Jornalismo Econômico: a Sedução do Poder

 

 

José Antônio Sarcinelli
(Repórter da Editoria de Economia
do Jornal "A Gazeta" - Vitória- ES)

 

 

Uma leitura rápida nas páginas econômicas dos jornais de hoje é suficiente para perceber que a reportagem de economia passou a concentrar seu foco em apenas um segmento da sociedade: a classe empresarial e seus representantes. As equipes de reportagem estão posicionadas junto ao poder político e econômico - presidente, governadores, prefeitos, deputados, ministros, senadores, vereadores e empresários - vendo o país e sua realidade econômica e social apenas pelo ângulo do poder, ignorando a parcela mais significativa da sociedade: trabalhadores, aposentados, donas-de-casa, estudantes, microempre-sários e funcionários públicos.

O jornalismo econômico, seja o praticado nos jornais de circulação nacional - como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e O Globo -, ou nos regionais, simplesmente excluiu os já socialmente excluídos. Raras são as matérias abordando as condições de vida, os sonhos e os atos dos sem-teto, sem-escola, sem-família, sem-saúde, enfim, sem-cidadania. A realidade econômica e social, fruto da má-distribuição da renda, tão visível nas ruas de nossas cidades, parece não ter força para chegar até as páginas dos diários.

É claro que os excluídos não dispõem do mesmo aparato técnico e institucional das empresas e organismos políticos - assessoria de imprensa, fax, e-mail - para inundar as editorias de releases. Talvez nunca tenham colocado o pé dentro de uma redação de jornal. Muito menos conhecem o editor e os repórteres. E não presenteiam com agendas e outras quinquilharias no Natal e no Ano Novo. A capacidade de disputar com o poder político e econômico as páginas de Economia, dentro da estratégia de lobby que cerca as redações, é muito pequena, para não dizer nenhuma.

 

Produtos, balanços e investimentos

 

A temática, com raras exceções, é praticamente uniforme: lançamentos de produtos, balanços setoriais e investimentos - A nova cerveja da Antárctica; as vendas do setor de material de construção no semestre; o comércio menor de produtos importados; a proposta de compra da Acesita feita pela Usiminas; os consórcios formados para a compra do terminal de contêineres do Porto de Santos; lançamento de US$ 500 milhões em bônus por parte da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN); o investimento de US$ 300 milhões da Ford em Taubaté (SP).

Depois de décadas de economia fechada, a globalização chega ao país de forma avassaladora, envolvendo a todos. A velocidade das mudanças atropela a reflexão. Os editores, que definem os temas que serão abordados pela reportagem no dia-a-dia do trabalho jornalístico e apontam o enfoque a ser dado a cada assunto, foram, ao que parece, "engolidos" por este fenômeno. A abertura e a competição do mercado, a modernidade, se transformaram, da noite para o dia, nos principais dogmas da economia e os valores anteriores, em fósseis jurássicos.

Os reflexos destas mudanças na sociedade, entre eles a quebradeira de empresas nacionais, principalmente as de pequeno e médio porte, e o desemprego, não estão na pauta do dia - a globalização concentra mercados nas mãos de poucas multinacionais e reduz o número de postos de trabalho, por conta da introdução de novas tecnologias e pelo maior grau de automação. O senso crítico está, em boa parte, sendo anestesiado pelo glamour de um mundo funcionando como uma só aldeia.

A busca de informações privilegiadas - a necessidade egocêntrica de "furar" o concorrente - sobre novos investimentos, principalmente no setor industrial e financeiro, transformou-se numa verdadeira obsessão. A globalização econômica contribuiu para acirrar a disputa por estas informações, na medida em que inseriu o país na rota dos capitais internacionais. A cobertura sobre os projetos, em especial os das montadoras de veículos, virou uma grande festa. A cada dia as páginas mostram, com ar triunfante, uma nova fábrica de carros aportando no país.

A competição comercial entre os veículos induziu as Redações a uma verdadeira corrida pelo "furo" de um novo investimento. E dentro desta corrida, a ética muitas vezes acaba atropelada. A informação verdadeira, medida, checada, nem sempre predomina.

Linhas e linhas de texto, apoiados em fontes incógnitas - offs e mais offs - inundam as páginas econômicas, abrindo espaços para a leviandade. Como provam, no dia seguinte, as notas oficiais de desmentido.

E no meio disso tudo, o que pensam os Josés e as Marias deste país, que constituem 80% da população economicamente ativa e sobrevivem com renda - formal e informal - de no máximo três salários mínimos (R$ 360,00)? Entre eles o metalúrgico desempregado que sustenta a família com a venda de sanduíches em porta de fábricas.

O que pensa o poeta José Gilberto Gaspar, do bairro paulistano da Casa Verde, cuja ótica - apresentada aos participantes do Master em Jornalismo para Editores - é a da simplicidade da vida, da cordialidade e da solidariedade entre os homens? Mercosul, evolução do PIB, desempenho da balança comercial, oscilação nas bolsas de valores, Nafta, os novos veículos importados são temas de real interesse para esta que é a maior parcela da população?

O Todo e a Parte

A abertura para o todo, conceito defendido pelo filósofo Josef Pieper, em seu ensaio sobre o papel da universidade - onde lembra que o espírito de uma instituição desta natureza deve ser o de reunir todos os valores, tudo o que cerca o homem, e não seccionar a realidade -, serve como uma luva para o jornalismo econômico, dentro do que deveria ser o seu verdadeiro papel: espelhar a realidade, para que a sociedade, vendo a si mesma, busque as mudanças que se fazem necessárias para promover o bem estar de toda a população.

"Ao homem não é necessário apenas ampliar o seu saber acerca do mundo, mas talvez seja mais necessário ainda lembrar-se das verdades imutáveis e ser lembrado dela. E fazer isto de espírito inteiramente vigilante, sem fugir romanticamente da realidade, nada esquecendo ou desprezando do que, criticamente, sabemos sobre nós próprios e sobre o mundo", destaca Pieper no ensaio.

O filósofo alemão Karl Marx, no século passado, fez uma radiografia da nova organização social emergente da chamada reforma industrial, que permanece bem atual. Em sua obra, Marx mostra que esta nova organização, o capitalismo, tem como base a divisão da sociedade em classes de interesses conflitantes: a dos donos dos meios de produção (capital) e a dos que possuem apenas a força de trabalho (operários). O objetivo da primeira é agregar valor ao capital, através de ganhos sobre a produção do trabalho. A segunda participa do processo econômico como a força reprodutora deste mesmo capital, recebendo em troca uma parcela - bem pequena - da riqueza gerada.

A obra de Marx teve ampla repercussão e em cima dela foram estabelecidas as bases para uma nova sociedade, sem divisão de classes, baseada no socialismo. A queda do "Muro de Berlim" pôs a pique as primeiras experiências na formação da nova sociedade esboçada por Marx. Errado, porém, é jogar na lata de lixo da história a sua obra, principalmente a que desnuda o capitalismo, que vigora agora como a organização sócio-econômica vitoriosa da guerra fria. Esta radiografia está longe de ser "jurássica", tamanha é a sua atualidade. é claro que o capitalismo evoluiu e atualmente opera de forma muito mais complexa que na época dos estudos de Marx. Mas o embrião da realidade - e que marca a atividade econômica no Brasil, como no restante do mundo - permanece: a divisão social.

As relações entre estas duas classes básicas e os conflitos que as permeiam são na verdade o todo, na esfera econômica, lembrado por Pieper, no ensaio sobre a abertura da universidade. A partir do momento em que o jornalismo econômico ignora esta realidade, passa a encobrir os verdadeiros valores que impulsionam a economia e que explicam em boa parte as bonanças e mazelas deste país. E o desvia de seu papel de mostrar a realidade - e não uma imagem parcial dela - para que os agentes sociais possam, dentro do jogo democrático, promover as reformas necessárias ao bem estar coletivo.

A concentração de notícias empresariais no noticiário econômico dos jornais brasileiros, entretanto, afasta o jornalismo econômico do papel de promotor do bem estar social. A limitação dos temas desestimula o debate social, na medida em que a realidade é omitida. Deixa neste caso de atuar como um agente que vem lembrar à sociedade os valores esquecidos. Algo parecido com o que fazem as artes, a filosofia e a linguagem no contexto da humanização do homem, dentro do conceito da antropologia filosófica, que qualifica o homem como um "ser que esquece".

O que poderia justificar esta limitação do noticiário econômico? Falta de criatividade da pauta? Sedução do poder político e econômico? Sedução da chamada modernidade, que passou a considerar valores passados como "jurássicos" - estatismo, distribuição de renda, luta de classes etc.? O momento é de reflexão, principalmente quando nos aproximamos de uma nova eleição presidencial (evento raro nas últimas três décadas), o que abre a perspectiva de o país avançar em suas pendências sociais.

A humanização da pauta das editorias de Economia é uma via importante para recuperar a humanização das páginas econômicas dos jornais. é colocando os personagens reais deste país - a sua população - no centro do noticiário, que os Josés e as Marias ganharão corpo e voz. Ou seja voltarão a ser pessoas, com dramas, sonhos e ações, os mesmos dos leitores. Sem esta humanização da pauta, prevalecendo apenas a realidade sob a ótica do poder econômico e político, ou seja, o posicionamento preferencial junto a empresários e dirigentes políticos, cada vez menos serão os seus leitores. E num momento em que o índice de venda de jornais mostra sinais de queda, não é uma boa estratégia para os veículos distanciarem-se de seu verdadeiro público.