Os Estudos Orientais no
Âmbito da Universidade

Aida R. Hanania
(Prof. Assoc. e Chefe DLO-FFLCHUSP)

Mário B. Sproviero
(Prof. Assoc. DLO-FFLCHUSP)

A Universidade, tal como hoje existe, desenvolve-se, como se sabe, a partir de suas origens na Europa da Idade Média.

Muito embora registrem-se instituições congêneres em outros contextos ao longo da História (Grécia antiga, Oriente Médio, China, etc...), deve-se dizer que se tratava de escolas voltadas para conhecimentos específicos como Filosofia, Retórica, Literatura... não se constituindo em centro permanente de sistematização, produção e transmissão da totalidade do saber com a finalidade de perpetuá-lo.

Período privilegiado da História, que antecedeu a formação das nações modernas - ecumênico por excelência - a Idade Média permitiu reunir no mesmo espaço - a Universidade - os saberes humanos do mundo conhecido à época.

Como fato ilustrativo, convém lembrar que o Ocidente (sobretudo dos anos 800 a 1200 aproximadamente) recebeu a cultura grega através dos árabes que, a par de outras contribuições, traduziram e interpretaram a Filosofia de Aristóteles, tendo como figuras centrais, Avicena (Ibn Sina - 980/1037) e Averróes (Ibn Rushd - 1126-1198).

Desse modo, a recém-criada Universidade já abrigava a presença de outros elementos culturais que não os exclusivamente veiculados pela cultura cristã o que, naquela altura, já se constituía numa primeira manifestação pluriculturalista.

Pode-se mesmo afirmar que o estabelecimento da Universidade foi possível a partir do contacto estreito do Ocidente com a civilização árabe - instigante na medida em que despertou a curiosidade intelectual com relação a vários ramos da ciência e do saber filosófico - e, em grande parte, em virtude do processo de urbanização com a conseqüente organização social que vinham sofrendo as cidades, bem como pela educação do clero, cada vez mais qualificada.

Com a posterior formação das nações, já na Idade Moderna, e surgimento dos respectivos "nacionalismos", a coexistência dos saberes viu-se restringida em sua dimensão pluriculturalista que, no início, fôra tão dinamizada.

A ampla interação cultural que advinha também da diversidade de origem dos professores e alunos (tomemos, como exemplo, a Universidade de Paris que abrigou quase que ao mesmo tempo, Alberto Magno, de Colônia (ca 1193-1280), Santo Tomás de Aquino, da região de Nápoles (ca 1227-1274), Duns Escoto, da Escócia (ca 1266-1308) e muitos outros), praticamente deixou de existir, configurando-se a Universidade Francesa, a Alemã, a Italiana, a Inglesa..., situação que, de certa forma, perdurou até nosso século.

No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, pudemos assistir ao ressurgimento - de maneira ainda mais universal - da interpenetração de culturas, o que levou as nações - pela primeira vez na História -  a interagirem em nível global, mal-grado sua menor ou maior resistência.

As universidades ocidentais (também com maior ou menor resistência) acabaram por refletir naturalmente a nova ecumene. Tenha-se em conta que as grandes universidades do mundo ocidental contemplam, em suas atividades acadêmicas, a integração de saberes procedentes de várias culturas.

O encontro das diversas culturas do Oriente com a cultura ocidental ocorreu de modo paulatino e desigual, conforme os processos históricos específicos que as envolveram. Em seqüência a esse encontro, surgiram os estudos relativos ao mútuo conhecimento Ocidente/Oriente.

No campo destes estudos, principalmente após os grandes descobrimentos, deve-se mencionar o trabalho pioneiro de missionários (primeiramente jesuítas) seguidos por ministros protestantes e outros europeus que, por razão de ordem vária, encontravam-se envolvidos in loco pelas culturas orientais.

A curiosidade das "grandes potências" da época com relação às culturas milenares do Oriente, determinou um interesse inusitado pelo conhecimento das mesmas em muitas direções, interesse que se intensificou ainda mais na vigência do colonialismo que delineou, por assim dizer, a fisionomia do século XIX. Em outras palavras: até o século XIX, predominou o que poderíamos chamar hoje de "pesquisa de campo", desvinculada, entretanto, da Universidade que, então, rechaçava a idéia de abarcar o estudo de tais culturas. Cabe aqui um exemplo típico do que se diz: deve-se destacar que o conhecido filósofo Leibniz (1646-1716) foi o primeiro intelectual de que se tem notícia a admitir, a par de seu interesse e dedicação ao Extremo Oriente, que "a Europa tinha algo que aprender com a China (1)". Não obstante, foi reduzida a influência que tal posicionamento teve na condução de sua obra.

Seu famoso discípulo, Christian Wolff (1679-1754), tão-somente conhecido, entre nós, como o grande sistematizador da filosofia racionalista de Leibniz, inclinou-se também ao pensamento chinês, a exemplo do mestre e, ao querer expor a filosofia chinesa na Universidade Alemã, dela foi praticamente expulso, por não constituir, tal filosofia, matéria digna de ser incorporada ao ensino universitário...

A resistência da Universidade ao estudo de culturas "estranhas" ou "distantes" da realidade eurocêntrica foi superada, grosso modo, a partir de meados do século passado, quando os conhecimentos já divulgados sobre as mesmas eram de tal vulto que não podiam mais ser desconsiderados.

Assim, coincidindo com o arrefecimento da época colonialista, as universidades acabaram por assumir a tarefa de dar continuidade aos estudos que vinham sendo feitos fora de sua esfera de atuação. Passaram, então, os estudos que se faziam in loco, motivados por interesses outros, para os gabinetes universitários, agora com perspectiva marcadamente acadêmica.

Ao longo do século XX, como se sabe, os estudos orientais enraizaram-se nas principais universidades e centros culturais do Ocidente - Universidade de Paris, Munique, Berlim, Oxford, Veneza, Yale, Columbia, Colegio de Mexico, dentre outros - consolidando definitivamente seu perfil acadêmico. Curiosamente, este modelo inspirou as universidades orientais que se instalaram a partir do formato ocidental (caso da Universidade Japonesa, por exemplo).

Com o advento e formidável desenvolvimento da Informática, o mundo do saber - agora sensivelmente mais integrado -  aproximou, necessariamente, as realidades culturais existentes, exigindo uma dimensão mais ampla dos estudos em pauta e estimulando, sobremaneira, a integração de universidades - as mais distantes culturalmente - no sentido da comunicação total do saber humano.

O ideal da unidade do saber, ínsito no homem, coexiste, de fato, com a pluralidade dos saberes. No entanto, a inadequação entre a globalidade ideal do saber e sua "fragmentariedade", assim como o estranhamento dos múltiplos saberes entre si, geram, compreensivelmente, insatisfação e angústia.

A solução parcial para tentar superar tal desproporção tem sido a de colocar em contacto, vários saberes, visando à comunicação dos mesmos. E é norteada por esse espírito que surgiu, como vimos, a Universidade na Idade Média.

Convém ressaltar que não pretendemos enfocar aqui, a pluralidade do saber em sua ampla complexidade. Apenas a consideramos como momento essencial para situarmos a multiplicidade cultural, âmbito no qual se acham inseridas as culturas orientais.

Quando se considera a pluralidade das ciências particulares, a par de seu inegável desenvolvimento autônomo, deve-se visá-las como partes de um todo - a ciência - a integrarem-se em múltiplos níveis: é o que se busca, promovendo a interdisciplinaridade. O fato, entretanto, de estarmos distantes de uma real integração (o néo-positivismo nem chegou a unificar a linguagem da ciência) impõe que se redobre o empenho em direção a essa meta.

O ideal de um conhecimento racional e "apriorístico" (no sentido de uma ciência geral anterior e comum a todas as ciências: uma ciência das ciências, o ideal de uma "Mathesis Universalis" proposta por vários autores ao longo da História - dentre os quais destacamos o arabista catalão Raimundo Lúlio (ca 1232-1316) e o próprio Leibniz, já citado - redundou, em termos concretos, nas empíricas e "aposteriorísticas" enciclopédias dos séculos XVIII, que perduram até hoje, onde ocorre apenas a justaposição de saberes e não sua desejável urdidura em um único tecido (2).

Porém, as várias tentativas de efetivar a unificação do saber também perduram e partem de uma pluralidade filosófica, aparentemente irredutível, ligada a diferenças político-ideológicas, religiosas e culturais. Se, de certo modo, acentuam as distâncias entre os saberes, estas diferenças - como uma pluralidade sempre em maior interação imposta pelo mundo hodierno (sobretudo com a Revolução da Informática) -, fazem com que a aproximação dos diversos saberes e diversas culturas, seja a tarefa primordial de nosso tempo.

É oportuno salientar aqui, uma idéia muitas vezes reiterada no meio acadêmico francês, atribuída ao Pe. Chenu: "Les vraies découvertes se font aux frontières des sciences, là où, pourrait-on dire, elles se contaminent et se fécondent les unes par les autres".

Extremamente apropriada a generalização do dito, pois é no contacto dos vários setores do conhecimento e das várias culturas que se fertiliza o saber e se integra a Civilização Humana.

Modernamente, o conhecido filósofo Edmund Husserl (1859-1938), participando desse ideal, propôs uma metodologia comum da Ciência, além das metodologias particulares das ciências: a ciência das ciências...

A pluralidade do saber, enquanto tal, não se constitui em valor, excetuando-se, porém, as recentes propostas hermenêuticas que reduzem as opções filosóficas e ideológicas a pura literatura, sob um ponto de vista de absoluto relativismo cultural). Já no caso das várias culturas, a própria pluralidade pode constituir-se em valor, uma vez que o homem se adapta a várias condições e é permeável a várias soluções existenciais na reprodução de sua vida material e cultural. Pode-se afirmar que a pluralidade de culturas é enriquecedora pela complementaridade que acarreta e não por sua oposição, como no caso das ideologias.

Agudamente, no mundo de hoje, as culturas estão obrigatoriamente em contacto, ocorrendo, por isso, vários problemas com vistas a sua mediatização, o que torna imprescindível a reflexão e o saber universitários para a integração das mesmas (3). Mais do que isso: verifica-se hoje uma integração tal das universidades (propiciada amplamente pela comunicação eletrônica) que se espera, em breve espaço de tempo, a formação de uma única Universidade, com sede no mundo...

Decorrência da automação e substituição do trabalho humano, não só do trabalho mecânico, manual, mas - e principalmente - daquilo que é mecânico no trabalho intelectual, chega-se a uma crescente redução do trabalho especificamente humano (4), circunscrevendo-o sempre mais ao âmbito intelectual criativo. Dito de outro modo, restará sempre ao homem, o trabalho reflexivo, criativo, que em última análise, é o que se desenvolve no meio universitário; trabalho este que jamais será substituído por qualquer dispositivo tecnológico.

A Grande Universidade tenderá, então, a assimilar de modo cada vez mais acentuado, o serviço humano na sua globalidade. A pluralidade de culturas - em contacto - é, certamente, fermento de criatividade. Nesse ponto, o Oriente, em suas múltiplas facetas culturais, constitui uma dimensão essencial na recomposição da unidade humana, superando -  espera-se - o estigma histórico da ruptura Ocidente/Oriente...


1- cf. Manfred W. K. FISCHER - ‘Leibniz und die chinesische Philosophie", in Conceptus, vol. XXII, nº 56, Viena, 1988.

2- Hoje, chega-se ao extremo de valorizar a pluralidade do saber diante da unidade, no pensamento pós-moderno proposto pela Hermenêutica (Habermas).

3- Lamentavelmente, o mundo tende a uma empobrecedora monocultura global, sustentada tecnologicamente pela Mídia, o que alerta, ainda mais, para o papel que deve cumprir a Universidade.

4- Basta atentar para o fato de que o desemprego é um dos principais problemas sociais de nosso tempo, com a nítida propensão de agravar-se sempre mais.