Liberdade de Comunicação e
Projeto de Lei de Imprensa
Entrev em 8-9-97 Prof. LJL

Guilherme Döring Cunha Pereira

(Professor de Direito da Comunicação do Master em Jornalismo para Editores)

 

Mirandum: O tema imprensa tem sido amplamente debatido em função do polêmico projeto da nova Lei que tramita na Câmara dos Deputados. Por que as mudanças têm causado tantos questionamentos?

G.C.P.: A razão principal é, inegavelmente, a própria relevância do tema. Sempre que o que está em jogo é a mídia, a repercussão de qualquer mudança legal pode ser imensa. Como elemento chave da cultura moderna e pós-moderna, uma alteração nos limites e contornos de sua atuação traz de forma inevitável conseqüências graves, positivas ou negativas. Eu faria uma comparação com os fluxos e refluxos dos grandes rios: qualquer movimento em seus leitos afetava profundamente, em todos os sentidos, a vida das civilizações que se construíam ao longo de suas margens.

Mais concretamente, os interesses que podem ser afetados pela mídia são os mais preciosos e fundamentais do homem e da sociedade: todo o conjunto dos bens personalíssimos de cada pessoa (a honra, a privacidade, a imagem, etc...), a liberdade de manifestação das próprias convicções, e, portanto, a liberdade política e a própria democracia, etc... E a polêmica está ligada em boa parte à dificuldade de se encontrar a medida justa que permita defender adequadamente tantos interesses de tamanha magnitude.

 

Mirandum: Em artigo publicado na Gazeta do Povo de cinco de maio do ano passado sobre "a Responsabilidade Civil no Projeto de Lei de Imprensa", o senhor fala sobre os punitive damages (que muitos juristas desconhecem), afirmando "parecer difícil justificar uma condenação com esse teor quando existe para a imprensa, no direito brasileiro, multa e outras sanções que exercem a função corretiva". A própria indenização por dano moral já não é considerada punitiva levando em conta estar, de certa forma, ligada à idéia de sanção? Não seria ela suficiente, uma espécie de lei de talião civilizada?

G.C.P.: A pergunta é interessante e atinge o nervo da própria justificação da indenização por danos morais. Não é pacífica na doutrina a natureza dessa indenização. É comum afirmar-se que tem um caráter compensatório para a vítima e um caráter punitivo para o ofensor. Este caráter, no entanto, não é senão a outra face daquele, que é predominante. O aspecto punitivo que vai atrelado à função de compensar a vítima da ofensa não costuma despertar celeumas e não é a ele que se quer referir quando se usa a expressão punitive damages. Os punitive damages consistem no valor pecuniário que o autor da ofensa é condenado a pagar à vítima para além da condenação predominantemente compensatória. Em geral, acrescentam-se aos actual damages (indenização por dano efetivamente apurado, ainda que de natureza moral), que devem também ter sido fixados, e não guardam proporção com a ofensa. A concepção provém do direito anglo-saxônico e é o fundamento das indenizações milionárias de que por vezes se ouve falar. Mas mesmo lá vem sendo alvo de intensa polêmica. Com relação à imprensa, alguns estados americanos, por entender que os punitive damages limitam indevidamente a liberdade de expressão consagrada na Primeira Emenda, proíbem (é o caso de Washington e Massachussetts, entre outros) ou restringem sua aplicação (Califórnia, por exemplo).

No direito brasileiro, embora já tenha havido algumas decisões recorrendo a essa figura, ela deverá encontrar alguma dificuldade de "aclimatação". Os princípios da responsabilidade civil não se lhe adaptam facilmente. Uma condenação, a favor de quem sofreu o dano, que seja maior que o dano verificado seria considerado por alguns juristas enriquecimento sem causa, o que repugna ao nosso sistema jurídico e ao regime da indenização civil. Alguns importantes autores, no entanto, não vêem o óbice como absoluto e têm defendido sua adoção no ordenamento brasileiro.

Penso que é preciso cautela. Mas há situações em que de fato a não adoção de punitive damages levaria a injustiças flagrantes. Pode ocorrer, por exemplo, que uma pessoa ofenda outra ou invada sua privacidade pretendendo obter um benefício econômico desse ato, já prevendo inclusive a indenização à vítima como parte de seus custos. Jornais sensacionalistas e certos programas de televisão são propensos a práticas do gênero. O lucro obtido com a veiculação do ilícito pode superar, e muito, o valor que seria necessário para compensar razoavelmente o ofendido. Nessas circunstâncias, fixar uma indenização meramente compensatória é fazer o jogo do ofensor. E, ao contrário, fixar punitive damages seria uma possível solução.

Observe-se, porém, que as sanções penais satisfazem essa mesma necessidade e, em conseqüência, quando estão previstas, deveriam excluir a possibilidade da "indenização punitiva". Assim, por exemplo, uma ofensa intencional à honra é crime, sujeito à pena de prisão e/ou multa, dependendo do caso. Ora, uma "pena civil" seria uma sobreposição de medidas legais com o mesmo conteúdo.

É bem verdade, contudo, que as multas atualmente cominadas são irrisórias. Seria importante aumentá-las, se se quer obter soluções justas e eficazes. Não há aqui qualquer menoscabo ou restrição à atividade jornalistica. Antes, pelo contrário, a utilização da mídia de forma dolosamente prejudicial constitui uma deturpação tão grave da atividade que deve ser punida severamente.

Agora, por outro lado, nem todo ilícito praticado pela mídia tem cunho penal. Nesse âmbito, não penal, a admissão de punitive damages pode ser um importante instrumento de eqüidade. Assim, por exemplo, a violação da privacidade não constitui crime na atual lei de imprensa. Se praticada de forma dolosa ou gravemente negligente, poderia justificar uma condenação civil punitiva. Idem no caso de uma ofensa não intencional à honra, que não constitui crime.

O tema é especialmente grave e mereceria uma discussão mais intensa e específica. Talvez se pudesse inclusive estipular que as indenizações punitivas ou exemplares fossem pagas não à vítima, a quem caberá uma indenização compensatória adequada, mas a um fundo público que tenha funções ligadas à mídia. Assim se evita o escólio do enriquecimento sem causa.

A nova lei de imprensa precisaria disciplinar essa matéria.

 

Mirandum: O tão criticado artigo, suprimido na versão do deputado Vilmar Rocha, que atrelava a indenização ao faturamento bruto da empresa jornalística do ano civil anterior à condenação, criando o "regime de terror", pelo senhor aludido no mencionado artigo, não estaria em desacordo com o espírito da legislação referente ao ressarcimento?

G.C.P.: Entendo que sim, que está em flagrante desacordo. Aliás, o que se tem percebido é que nossos congressistas estão bastante aturdidos com o problema dos limites da indenização na lei de imprensa. E se se limitarem a discutir a quantificação dessa indenização não vão chegar a qualquer consenso razoável. Há um problema estrutural prévio que precisa ser solucionado.

É fundamental distinguir previamente a disciplina dos danos morais daquela dos danos materiais.

Não há em primeiro lugar porque traçar qualquer limite à indenização dos danos materiais. Seria um privilégio, já que o princípio geral é o dever de reparar o prejuízo ocasionado na totalidade de sua extensão. Privilégio intolerável e inconstitucional quando a ofensa fosse dolosa e desnecessário e pouco razoável quando culposa (a lei atual, porém, limita a indenização por dano material nos ilícitos contra a honra culposos). O especial status da atividade jornalística já tem seu reflexo no afastamento da responsabilidade objetiva.

A questão dos limites da indenização faz sentido apenas quando referida ao dano moral, em si mesmo inapreciável economicamente. Uma quantificação pecuniária pouco criteriosa pode de fato ser abusiva. Daí o receio das empresas jornalísticas.

O limite estabelecido numa das versões do projeto, porém, era extremamente perigoso. Até julgo que possa haver situações em que aquele valor máximo (20% do faturamento bruto) seja justo. Mas não adianta argumentar que se trata simplesmente de um teto, que seria atingido apenas em poucos casos. Pelo fato de se referir a faturamento bruto, um juiz tenderia a proferir suas condenações sempre em termos de faturamento bruto, o que seria quase sempre excessivo, mesmo que a porcentagem por ele fixada fosse mínima (suponhamos 0,1%). Poder-se-ia criar assim uma cultura de indenizações muito elevadas para danos morais. O efeito psicológico desse parâmetro precisa ser levado em consideração.

Pessoalmente, estou convencido de que a melhor solução é não estabelecer valor máximo algum e confiar no critério de quem tenha de julgar cada litígio. É a solução da última versão do projeto, a que vai ser votada nas próximas semanas. Se se examinam as decisões a respeito de indenização moral, o que se observa como regra geral é o equilíbrio, com uma tendência inclusive à fixação de valores que se poderiam julgar inferiores ao que seria razoável. Houve alguns excessos e inclusive se tem noticiado a máfia das indenizações num estado do nordeste, mas penso que isto pode ser coibido pelos tribunais superiores.

Os critérios, portanto, devem ser genéricos, tal como estipulados no atual art. 6º do projeto. Dever-se-ia acrescentar a isso, porém, uma disciplina adequada dos punitive damages, como mencionei na questão anterior, pois, sem a menor sombra de dúvida, é por este lado que podem aflorar os abusos.

 

Mirandum: Houve alguma mudança quanto à proteção da privacidade?

Houve, e significativa. A invasão à privacidade passará a estar tipificada como crime (art. 9º,VII), o que não ocorre hoje. É aparentemente uma evolução. Digo aparentemente porque o dispositivo é em grande parte anulado pelo art. 12, que determina que: "não constitui ato de violação à intimidade, à vida privada e à imagem das pessoas a divulgação de foto, de imagens e sons, quando fixados ou gravados diretamente em local público, gratuito ou pago".

Para efeitos jurídicos, os contornos da esfera da privacidade se definem em boa medida por contraste com o que se reputa informação de interesse público. Parece razoável que, como critério geral, o interesse público da informação prevaleça sobre o interesse particular da privacidade. O que, no entanto, não é razoável é presumir de maneira absoluta que toda informação obtida, por exemplo, em espaço público seja de interesse público, como parece indicar o citado art. 12 do projeto. Uma conversa que, por exemplo, mãe e filha, amiga e amiga, namorado e namorada mantêm enquanto caminham na calçada não pode ser reproduzida impunemente por um jornalista que a tenha escutado ou gravado enquanto os acompanhava desapercebidamente.

Havendo um conflito eventual entre liberdade de informação e direito à privacidade, colocados, em princípio, no mesmo nível de importância pela Constituição, parece sensato dar diretrizes aos que tiverem de julgar o conflito, mas não diretrizes inflexíveis, que, no caso concreto, poderão ser claramente iníquas, e, por que não dizê-lo, inconstitucionais.

 

Mirandum: Há algum tempo havia acirrada discussão quanto à necessidade do diploma de jornalista. Como o senhor vê essa questão?

G.C.P.: Pessoalmente, estou convencido da inconstitucionalidade da exigência do diploma para o exercício da atividade jornalística. Quando o inciso XIII do art. 5º da CF autoriza a lei a estabelecer qualificações profissionais mínimas para certas atividades, essa autorização deve ser entendida restritivamente em sua finalidade. O bem comum, o interesse coletivo pode justificar uma limitação à liberdade, fundamental, de trabalho. Mas, observe-se, apenas o interesse coletivo pode fazê-lo, e nunca o interesse de uma categoria profissional. Dito de outro modo, exigências profissionais mínimas, como ter obtido diploma universitário, valem "para fora" e não "para dentro". Não podem ter por fim, por exemplo, assegurar um mercado para os que tiveram acesso a uma faculdade.

No caso do jornalismo, não vejo que necessidades coletivas fundamentais possam justificar a limitação ao exercício da profissão atualmente existente. Antes, estou seguro de que essa restrição só vem em detrimento das empresas de comunicação e dos próprios leitores de periódicos. Quanto às faculdades de jornalismo, é possível assegurar que não existe hoje um curso de excelência e que a grande maioria delas está, ao contrário, bastante acomodada, precisamente porque têm assegurado o monopólio da formação profissional e as exigências externas não são suficientemente fortes para impor um nível mínimo de qualidade.

Lamento que o projeto não tenha eliminado essa exigência.

 

Mirandum: A seu ver, as coberturas jornalísticas de inquéritos policiais e processos judiciais, sob o prisma do projeto, manterão sua forma ou sofrerão alguma alteração?

G.C.P.: O projeto, na linha da lei atual, não tratou explicitamente da questão, o que é uma pena. É um dos campos em que mais injustiças se têm cometido. O princípio de que ninguém é culpado até prova em contrário já foi esquecido há muito tempo. Não se poupa ninguém, bastando que se tenha levantado a mais mínima suspeita sobre uma pessoa para que isso seja trazido a lume. Os veículos de comunicação mais sérios costumam proteger-se não assumindo as acusações, mas atribuindo-as a autoridades, normalmente policiais. Dificilmente serão condenados. E a condenação será ainda mais difícil se o projeto for aprovado, uma vez que em seu art. 11 afirma-se que "não haverá responsabilidade do profissional quando a ofensa à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas decorrer de informação que tenha como fonte autoridade pública que possa ser identificada".

Malgrado a praxe que se instalou, penso que é preciso, e possível, interpretar esse texto, bem como o art. 27, VI da lei de imprensa em vigor (cujo parágrafo único contém um dispositivo de suma importância, que precisaria ser reproduzido no projeto), de uma forma mais exata e equitativa. Podem presumir-se de interesse público as informações fornecidas pelo poder público, enquanto poder público e dentro dos limites de sua competência. Quando a autoridade policial afirma que tal ou qual indivíduo é o criminoso ou o culpado de tal ou qual infração, ela, autoridade, extravasa de seus poderes, que se limitam ao levantamento de provas e indiciamento de suspeitos. Se os meios de comunicação reproduzem como notícia a afirmação da autoridade, não podem defender-se invocando o art. 27, VI ou o futuro art. 11. O meio de comunicação tornou-se cúmplice de um abuso de poder.

A longo prazo, o que é necessário é uma profunda revalorização da honra. Caso o projeto não venha a ser modificado para incorporar regras a esse respeito, seria muito conveniente que os próprios meios de comunicação estabelecessem normas éticas internas para lidar com a questão de uma maneira mais adequada e justa.

 

Mirandum: O que traz de mais positivo o projeto inovador?

Há, sem dúvida nenhuma, inovações positivas no projeto, como, por exemplo, o já tão mencionado fim da limitação da prova da verdade nas ofensas às mais altas autoridades do país (limitação que na verdade podia ser superada pelo recurso a certos expedientes e institutos previstos na própria lei de imprensa) e uma melhor disciplina da prescrição. Mas o mais positivo, a meu ver, é a própria possibilidade que a introdução do projeto trouxe de rediscutir um tema vital para um Estado de Direito como o Brasil. E espero que a discussão continue, porque a formulação atual do projeto não é ainda satisfatória.