummond de Andrade é esses dois "eus" - o homem orgulhoso e o homem religioso, o homem niilista e o homem bíblico. É niilista por aderir ao tom arredio e perplexo dos agnósticos e é homo religiosus por crer "sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, mas que nele se manifesta e, por isso mesmo, o santifica e o torna real"(4). Em A MÁQUINA DO MUNDO, Drummond traz à luz este homo religiosus, não por fraqueza ou incoerência, porém. Ilumina-o em virtude da intuição poética que nele agia, e cujas descobertas teve o mérito de não reprimir, plasmando-as. No desfecho, o poeta colhe o desengano em que resulta a negação do sagrado, e um dos seus motivos mais terríveis e inconfessáveis: o orgulho ferido. Continuará caminhando, vagarosamente, mas já não há caminho. Não há mais a pressa de chegar, porque o ponto de chegada já passou. Contudo, o ponto de chegada continua existindo. Sim, o sagrado está eclipsado para o poeta. No entanto, como "um eclipse do sol é algo que ocorre entre o sol e nossos olhos, e não no próprio sol"(5), é preciso lembrar que o sol existe. Não se esconde, assim, a verdade do "eu" negador nem a repudiada verdade do sagrado. Uma e outra se projetam no poema, realisticamente. 1- "Two very different things operate in the mind of any creative artist: the one is his artistic talent itself, the other is his view of life based on the influence of some philosopher. Often enough it happens that the talent of artists will carry their creative work far beyond their theoretical philosophy of life. Their artistic gifts will force them even to forget their theoretical philosophy and move their creative work into the world of truth". (em: Jaws of death: gate of heaven. Manchester, Sophia Institute Press, 1991, p. 133.) 2- Em: Nova reunião. 2ªed., Rio de Janeiro, José Olympio, v. 1, 1985, pp. 300-2. 3- Claros enigmas, entrevista a Luiz Fernando Emediato para o Caderno 2 de O Estado de S. Paulo, 19.10.86. 4- Mircea Eliade. Lo sagrado y lo profano. 3ª ed., México, Guadarrama, 1979, p. 170. 5- Martin Buber. Eclipse de Dios. 2ª ed., México, Fondo de Cultura Económica, 1995, p. 48. |