NEM ARTE NEM CIÊNCIA 1 Cynthia Garda
Médicos e um Monstrinho Nasci acompanhada de um diagnóstico: lesão cerebral. Era prematura, feia, muito branca, sem cabelos ou unhas. Um monstrinho. Sequer há registros - chocada, de início a família preferiu não fotografar. Passados alguns meses chegaram as unhas, os cabelos... e as fotos. Mais um certo tempo e até deixaram de me tratar como retardada. Mas ficou o trauma. Não gosto muito de médicos. Eis que, quando decidi ser jornalista, há seis anos, não me imaginava tão próxima de meus "carrascos". Hoje me encontro mergulhada na tentativa diária de detectar sintomas que permitam ao leitor um diagnóstico de situações sociais, econômicas, políticas, culturais. E erro muito. Foi em meio a esse mergulho pouco oxigenado na rotina diária de uma redação de jornal que uma notícia reavivou meu contato (tumultuado) com a medicina, dessa vez em meu pequeno território: trinta linhas de opinião. Era outubro de 1996 e a modelo Cláudia Liz estava em coma depois de se submeter à anestesia que antecederia uma cirurgia plástica para a retirada de dois de seus quilos. Nesse momento, a imprensa apressou-se em falar exaustivamente sobre erros médicos e pressões neuróticas no fechado mundo da moda. Para a cobertura de domingo que repercutia o fato, escrevi um artigo onde, feliz, falei mal de um médico. Transcrevo a seguir um trecho desse escrito, apenas para introduzir o texto seguinte - um pouco mais acadêmico, mas tão pessoal e imparcial quanto - onde falo de mim, uma jornalista (ou médica de notícias, tantas vezes tratadas como doenças). Brasília, 11 de outubro de 1996
As Primas Arte e Ciência Arte e ciência são duas definições fundamentais para o exercício jornalístico: é preciso tê-las sempre em mente para em momento algum olvidar-se de que o jornalismo não é qualquer das duas coisas. Mas, como toda atividade humana, interage com ambas. Grande parte dos embates e tendências conflitantes no jornalismo se dividem entre uma maior aproximação com a arte ou com a ciência. Neste momento, estamos com a ciência até as orelhas, cercados diariamente pelos defeitos de procedimentos que se pretendem científicos. Fica muito fácil evocarmos diante de tal crise nossa suposta função social de artistas, mas ela inexiste. Logo, é melhor partir em busca de nosso lugar ao sol, como jornalistas mesmo, e para isso precisamos nos fazer necessários em nosso espaço social e, principalmente, em comunidades alheias. Como? Comecemos por algumas considerações. Na visão de Celso Kelly, expressa na década de 70: "Ao dar cobertura ao julgamento do júri ou a uma sessão parlamentar, o jornalista não transfere às colunas notas taquigráficas: conta o fato em suas essencialidades e nas suas culminâncias, no pitoresco e no dramático. A realidade da reportagem torna-se maior que a realidade do documento". O livro que abriga tal trecho, não por acaso, chama-se Arte e Comunicação. Não há dúvidas de que a reportagem descrita por Kelly contará com o estilo pessoal no texto do autor. E para um veículo de imprensa controlar exatamente o conteúdo do que está sendo publicado, ou acreditar que controla, é necessário que a linguagem usada seja claríssima, o estilo, impessoal. E a única forma impessoal de estilo é sua ausência (o que, suspeito, ainda seja um ideal inatingível, mas o jornal pode optar por se aproximar o máximo possível disso). Um texto mais taquigráfico tem suas vantagens. Em primeiro lugar, é uma tentativa de evitar que a realidade da reportagem se torne maior que a realidade do documento, e isso significa uma tentativa de aplicar rigor científico ao jornalismo, coibindo rococós no texto. Em segundo lugar, possibilita a convivência pacífica com textos incompetentes e pobres, o que pode ser muito útil para a sobrevivência de uma Redação. Mas, acima de tudo, quanto menos entrelinhas e estilo pessoal, maior o controle da empresa sobre o que está sendo publicado. O estilo cheio de rococós é enfadonho para leitores e escritores e o taquigráfico, ou asséptico, é valioso como tentativa de clareza. Mas, além de igualmente enfadonho, ele se pretende científico, e importa para o jornalismo padrões de um universo em crise. Nesse sentido, o jornalismo está mais próximo do sexo: nunca poderá ser asséptico; sempre carregará consigo aspectos artísticos e científicos; se o primeiro contato não for prazeroso, os envolvidos não voltam; e se a única razão do envolvimento sexual for o prazer imediato, o envolvimento tende a não durar muito. Mas tenho esperanças de que o jornalismo seja algo bem menos difícil de lidar socialmente do que o sexo. Para esta análise parto, assim, do pressuposto de que jornalismo não é arte nem ciência, embora necessite das duas coisas (também não é sexo, e acredito que não precise dele diretamente). E como o aspecto científico do jornalismo é o mais presente nas redações hoje, focalizarei nele esta análise. Para isso, tomarei emprestados os médicos - já exemplifiquei porque essa não é uma escolha fácil e por isso mesmo acho que pode dar em algo. O "rigor científico" dos jornalistas pressupõe, de forma medíocre, que é preciso isolar as coisas para compreendê-las melhor, como fazem cegamente, por exemplo, alguns médicos:
Os jornalistas transformaram, assim como alguns médicos, o meio em fim. Com isso, perdem os diagnósticos e pacientes, perdem as matérias. A última frase da citação de Reiser sintetiza um momento forte no jornalismo, em que os profissionais estão afastados de seu público e de seu próprio julgamento e as publicações perdem espaço no mercado. "Os cientistas lutam para ser empíricos e, sempre que possível, exatos, mas para seu empreendimento também é básico que mantenham um alto grau de objetividade, o que significa que estudam as coisas independente do que as pessoas fazem ou pensam em relação a elas. As opiniões que as pessoas têm sobre o mundo externo sempre são, para os cientistas, um obstáculo a ser superado, e é bem conhecido que o quadro que um cientista do mundo externo é bem diferente daquilo que a maioria das pessoas acredita ser o mundo." (N. Postman, 1994.) Assim como no caso do cientista descrito por Neil Postman, o quadro que
o jornalista pinta do mundo muitas vezes acaba sendo diferente daquilo que a maioria das
pessoas acredita ser o mundo. E talvez seja essa a maior incoerência do exercício
jornalístico atual, o grande desafio da imprensa neste fim de século: reaproximar-se do
mundo. E isso tende a exigir do jornalista uma nova visão de seu papel. O Tradutor de Mundos O jornalista trabalha hoje majoritariamente em espaços urbanos. E as cidades não são formadas por massas humanas homogêneas. Se antes havia uma distância geográfica entre comunidades - e se ela foi superada pelo desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação e pela maior concentração populacional - hoje existe uma distância informativa, cultural. Vizinhos em uma rua podem, assim, pertencer a comunidades totalmente distintas. A distância entre comunidades, impossibilitada geograficamente, foi estabelecida na comunicação. Fechando-se em suas conversas e vivências, as comunidades se protegem do excesso de informação, filtrando em certa medida o que chega até seu convívio. Não podem se abrir totalmente, sob pena de desintegrar a unidade do grupo, nem se fechar completamente ao que outros grupos vivem, sob pena de se estagnarem. Precisam conhecer o que é vivido nas demais "comunidades", mas nem todos têm o tempo, o preparo, a estrutura até mesmo emocional, para se lançar na descoberta de mundos alheios. Um bom jornalista precisa, imprescindivelmente, dessa disposição. Para vencer as barreiras estabelecidas pelas distâncias informativas
entre uma comunidade e outra, os meios de comunicação poderiam desempenhar um papel
extremamente valioso. Mas eis que os jornalistas também fecharam-se em sua própria
comunidade e perderam grande parte da capacidade de se comunicarem com as demais. O que é
comumente esquecido no exercício da comunicação é a capacidade fortíssima que o ser
humano tem de se defender do excesso de informação. E os jornalistas são seres humanos.
Para sobreviver, o jornalismo precisa se abrir. No momento, ele fala para si mesmo. E o
jornalismo não vai se abrir procurando agradar o maior número de pessoas através do
maior número de pesquisas. A chave não é agradar, mas entender. O jornalista precisa
ser capaz de mergulhar em universos distintos ao seu e comunicá-los aos demais. A Fonte Pop O jornalismo está plenamente inserido no universo da cultura pop. Logo, é melhor que se entenda com ele. Neste momento, tomarei emprestados da humanidade (a quem pertencem uma vez que se inserem no universo pop), Diana, Madonna e Chico Sciense. Começo pelas loiras. Madonna e Lady Di são fenômenos comunicativos da atualidade. Elas não se transformaram nisso com o apoio de pesquisas que indicassem o que as pessoas queriam. Nenhum entrevistado de nenhum instituto de pesquisas diria que gostaria de ver a então futura rainha da Inglaterra sofrendo publicamente de bulimia, traindo e sendo traída pelo futuro rei. Nunca a maioria dos pesquisados diria que gostaria de ver Madonna tendo um filho com seu treinador físico, anunciando publicamente seu desejo por mulheres, apreço pelo sadomasoquismo, ou interpretando mal a já ruim versão ianque da história de Evita Perón. Mas o interesse que elas despertam nas pessoas (e, aqui sim, em membros de praticamente qualquer comunidade) é assustador. O mundo, sem dúvida, quer ouvi-las. Aqui traço uma distinção séria: não considero as pessoas burras. Logo, acredito que existam razões profundas para a explosão de um fenômeno pop, e elas não se baseiam na falta de cultura... Para conectar-se com o leitor, os jornais devem tirar as pesquisas de opinião do plano central de suas ações. Até hoje, a maior parte do que produziram foi excesso de informação de procedência duvidosa. Elas são, novamente, apenas uma ferramenta, e é esse o lugar que devem ocupar. Devem ser usadas com extremo critério, sabendo exatamente o que foi perguntado e até onde o que apontam é realmente útil ao que se pretende fazer. Madonna e Lady Di, de formas distintas, têm algo a dizer, e o conteúdo do que dizem é puramente humano. Elas falam sobre sofrimento, perversão, vitória. Principalmente, são capazes de comunicar o que se vive em uma comunidade para as demais. E uma comunidade quer conhecer a outra, dentro de limites seguros e administráveis. Mas comunicar as comunidades só é possível quando se permite conhecê-las e traduzi-las. Madonna não fala de sadomasoquismo para um sadomasoquista, ela o traduz. Acaba com o respeito e a aceitação de quem é sadomasoquista e de quem não é. Lady Di soube, claramente, transformar sua experiência como membro da realeza em uma vivência universalmente compreensível. "Está cada vez mais óbvio que a estória de Diana remete a alguns traços profundos e poderosos de nossa cultura, traços que sugerem que arquétipos ancestrais de feminilidade convencional não estão obsoletos, mas muito mais fortes e arraigados." A feminista norte-americana Camille Paglia enumera, no texto Diana Regina, publicado no jornal The New Republic, em agosto de 1992, alguns dos arquétipos evocados pela princesa: Cinderela, a esposa traída, a princesa na torre, a mater dolorosa, a deusa pagã, a estrela hollywoodiana, o padrão grego de beleza andrógina. Talvez o que ela ofereça a audiências do mundo inteiro seja algo bem menos oco do que gostaríamos de acreditar. A edição de sete de junho do Sunday Times, em Londres, com o primeiro fascículo do livro Diana: Her True Story, de Andrew Morton, obteve vendas recordes. Aos tradicionais 1.143.000 exemplares vendidos aos domingos, somou-se um aumento de 21%. Nos Estados Unidos, a edição da revista People que trazia esse fascículo vendeu 4.001.100 cópias, um recorde absoluto em dezoito anos. Sentados em suas redações, ou em sua arrogância, milhares de jornalistas reduzem o fenômeno à "desinformação do público", "mau gosto" etc. Serão, a longo prazo, engolidos pelo fenômeno. Não é privilégio do jornalista uma visão fragmentada, reducionista, medrosa de mundo. Tampouco é privilégio dele a necessidade de mudá-la. No Brasil, a tradição antropofágica de nossa cultura dá uma mãozinha. Como proclamou o músico do Recife, Chico Sciense: "É preciso fincar a parabólica no mangue". Com o grupo Nação Zumbi, Chico foi ao maracatu, aos manguezais, às tradições culturais mais arraigadas de Pernambuco e criou um tipo de música, que mistura o techno a tambores, referência para todo o Brasil. Para a Alemanha também. Quanto mais fundo mergulhamos em nossas próprias raízes, universo e tradições, mais perto chegamos do que têm de essência. E essa essência é universal, comunica a todos.
P.S.: Até hoje me consulto com um dos médicos da junta que diagnosticou minha suposta lesão cerebral, há 24 anos. Como os leitores e os jornalistas, tenho comportamentos que não posso entender ou explicar.
Obras Referidas: POSTMAN, Neil. Tecnopólio: a Rendição da Cultura à Tecnologia. (Tradução de Reinaldo Guarany). São Paulo, Nobel, 1994. REISER, S.J. Medicine and the Reign of Tecnology. Cambridge University Press, 1978. PAGLIA, Camille. Vamps &Tramps: New Essays. London, Penguin Books, 1994. KELLY, Celso. Arte e Comunicação. Rio de Janeiro, Agir.
1- Texto para debate em seminário de Filosofia no programa Master em Jornalismo para editores da Faculdade de Ciências da Informação da Universidade de Navarra (Espanha), em São Paulo (agosto - 1997). A ser publicado na Revista Mirandum III.
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