Prudência, Memória e Docilitas
na Recuperação do Alcoolismo

 

Luiz Ferri de Barros (1)

 

1. Apresentação

Neste artigo apresentarei, de forma breve e despretensiosa, algumas reflexões a respeito da filosofia de recuperação adotada pelos grupos anônimos de auto-ajuda, particularmente a adotada pela Irmandade dos Alcoólicos Anônimos (AA), à luz da doutrina das virtudes cardeais de Santo Tomás de Aquino.

Creio que este tipo de abordagem cumpre dois importantes objetivos. O primeiro refere-se à possibilidade de um melhor entendimento sobre as origens remotas e o significado profundo da filosofia de desenvolvimento espiritual contida nos Doze Passos dos AA (2), programa de recuperação que também é adotado pela maioria dos outros grupos anônimos de auto-ajuda. O segundo aspecto de interesse nessa análise é a demonstração de que há lugares em que a atualidade da filosofia de Tomás de Aquino não se trata apenas de anseio por uma educação moral ao meio de uma sociedade "sem valores".

De fato, nos grupos de auto-ajuda, mesmo que não se conheça a origem de diversas proposições, as pessoas praticam filosofias de crescimento espiritual que as levam a tentar cultivar virtudes. Sob certo aspecto, talvez seja possível dizer que muitos grupos de auto-ajuda constituem-se em raras instâncias sociais onde a educação moral é, muitas vezes, direta e explícita e não se dá por intermédio de uma "educação invisível"- para usar a consagrada expressão do educador espanhol Garcia Hoz.

Para efeitos desta análise, assumirei a interpretação da doutrina de Santo Tomás conforme exposta por intérpretes contemporâneos, apresentados por Lauand (3), em especial enfatizando a existência de quatro virtudes cardeais e o fato de que a prudência é considerada a primeira delas. Discutirei então o papel da memória e também da docilitas como partes quase-integrais da prudência.

 

2. O Vício, as Quatro Virtudes Cardeais e os 12 Passos de Alcoólicos Anônimos

Em AA, o alcoolismo em si, em geral, não é designado como vício. Pelo contrário, a entidade foi a primeira grande defensora da tese de que o alcoolismo constitui-se numa doença, já em 1935, quando de sua fundação.

Pesquisas científicas posteriores comprovaram este fato e na década de 60 a OMS (Organização Mundial de Saúde) reconheceu o caráter de doença no beber compulsivo do alcoólatra.

Assim, no sentido de combater preconceitos, educar o público e principalmente aliviar a dor moral do alcoólatra em recuperação, como mencionado, a palavra vício, em geral, não é utilizada, embora haja, na literatura de AA, algumas ocasiões em que ela aparece.

Descontadas as conotações pejorativas da palavra e sua freqüente inadequação em ambientes de recuperação, e mesmo considerando o caráter de doença do beber compulsivo, não se pode condenar a sabedoria popular simplesmente dizendo que seja errado designar-se o alcoolismo como um vício. De fato, pode-se perceber na linguagem corrente, segundo o Aurélio (4), acepções da palavra perfeitamente condizentes com o proceder do alcoólatra na ativa, tais como:

- "costume de proceder mal; desregramento habitual".
- "conduta ou costume censurável ou condenável (...)"

e, ainda, em sentido mais profundo, que os AA muito discutem:

- "inclinação para o mal (nesta acepção opõe-se a virtude)."

Vale, portanto, recuperar-se a idéia popular de vício, até para que se entenda com clareza que é por meio de um programa de crescimento espiritual (os 12 Passos e demais elementos da filosofia de AA), incentivando a prática de virtudes, que se consegue dar continuidade à recuperação das dependências. Em AA não basta parar de beber. Até porque não se acredita, a partir de mais de 60 anos de experiência acumulada, que seja possível apenas parar de beber. Para que não se volte a beber, diz a experiência, é preciso dispor-se a passar por profundas mudanças pessoais, na verdade a reformulação completa da cosmovisão e do estilo de vida (um processo de metanóia, pode-se dizer), o que se obtém pela prática do programa de desenvolvimento espiritual.

Enquanto a medicina classifica o alcoolismo como uma doença biopsicossocial, a AA não abdicou de sua classificação original, considerando-a como uma doença física, mental e espiritual não apenas porque o etilismo afeta o espírito como porque para recuperar-se é necessário recuperar igualmente o espírito. Como disse Jung, em carta dirigida a um dos co-fundadores de AA, "álcool em latim é spiritus e usa-se a mesma palavra para a mais alta experiência religiosa assim como para o mais perverso veneno. A fórmula auxiliadora é pois: spiritus contra spiritum. (5)"

O alcoolismo é uma doença progressiva; a partir de um determinado ponto, o sofrimento moral constitui ao mesmo tempo uma das maiores dores do alcoólatra e um dos maiores obstáculos à sua recuperação.

Não é por outro motivo que a realização de um "minucioso e destemido inventário moral", por escrito, constitui-se num dos primeiros passos do programa de recuperação (quarto passo). Ao enfrentar o quarto passo, o alcoólatra em recuperação vai deparar-se novamente com o vício, em todas as suas frentes. No quarto passo, para quem o pratique conforme sugestão dos primeiros AA, serão examinadas, principalmente, as deturpações dos instintos, o que se dá quando, desenfreados, os instintos deixam de cumprir seus papéis naturais de auto-preservação e crescimento e passam a ser forças destrutivas. A pessoa é convidada a examinar seu comportamento e suas convicções no que se refere a alguns assuntos especialmente sensíveis, tais como sexo, dinheiro, poder e, à falta de melhor roteiro de aceitação universal, para empreender o inventário é sugerida reflexão a respeito de cada um dos sete pecados capitais.

Todo esse esforço justifica-se para combater o que os AA denominam de "defeitos de caráter", ao mesmo tempo motivos e conseqüências do alcoolismo. Podem também ser chamados de "defeitos de personalidade". "Alguns chamariam de ‘índice de desajustes’. Outros se incomodariam bastante se se falasse em imoralidade, e mais ainda se se falasse em pecado. Contudo, todos os que sejam razoáveis concordarão em um ponto: que há bastante de errado em nós alcoólicos, havendo muito que fazer se esperamos conseguir a sobriedade, o progresso e a verdadeira capacidade de enfrentar a vida" (6).

Diversos comportamentos constelados do alcoólatra na ativa, frutos dos "defeitos de caráter" e dos "instintos desenfreados", poderiam, com liberdade de expressão, ser igualmente designados como vícios, em qualquer dos três sentidos citados acima e em especial enquanto opostos à virtude. Daí a necessidade de entregar-se à mudança, dispondo-se a tentar uma prática mais virtuosa, para poder-se liberar das amarras da dependência.

Analisando-se detidamente a filosofia de recuperação dos AA, pode-se identificar que ela propicia condições excepcionalmente favoráveis para o cultivo das quatro virtudes cardeais definidas por Santo Tomás: Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança.

PRUDÊNCIA


Sendo a Prudência a virtude primeira e, para os clássicos, uma virtude intelectual, que consiste na "arte de decidir-se com base no conhecimento objetivo da realidade (...) pelo límpido conhecimento do ser" (7), é naturalmente inacessível a quem se mantenha continuamente alcoolizado. A conquista da abstinência é, portanto, a primeira contribuição objetiva que o grupo oferece ao novo membro. A manutenção da abstinência e a prática da filosofia de recuperação permitirão o cultivo e o fortalecimento da prudência em outras formas, algumas das quais comentarei no tópico seguinte.

JUSTIÇA

A Justiça, entendida classicamente como "dar a cada um o que lhe é de direito", é cultivada, de forma inequívoca, no oitavo e nono passos, que sugerem fazer "uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado" e fazer "reparações diretas dos danos causados a tais pessoas". E também no décimo passo encontra-se um preceito relacionado à justiça: "Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente".

Vale comentar que os antigos em AA esclarecem com nitidez que as reparações do nono passo não significam necessariamente pedir perdão e nem podem se resumir ao pedido de perdão quando existe a possibilidade da reparação plena. Por exemplo, não é o caso de se desculpar por uma dívida, é o caso de pagá-la. A pronta admissão de um erro pessoal, junto a outras pessoas, é também um ato de dar ao outro o que lhe é de direito, no caso, a razão: o outro estava certo, não eu - admitir isto é um ato de justiça.


FORTALEZA

A Fortaleza, em alguns de seus aspectos principais, tais como o considerar a "vulnerabilidade do homem como seu ponto de partida" e considerar a "aceitação do sofrimento para alcançar um bem maior" (8), é uma virtude explicitamente cultivada pela filosofia de recuperação de AA.

Para o alcoólatra (etimologicamente: aquele que adora o álcool, idolatra o álcool), deixar de beber consiste de fato em ato heróico. Até porque, mesmo considerando que as pessoas só buscam recuperar-se quando já estão no "fundo do poço", o período inicial de abstinência é caracterizado por uma intensificação significativa do sofrimento. Enfrentar a síndrome de abstinência aguda e, em seguida, a síndrome de abstinência prolongada, representa justamente um grande esforço que o alcoólatra em recuperação está realizando, aceitando o sofrimento imediato em função de um bem maior que busca para si mesmo e para os que ama: atingir a sobriedade e a serenidade.

A valorização da consciência a respeito da própria vulnerabilidade encontra-se expressa com absoluta limpidez no seguinte Princípio de Ouro: "A fraqueza é a força" . Os Princípios de Ouro, em AA, são uma coleção de cerca de 30 aforismos que de forma sintética ilustram e complementam a filosofia de recuperação apresentada ao longo da extensa literatura do grupo. Na realidade, o primeiro passo de recuperação ("Admitimos que éramos impotentes perante o álcool (...)"), entremeia-se, ele também, com esse mesmo componente da fortaleza que está implicado na admissão da vulnerabilidade.

TEMPERANÇA

Com relação ao álcool, AA não é um movimento de Temperança, e isto é explicitamente declarado em sua literatura (9). O portador da doença do alcoolismo caracteriza-se precisamente por sua incapacidade de controlar a ingestão de álcool. A doença é considerada incurável e a possibilidade de recuperação consiste em se alcançar uma disciplina que permita o controle da doença a partir da abstinência total. É possível para o alcoólatra controlar seu alcoolismo e permanecer sem beber, entretanto não é possível que ele volte a beber moderadamente, sem perder o controle.

Esta negação da possibilidade de comedimento com relação ao álcool é extremamente importante e encontra-se já no primeiro passo: "Admitimos que éramos impotentes perante o álcool (...)". Antes da realização do primeiro passo, a maioria dos ingressantes em AA almeja alcançar a temperança, a possibilidade de beber socialmente, sem perder o controle. Ressalte-se, inclusive, que embora o alcoolismo seja uma doença que atinge grandes faixas da população mundial (cerca de 10% dos indivíduos), poucos são os médicos que a conhecem adequadamente. É comum que os médicos, movidos pela idéia da temperança, aconselhem seus pacientes alcoólatras a "maneirarem" com a bebida, atitude que está fora do alcance e que apenas retarda a recuperação.

Em outros aspectos da vida, entretanto, pode-se com segurança afirmar que a temperança é uma virtude que tentam praticar muitos dos que seguem a filosofia de AA. Para a própria manutenção da abstinência recomendam-se cuidados com a alimentação e o descanso, por exemplo. Indica-se que a compulsão do alcoólatra não se restringe à sua maneira de beber, estendendo-se para várias de suas atividades, podendo ser igualmente nociva em outras áreas, inclusive no trabalho (o que hoje se denomina workaholics).

Outra questão extremamente discutida em AA, e muito valorizada, é a necessidade de se adquirir controle emocional, sendo necessária uma permanente vigilância de si mesmo para evitar a vivência de estados excessivamente alegres (euforia) ou excessivamente tristes (depressão), visto que estes extremos são perigosos para a manutenção da abstinência. Esta tentativa de conservação de equilíbrio, de comedimento em relação às próprias emoções, relaciona-se também à prática da virtude da temperança (10).

 

3. Prudência, Memória e Docilitas na Recuperação

A Prudência, como já mencionado, é a primeira das quatro virtudes cardeais e, por essa razão, vale determo-nos a examinar alguns de seus aspectos com mais atenção.

Embora sua definição no sentido em que a considerava Santo Tomás (Prudentia), de acordo com Lauand, já tenha sido apresentado no início deste artigo ("arte de decidir-se com base no conhecimento objetivo da realidade (...) pelo límpido conhecimento do ser") cabe alguns comentários a respeito do sentido atual da palavra.

Lauand (11), na linha de Garrigou-Lagrange, aponta para o sentido de indecisão, de excessiva cautela que o termo prudência adquiriu na atualidade, distanciando-se de seu significado original que indicava exatamente a disposição de agir de forma pronta e corajosa, tomando o partido do que é justo a partir da capacidade de enxergar a realidade de forma límpida. Estes autores chamam a atenção para o fato de que, atualmente, a prudência adquire uma conotação negativa. Nas palavras registradas por Garrigou-Lagrange, em 1926: "De fato, em muitos dicionários, a definição dada a prudência faz pensar num tipo de virtude totalmente negativa, que nada tem de virtude a não ser o nome. Seria a prudência uma qualidade negativa?" (12)

Não há dúvida quanto ao empobrecimento do conceito e, a rigor, pode-se dizer que a expressão latina prudentia não encontra na nossa prudência - e em nenhuma outra palavra - tradução adequada. Entretanto, cautela em si mesma, desde que não represente covardia, pode ser fruto da prudência (no sentido original), quando instruída por uma avaliação correta e justa da realidade. Neste sentido não parece necessário a condenação do significado atual da palavra tout court, bastando que se alerte para sua anterior amplitude extraordinariamente mais rica.

Este ponto é importante porque em AA, com relação ao álcool principalmente, os dois significados de prudência são decisivos. A cautela que se aprende a exercitar, caracterizada pelo cultivo de uma série de atitudes e comportamentos, é indispensável para a manutenção da abstinência. Trata-se de uma cautela (sentido atual de prudência) inspirada na consciência a respeito da própria condição de alcoólatra, porque a pessoa adquiriu a perspectiva de enxergar-se a si mesma, ao álcool e ao mundo com limpidez (sentido anterior de prudência).

Creio, assim, que cautela, precaução e cuidados não se excluem da prudência enquanto virtude primeira que atua sobre o agir, desde que não estejam a serviço da omissão, da covardia e outros comportamentos imorais.

Esclarecidas essas questões quanto ao significado de prudência enquanto virtude, é indispensável considerar que para Santo Tomás existem diversas outras virtudes que a compõem de forma indissolúvel, sendo suas partes quase integrais, como ele diz. Memória e docilitas são as duas virtudes quase integrais da prudência que analisarei aqui, dado sua relevância na recuperação do alcoolismo, especialmente se essa recuperação é enxergada como um processo de re-educação - o que consiste na minha tese central para entendimento dos grupos de auto-ajuda.

O termo memória não carece de esclarecimentos nesse momento. "Docilidade", a tradução corrente de docilitas, encontra-se dicionarizado de forma adequada para uma boa correspondência com o significado latino original ("Qualidade ou caráter de quem se submete ao ensino, de quem aprende facilmente; de quem é fácil de conduzir, de guiar") (13). Entretanto, prefiro manter o uso da expressão latina, como o faz Lauand, porque na linguagem corrente o termo em português permite também uma interpretação, se não pejorativa, destituída da força de significado de sua acepção original - uma verdadeira "dimensão moral: a atitude interior de humildade receptiva" (14).

A memória faz parte da prudência, segundo Santo Tomás, porque, como já dizia Aristóteles, "a virtude intelectual é gerada e desenvolvida pela experiência e pelo tempo. Ora, prossegue Tomás, a experiência resulta da memória de casos repetidos (...). Por onde e conseqüentemente a prudência exige a memória de casos multiplicados. (15)"

A linguagem, o grande fruto e a grande alavanca da cultura humana, permite o acúmulo das experiências individuais passadas e presentes, ampliando a possibilidade de conhecimento de cada pessoa para muito além do universo de suas próprias vivências. A possibilidade de aproveitar-se desse cabedal de sabedoria dos outros, sejam os contemporâneos ou os antigos, multiplicando a memória de cada um, exige docilitas e é por isso que a docilitas faz parte da prudência.

Reconhecer-se como alcoólatra e realizar o primeiro passo ("Admitimos que éramos impotentes perante o álcool (...)") é, nitidamente, um ato de prudência, pois consiste na percepção límpida de uma realidade inquestionável que, até então, o alcoólatra na ativa vinha negando.

Manter-se abstinente é igualmente um ato de prudência pois significa a única ação justa que o alcoólatra pode desempenhar frente à bebida a partir do reconhecimento de seu alcoolismo.

Parar de beber, entretanto, como se diz em AA, não é o maior problema. O problema é não voltar a beber. Para não voltar a beber - isto é: para manter a prudência -, memória e docilitas são, então, fundamentais. A memória individual é fundamental, para que não se perca de vista o sofrimento anterior à abstinência. A experiência do grupo, representando a memória da experiência dos antigos e dos outros companheiros contemporâneos, é imprescindível para iluminar o caminho de como se vencer a obsessão pela bebida e de como realizar o processo de mudanças pessoais que representa o crescimento espiritual, única senda reconhecida como capaz de manutenção permanente da abstinência. Para o desfrute desta "memória dos outros", a experiência dos antigos e dos contemporâneos, é necessário que se pratique a docilitas.

Em AA se diz que "força de vontade" não é suficiente para se parar de beber. O necessário é que se tenha "boa vontade" (16) para entregar-se ao programa de recuperação. Esta boa vontade solicitada do novato nada mais é do que a docilitas, por excelência a virtude do aprendiz. A força de vontade isoladamente não resolve porque é praticada por conta própria, a partir de referências exclusivamente pessoais e como tentativa de fazer valer a supremacia egóica. A boa vontade geralmente resulta em sucesso porque permite à pessoa abrir-se para compartilhar as "experiências, forças e esperanças" de todo o grupo, assim passando a efetivamente desfrutar do apoio indispensável para a recuperação.

O sexto e sétimo passos, por alguns chamados de "passos da transformação", permitem, por sua própria leitura, identificar a docilitas como uma virtude central da programação de AA: "Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter" e "Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições". Estes passos vêm logo após a realização do inventário moral, onde se identificam os "defeitos de caráter" e é importante que se diga que, em AA, é corrente a noção de que o Poder Superior só faz a parte d’Ele se cada um fizer a sua.

Memória é uma virtude de difícil prática, pois que o homem, por natureza, é um ser que esquece, não sendo por outro motivo que em árabe Homem é designado por "Insan", termo cujo significado etimológico é "esquecedor" (17).

Por isto a continuidade de freqüência às reuniões é importante, mesmo para os que já se encontram em estados avançados de recuperação. É comum ouvir-se depoimentos de pessoas que dizem que estão na reunião para não esquecer que são alcoólatras. Não é outro o motivo porque todos o membros de AA, ao prestarem depoimentos nas reuniões, apresentam-se seguindo um mesmo padrão: "Meu nome é Fulano, eu sou um alcoólatra..." A infinita repetição, antes de ser uma técnica behaviorista de ensino já era uma fórmula presente no Oriente, onde na palavra dhikr mesclam-se os significados de memória e repetição (18). Mais que isto, creio que a apresentação em que se declina a condição de alcoólatra, seguida de um depoimento pessoal em que normalmente se expõem fatos e sentimentos de natureza íntima, corresponde à prática de um tipo de meditação profunda que Santo Tomás considerava como a quarta lei da memória (19). Esta repetição praticada por todos beneficia não apenas os oradores mas também os ouvintes, em especial os novatos, às vezes ainda em processo de negação da doença pois, como diz o provérbio oriental: "A repetição deixa sua marca até nas pedras. (20)"

A repetição em AA por vezes é tão marcante que há membros do grupo que chegam a se incomodar com companheiros que, anos a fio, falam praticamente a mesma coisa em seus depoimentos, sem alterar suas falas. Os antigos em AA dizem que isto não tem a menor importância se está servindo para manter a abstinência do companheiro. Na verdade, há um aforismo em AA que enuncia o seguinte: "Eu falo para mim mesmo. Porque o meu ouvido é o que está mais próximo de minha boca e eu sou o primeiro a ouvir". Considerando esta obviedade, talvez se possa interpretar que a fala só se alterará quando a necessidade de memória daquele depoimento específico for superada.

Em AA respeitam-se igualmente os antigos e os ingressantes. Os antigos, denominados desta maneira, representam a experiência acumulada e o ideal a ser atingido. Os especialmente dedicados à Irmandade e mais solícitos no apoio aos outros são considerados "velhos mentores": são representantes supremos da memória coletiva.

O ingressante, quando pela primeira vez chega a uma reunião, é tratado por todos como sendo "a pessoa mais importante". O novato é importante porque ele representa o futuro e a renovação da Irmandade mas, principalmente, porque ele é um elemento de memória para todos os presentes. Quem chega pela primeira vez numa sala de recuperação, normalmente apresenta-se em estado lastimável, desorientado, cheio de problemas, muitas vezes embriagado. A pessoa que vai procurar o grupo está no auge de seu alcoolismo. O contraste entre seu estado e o estado dos que estão em abstinência, em recuperação, reforça, pelo efeito demonstração, a determinação de continuar sem beber entre os membros do grupo. O alcoólatra em recuperação rememora os tempos de seu próprio sofrimento quando se depara com outro na ativa.

É necessário que se diga, também, que a importância do ingressante não se restringe a este efeito quase que cruel. Pelo contrário, todo o grupo de AA está animado pela inspiração da quinta Tradição (21) e os AA sabem que ajudar outro alcoólico a atingir a sobriedade é uma das melhores maneiras de conservar a própria, o que se encontra enunciado no décimo segundo passo ("Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades"). Este décimo segundo passo não pode ser confundido como sendo uma sugestão meramente altruísta, ao feitio filantrópico. Ele se constitui numa necessidade porque baseiase na constatação de que "É dando que se recebe" (22), enunciada nos Princípios de Ouro de AA da seguinte forma: "Só conservamos o que temos dando-o a outros".

Esta reciprocidade que se dá no décimo segundo passo corresponde a um tipo de ato de mão dupla, onde o sujeito é ao mesmo tempo doador e beneficiário de determinada ação, à moda do que se encontrava presente nas línguas antigas, pela conjugação de uma forma verbal não existente entre nós (23). Talvez não seja exagero dizer que, neste caso citado, para a manutenção da prudência do alcoólatra em recuperação e o despertar da prudência no ingressante, o que está em curso é um intercâmbio de memórias. Em troca da experiência de recuperação (a memória coletiva) que lhe oferecem os membros do grupo, o novato oferece a todos a sua situação pessoal como memória viva do alcoolismo ativo.

Lembrar-se do período de alcoolismo ativo é quase uma necessidade para que o alcoólatra seja capaz de manter-se em abstinência. Passado o período crítico inicial dos primeiros meses, não é raro que a pessoa, à medida que vai reconstruindo sua vida, resolvendo melhor os seus problemas, volte a pensar que é capaz de controlar a bebida, podendo beber socialmente. O alcoolismo é a Doença da Negação, como se costuma dizer, e o Homem é "Insan" (esquecedor), como dizem os árabes... Por isto a necessidade de manter a freqüência às reuniões. Entretanto, mesmo freqüentando reuniões, há de se ter cuidado com as distorções de que a memória é capaz e para tanto existem também sugestões na literatura do grupo, uma das quais, pelo menos, é perfeitamente condizente com as concepções de memória enquanto virtude, conforme entendida por Santo Tomás.

A recomendação expressa para "recordar-se do último porre" é uma orientação de ordem moral, no sentido de manter-se a memória a serviço da prudência, fiel à realidade dos fatos. Isto porque com o alívio do intenso sofrimento a que estava submetido na ativa, o alcoólatra aos poucos vai se esquecendo das agruras e recordando-se apenas das coisas boas que o álcool lhe proporcionara no passado. No limite, desenvolve o que se denomina "memória eufórica", que se caracteriza pela exaltação plena dos prazeres vividos e esquecimento total ou negação das vivências de sofrimento. Esta deformação da memória leva infalivelmente à recaída. Para ela não se manifestar e não frutificar é que se deve exercitar a lembrança dos últimos porres, das dores, dos vexames e humilhações.

Este é um exercício de memória adequado para que, no caso do alcoólatra em recuperação, seja possível manter a memória como uma virtude fiel à prudência. Nas palavras de Pieper: "A ‘boa’ memória, entendida como requisito de perfeição da prudência, não significa senão uma memória ‘fiel ao ser’(...) O falseamento da recordação, em oposição à realidade, mediante o sim ou o não da vontade, constitui a mais típica forma de perversão da prudência".(24)

APÊNDICE

 

OS 12 PASSOS DE ALCOÓLICOS ANÔNIMOS (25)

"1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas.

2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade.

3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos.

4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.

5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas.

6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.

7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.

8. Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados.

9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem.

10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente.

11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós e forças para realizar essa vontade.

12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a esses passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades."

 


1- O autor é mestre em Educação pela USP, escritor, consultor em Dependência Química, atualmente desenvolvendo pesquisa de Doutorado sob o título "Re-educação - A Alquimia dos Grupos Anônimos de Auto-Ajuda". O presente estudo originou-se a partir das reflexões suscitadas pelo curso de Pós-Graduação da FEUSP: "A educação para as virtudes na tradição ocidental".

2- Vide Apêndice, ao final do texto.

3- Lauand, Luiz Jean. Provérbios e Educação Moral - A filosofia de Tomás de Aquino e a Pedagogia do Mathal. HotTopos. São Paulo, 1997.

4- Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Editora Nova Fronteira. 1 edição, 11 re-impressão. Rio de Janeiro s/d.

5- Jung, Carl Gustav. C. G. Jung Letters. Routledge & Keagan. London, 1976. pág. 625. Carta a Bill Wilson, em 30 de janeiro de 1961.

6- Alcoólicos Anônimos. Os Doze Passos e as Doze Tradições. JUNAAB - Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil. São Paulo, 1995. pág.42.

7- Lauand, op. cit,.págs. 30 e 31.

8- São, respectivamente, o princípio e a conclusão do tratado de Pieper sobre a fortaleza. Cfr. Josef Pieper Virtudes Fundamentais, Lisboa, Aster, 1960, p. 173 e ss. e p. 194 e ss.

9- Alcoólicos Anônimos. Folheto 44 Perguntas.

10- Para o tema da temperança, veja-se o livro de Pieper, recolhido no já citado volume Virtudes Fundamentais, Lisboa, Aster, 1960.

11- Op. Cit. págs. 30 e 31.

12- Garrigou-Lagrange, Reginald. La prudence - sa place dans l’organisme des virtus. Revue Thomiste, École de Théologie Saint-Maximin (Var), Année 31, Nouv. Série IX, 1926, p. 411. Apud Lauand op. cit. Tradução minha.

13- Ferreira. op. cit.

14- Lauand. op. cit. pág. 117.

15- Tomás de Aquino. Suma Teológica II-II, 49, 1. 2ª. ed., Ed. bilíngüe em 10 vols. Tradução de Alexandre Corrêa. EST-Sulina-UCS, Rio Grande do Sul, 1980.

16- Alcoólicos Anônimos. Os Doze Passos e as Doze Tradições. op. cit. pág. 29.

17- Lauand. op. cit. pág. 97.

18- Ibidem. pág. 97.

19- Ibidem. pág. 112.

20- Ibidem. pág. 112.

21- "Cada grupo é animado de um único propósito primordial -- o de transmitir sua mensagem ao alcoólico que ainda sofre".

22- Oração de S. Francisco, citada na literatura de AA.

23- Trata-se da voz média do grego, que encontra um correspondente no verbo depoente latino. Em ambos os casos, trata-se de indicar uma ação que é ao mesmo tempo ativa e passiva, como nascor, nascer (eu nasço ou sou nascido?), morior (morrer será um verbo ativo?). Exemplo sugestivo, no presente estudo, é o do verbo loquor, falar: ao externar, comunicando-me com outros, é que me dou conta de meus próprios pensamentos (devo esta nota ao Prof. Luiz Jean Lauand).

24- Pieper, J. Das Viegespann, München, Kösel, 1964, pág. 29. Apud Lauand. op. cit. pág. 113.

25- Publicados pela primeira vez em 1939, no livro Alcoólicos Anônimos. O título do livro foi adotado como nome oficial da Irmandade que havia sido fundada em 1935.