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O Ensino de Ciências e
a Idéia de Cidadania

 

Paulo Roberto Dos Santos
Mestre em Filosofia da Educação – FEUSP
paulordsantos@gmail.com

 

Introdução

A organização do ensino de Ciências tem sofrido nos últimos anos inúmeras propostas de transformação. Em geral, as mudanças apresentadas têm o objetivo de melhorar as condições da formação do espírito científico dos alunos em vista das circunstâncias histórico-culturais da sociedade. As alterações tentam situar a ciência e o seu ensino no tempo e no espaço, enfatizando em cada momento um aspecto considerado mais relevante na forma de o homem entender e agir cientificamente no mundo por meio de um conhecimento que, de modo geral, está além do senso comum.

Até os anos 60, por exemplo, o ensino de Ciências passou por uma longa fase em que a ciência era apresentada como neutra e o importante eram os aspectos lógicos da aprendizagem e a qualidade dos cursos era definida pela quantidade de conteúdos conceituais transmitidos. Nos anos seguintes valorizou-se a participação do aluno no processo de aprendizagem do método científico através de atividades práticas de laboratório. Na década de 70, a crise econômica mundial e os problemas relacionados com o desenvolvimento tecnológico fizeram surgir no ensino de Ciências um movimento pedagógico que ficou conhecido como “ciência, tecnologia e sociedade” (CTS). Essa tendência no ensino é importante até os dias de hoje, pois leva em conta a estreita relação da ciência com a tecnologia e a sociedade, aspectos que não podem ser excluídos de um ensino que visa formar cidadãos. Nos anos 80 a atenção passou a ser dada ao processo de construção do conhecimento científico pelo aluno. Inúmeras pesquisas foram realizadas nesse campo e o modelo de aprendizagem por mudanças conceituais, núcleo de diferentes correntes construtivistas, é hoje bem aceito pela maioria dos pesquisadores. No entanto, lembram os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)

Esse modelo tem merecido críticas que apontam a necessidade de reorientar as investigações para além das pré-concepções dos alunos. Não leva em conta que a construção de conhecimento científico tem exigências relativas a valores humanos, à construção de uma visão de Ciência e suas relações com a Tecnologia e a Sociedade e ao papel dos métodos das diferentes ciências. (PCNs, 2000, p. 23)

Na atualidade, penso que a preocupação dos que investigam novos caminhos para o ensino de Ciências não está na simples superação da mera descrição de teorias e experiências científicas, nem na visão de que o conhecimento é algo que se constrói. Este último é um ponto relevante e fonte de importantes trabalhos acadêmicos, porém, tem apresentado visível desgaste como campo de pesquisa. As atenções da educação estão hoje basicamente voltadas para a idéia de cidadania e para a formação de professores com novos perfis profissionais, mestres em condições de trabalhar com uma visão interdisciplinar da ciência, própria das múltiplas formas de se conhecer e intervir na sociedade hoje.

Neste sentido, as propostas mais adequadas para um ensino de Ciências coerente com tal direcionamento devem favorecer uma aprendizagem comprometida com as dimensões sociais, políticas e econômicas que permeiam as relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Trata-se, assim, de orientar o ensino de Ciências para uma reflexão mais crítica acerca dos processos de produção do conhecimento científico-tecnológico e de suas implicações na sociedade e na qualidade de vida de cada cidadão. É preciso preparar os cidadãos para que sejam capazes de participar, de alguma maneira, das decisões que se tomam nesse campo, já que, em geral, são disposições que, mais cedo ou mais tarde, terminam por afetar a vida de todos. Essa participação deverá ter como base o conhecimento científico adquirido na escola e a análise pertinente das informações recebidas sobre os avanços da ciência e da tecnologia.

Apesar de se constatar um consenso praticamente unânime entre os professores sobre a formação para a cidadania, vale lembrar que, em geral, os textos sobre o assunto não apontam uma metodologia específica, uma “receita” perfeita para se conseguir formar cidadãos críticos, autônomos e participativos. Primeiro porque essa “receita”, de fato, não existe. E segundo, porque a relação entre professor e aluno não é uma relação que caiba em uma receita. Os valores, o estilo, a personalidade, a maneira de encarar o mundo do professor no momento em que atua como professor delimita qual será a metodologia (receita) mais conveniente para atingir seus objetivos. Assim, não pretendemos aqui estabelecer nenhuma receita aos professores, mas apenas fazer uma reflexão sobre a noção de espírito crítico dentro da área do ensino de Ciências e exemplificar como esse objetivo pode ser alcançado.       

Ao se pretender estabelecer uma perspectiva mais interdisciplinar para o ensino de Ciências, três pontos parecem dificultar a realização desses objetivos. O primeiro refere-se à forma tradicional como a escola e alguns dos elementos que compõem os currículos estão organizados. Refiro-me às rígidas divisões das áreas de conhecimento em disciplinas estanques: Física, Química, Biologia, Matemática, História... A essa divisão acrescentam-se outras, como no caso da Física, que é ensinada em blocos distintos de conhecimentos: Mecânica, Termologia, Eletricidade, Óptica... Muitas vezes essas divisões impedem que os estudantes reconheçam como esses conhecimentos se relacionam e, mais, como podem afetar suas vidas, tornando, assim, difícil uma discussão abrangente e produtiva sobre a ciência.

O outro aspecto que parece ser um obstáculo para uma aproximação das relações entre ciência, tecnologia e sociedade na sala de aula é o receio que muitos professores têm, em particular os de ciências, de discutir temas relacionados com valores. Opiniões políticas, formas de se encarar as conexões da ciência com as ideologias (por exemplo, a capitalista), possíveis divergências com valores familiares, certos preconceitos (ideológicos/religiosos), pontos de vista radicais, etc., tudo isso leva o professor de ciência a fugir da discussão e manter suas aulas em patamares seguros – o da ciência considerada como neutra. Em geral, e penso que isso faça parte da tradicional formação profissional-cultural do professor, nenhum ou quase nenhum deles se sente à vontade quando o tema da aula não faz parte de um conteúdo conceitual previsto. Raramente o professor aprecia o debate aberto, imprevisível. Por isso, as discussões sobre os diversos pontos de vista dos estudantes acerca dos significados éticos, políticos e sociais da ciência e da tecnologia são naturalmente eliminados da sala de aula. No entanto, todos sabem que os novos objetivos para o ensino de Ciências envolvem o debate e exigem, para tanto, educadores abertos, dispostos a questionar com seus alunos o lugar da ciência no mundo, sua relação com o bem-estar humano e com outros valores da sociedade.

O terceiro ponto que parece dificultar um ensino de Ciências, digamos, formador de cidadãos conscientes e críticos é o habitual distanciamento entre os conceitos científicos aprendidos em sala de aula e as questões científicas verdadeiramente relevantes para a vida das pessoas. Questões sociais relacionadas com os transgênicos, as células-tronco, o super-aquecimento do planeta, e tantas outras, como a miséria e a saúde, que, apesar de serem problemas de outro gênero, de alguma maneira estão relacionados com o desenvolvimento social prometido pela idéia de “progresso” da ciência, são questões nem sempre corretamente compreendidas pelos alunos e pouco ou quase nunca debatidas em sala de aula. A preocupação central com o desenvolvimento do conteúdo científico programático absorve todo tempo da aula e todo esforço do professor. Como conseqüência desse distanciamento, diz Nilson Machado (1997, p. 148),

a ciência escolar torna-se algo muito distante de suas ocorrências jornalísticas, e os alunos parecem incapazes de compreender minimamente não a solução, mas até a própria formulação dos problemas de que se ocupam os cientistas, de vislumbrar o significado dos resultados que alcançam. 

Em vista disso, o objetivo deste trabalho é traçar modestamente alguns comentários sobre uma das sugestões de atividades apresentadas no livro “Ensino de Ciências e Cidadania” de Krasilchik, M. e Marandino, M. (2004) e relacioná-la com a teoria da atividade de Leontiev. Não se trata de expor em detalhe todos os elementos que compõem essa teoria, nem de apresentar um estreito paralelismo entre a teoria da atividade e as sugestões práticas propostas no livro de Krasilchik e Marandino. O objetivo aqui é apenas notar que existem boas maneiras de se superar as dificuldades acima mencionadas e que se pode promover um ensino de Ciências verdadeiramente crítico com relação aos processos de produção do conhecimento científico-tecnológico e suas implicações na sociedade.

Para isso, um ponto que deverá ser questionado consiste em se perguntar sobre a capacidade crítica dos alunos. Mais ainda, se é possível ensinar o aluno a ser crítico. Considerando que um dos elementos da formação para a cidadania resume-se em aprender a ser crítico, como desenvolver nos estudantes tal habilidade?

O ENSINO DE CIÊNCIAS E A IDÉIA DE CIDADANIA

A escola hoje, pelo menos em uma perspectiva teórica [1] , encontra-se fortemente comprometida com um ensino de qualidade e com a idéia de construção da cidadania. Os conteúdos escolares ensinados aos alunos são entendidos como parte de um instrumental necessário para que todos compreendam a realidade à sua volta e adquiram as condições necessárias para discutir, debater, opinar e mesmo intervir nas questões sociais que marcam cada momento histórico. Segundo os PCNs (1997),

O ensino de qualidade que a sociedade demanda atualmente expressa-se aqui como a possibilidade de o sistema educacional vir a propor uma prática educativa adequada às necessidades sociais, políticas, econômicas e culturais da realidade brasileira, que considere os interesses e as motivações dos alunos e garanta as aprendizagens essenciais para a formação de cidadãos autônomos, críticos e participativos, capazes de atuar com competência, dignidade e responsabilidade na sociedade em que vivem.

Com relação à idéia contida no texto citado, uma questão que no momento tem sido alvo de muita discussão entre professores é esta: o que significa educar para a cidadania? Ou ainda, como formar cidadãos autônomos, críticos e participativos a partir de uma sala de aula de Física, de Química, de Biologia, etc? São questões que se impõem por uma razão muito simples: nenhum professor discorda de tais ideais. O problema é que, além de ser uma idéia extremamente ampla, nem todo professor e nem toda escola estão suficientemente preparados para criar as condições práticas necessárias com o objetivo de formar cidadãos capazes de atuar com competência e consciência na sociedade.

O propósito, aqui, não é avaliar o sentido teórico da expressão “educar para a cidadania”, mas apenas encontrar alternativas dentro do ensino de Ciências que sejam realmente úteis na formação de cidadãos críticos e participativos. Para isso, convém antes analisar alguns pontos que deverão ser levados em conta na escolha de tais alternativas.

A primeira observação importante é considerar que faz parte necessariamente da educação para a cidadania que o aluno consiga adquirir na escola a capacidade de entender e de participar social e politicamente dos problemas da comunidade e saiba posicionar-se pessoalmente de maneira crítica, responsável e construtiva com relação, por exemplo, a problemas científicos e tecnológicos que afetam toda a sociedade. Metas que devem e podem ser conquistadas tanto na sala de aula como fora dela, através do diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas (PCNs, 1997, p. 107).

Um caminho para isso é pensar que uma das funções mais importantes do professor comprometido com a idéia de formar cidadãos é saber questionar os alunos. Não no sentido de avaliar seu desempenho escolar, se ele aprendeu ou não os conteúdos conceituais, mas no sentido de fomentar posturas críticas, contestadoras, construtivas, solidárias, comprometidas com o bem-estar individual e coletivo, tudo isso sustentado por um diálogo cuja argumentação esteja alicerçada na maneira científica de pensar, ou seja, de maneira lógica, consistente e fundamentada. Talvez seja mesmo esse o ponto central na hora de se educar para a cidadania.

De fato, os avanços científico-tecnológicos modernos têm dado aos professores inúmeras oportunidades de discussão. O leque vai desde os problemas relacionados com clonagens, passando pelos transgênicos, pelas guerras tecnologicamente sofisticadas, até dúvidas sobre as pesquisas científicas nacionais a que o governo brasileiro deveria dar mais atenção e, portanto, fornecer mais investimento. É preciso trazer essas questões para a discussão em sala de aula, tornando assim possível aos alunos a aproximação entre ciência, tecnologia e sociedade. Mas isso exige que o professor saiba fazer escolhas que ultrapassam os limites impostos pelo currículo formal com a finalidade de priorizar a formação de cidadãos realmente engajados e críticos.

O outro ponto que merece consideração dentro do raciocínio deste trabalho é refletir sobre duas perguntas indispensáveis: a primeira refere-se ao espírito crítico e consiste em se perguntar como um professor pode ensinar o aluno a ser crítico? Será isso possível? E a segunda: que tipo de atividade poderia contribuir realmente para a formação da cidadania? Tentar responder a estas questões é o propósito do que vem a seguir.

Com relação à primeira pergunta, a resposta de muitos autores é “não”, não é possível ensinar espírito crítico da mesma maneira que não é possível ensinar o aluno a pensar. No entanto, esse “não” admite algumas interpretações. Pelo menos dois autores podem nos ajudar a refletir um pouco sobre o tema.

Um deles é Michael Oakeshott (1968), jornalista inglês que, mesmo não sendo educador, aventurou-se a tal em um artigo sobre aprendizagem e ensino. A riqueza e a profundidade do texto não nos permite entrar aqui em todos os seus detalhes. Vamos apenas mencionar as idéias centrais do autor que podem nos ajudar a encontrar alguma luz sobre a questão levantada a respeito do espírito crítico.

Para Oakeshott, o professor é responsável por iniciar o aluno no conhecimento de si e do mundo. Conhecimento consiste em um conjunto de capacidades pessoais desenvolvidas como resultado de uma síntese entre as ‘informações’ que se recebe e o ‘discernimento’ que somos capaz de estabelecer sobre as informações recebidas. Esse discernimento consiste na capacidade de interpretar, de avaliar, de julgar e de decidir sobre a importância da informação recebida. Essa capacidade, a meu ver, assemelha-se àquela que se espera de um cidadão autônomo, crítico e participativo, ainda que, para Oakeshott, a idéia de discernimento não se restrinja ao ser crítico, pois é mais ampla e se refere a tudo que o aluno consegue identificar na informação que recebe. Discernimento está relacionado com o próprio conhecimento e não apenas com o espírito crítico. Só pode haver conhecimento de fato quando, junto com cada informação, o aluno adquire ‘discernimento’, uma capacidade pessoal de pensar, não de qualquer maneira, mas levando em conta aquela e outras informações como parte de um contexto mais amplo de informações.

Assim, o ensino é uma comunicação de informações e a aprendizagem é caracterizada por uma dupla atividade de aquisição de informação e desenvolvimento progressivo do discernimento. Ambos aspectos, que compõem o processo ensino-aprendizagem proposto por Oakeshott, podem ser ensinados, ainda que não separadamente.

O discernimento pode ser ensinado; e pertence à deliberada empresa do professor ensiná-lo. Mas, embora não se possa transmitir, explicitamente, a um aluno a maneira de pensar (não havendo aqui nenhuma regra), o “discernimento” só pode ser ensinado em conjunção com a transmissão de informações. Isto é, não pode ser ensinado numa aula separada; numa aula que não seja, por exemplo, de geografia, de latim ou de álgebra. Assim, do ponto de vista do aluno, a capacidade de pensar é algo aprendido como subproduto da aquisição de informação; e, do ponto de vista do professor, é algo que, se é ensinado, deve ser captado indiretamente durante o curso da transmissão. A maneira de fazê-lo só pode ser compreendida considerando-se o caráter do que será transmitido”.(Oakeshott, p. 173)

Ou seja, o professor empenhado em desenvolver nos alunos o espírito crítico tem que perceber que este e outros objetivos relacionados com a capacidade de pensar do aluno só podem ser alcançados de maneira indireta, talvez por meio do caráter que ele, professor, imprime aos conteúdos expostos ao aluno, pelas escolhas conscientes das atividades que serão desenvolvidas, pela própria maneira como o professor julga e relaciona aquilo que está ensinando, e assim por diante.

Outro autor que discute o assunto e, agora sim, de maneira mais direta é John Passmore. [2] Em seu livro “A filosofia do ensino”, Passmore inicia um estudo sobre o ensino do criticismo levantando algumas questões: “O que é ensinar uma criança a ser crítica e como podemos afirmar que o fizemos com êxito? Seria uma questão de transmitir fatos, inculcar hábitos, treinar em habilidades, desenvolver capacidades, formar o caráter, ou algo diferente de tudo isso?” (Passmore, 1980, p. 166)

Ao analisar cada uma dessas possibilidades, o autor chega a uma idéia bastante consistente sobre o tema. Primeiro afirma que ensinar um estudante a ser crítico não resulta da simples transmissão de fatos relacionados à crítica. Assim como não se ensina uma pessoa a ser justa relatando para ela ações de justiça, da mesma forma, não se ensina espírito crítico dando para o aluno exemplos de crítica. Relatar o espírito crítico dos cientistas, ou dos homens que transformaram criativamente a sociedade no passado, de pouco servirá para o aluno desenvolver espírito crítico pessoal.

O espírito crítico tampouco é um simples hábito que o aluno possa adquirir por adestramento. Deixar-se “adestrar” e ser crítico são coisas contraditórias. Afirmar que um aluno é crítico significa reconhecer que é questionador, rebelde, inquieto, e isso se opõe frontalmente a uma atitude simplesmente receptiva. Nem consiste naquela capacidade de criticar certas atividades específicas, como quando se critica o desempenho de um jogador de futebol, ou o desempenho pessoal em uma prova. A crítica sobre a qual estamos falando não se refere a um juízo sobre a eficiência ou não de determinadas ações – como seria a crítica dirigida a um jogador que perde muitos gols –, mas sobre o valor, o mérito de uma ação, de uma idéia, de uma lei, de um fato ou circunstância social.

Passmore vai concluir que o espírito crítico está mais relacionado a um traço de caráter e que este, por sua vez, está implicado com a formação que se recebe. Para o autor,

(...) desenvolver o espírito crítico envolve incentivar as crianças a buscar o valor subjacente às práticas em que estão envolvidas e não simplesmente ao desempenho, a se entusiasmar pelo intercâmbio que pode surgir de uma verdadeira discussão crítica onde todos são chamados a dar fundamentos relevantes para o que afirmam. Significa incentivar uma disponibilidade e uma criatividade para se colocar em xeque regras, valores e práticas estabelecidos. (ANCONI, 1996)

A partir deste entendimento do espírito crítico, Passmore segue a discussão e levanta outras questões: até que ponto a sociedade, a comunidade escolar e o próprio professor estão realmente dispostos a lidar com a crítica, com o aluno questionando valores? O problema é sério e as conseqüências são problemáticas. Mesmo que todos concordemos com formar cidadãos críticos para a sociedade, a escola não está disposta a questionar seus próprios valores, nem o professor está totalmente aberto à crítica. Afirmar, por outro lado, que só algumas coisas devem ser objeto de crítica em detrimento de outras é contradizer a própria crítica. De qualquer maneira, são questões interessantes que merecem aprofundamento. Todavia, isso nos conduziria para uma outra discussão.

Interessa centrar nossa atenção no ensino de Ciências e, com base no que foi exposto, retomar a pergunta: que tipo de atividade poderia contribuir realmente para a formação de cidadãos críticos, autônomos e participativos?

De acordo com os dois autores mencionados, o espírito crítico pode sim ser ensinado às crianças, porém de maneira indireta. Entendo por “maneira indireta” um discurso ou uma atividade didática que não considere o espírito crítico como foco central das atenções, mas que nos forneça alguma pista de que o aluno está adquirindo espírito crítico. A idéia de Passmore parece luminosa nesse ponto. Trata-se de buscar atividades que exijam do aluno a reflexão, a análise acerca dos “valores subjacentes” de um fato, de uma informação, de uma questão que esteja sendo ou deva ser discutida pela sociedade. Significa incentivar o questionamento sobre o mérito valorativo de um tema ou assunto selecionado, de modo geral, pelo professor. Como conseqüência, a discussão se desencadeia quase que de forma natural.

Neste sentido, penso que o livro “Ensino de ciências e cidadania” (Krasilchik e Marandino, 2004) consegue ser uma importante fonte de inspiração para educadores dispostos a criar atividades comprometidas com a crítica, com a reflexão de problemas complexos como os que envolvem na atualidade a ciência e a tecnologia. E isso por duas razões. Por um lado, consegue mostrar como é possível reconhecer e definir temas atuais de análise – necessidades ou problemas – ricos em implicações sociais e ao alcance dos alunos. Por outro lado, apresenta de maneira simples como o professor pode discutir com profundidade o papel da ciência no mundo contemporâneo recorrendo a uma visão interdisciplinar.

A integração de elementos do ensino das Ciências com outros elementos do currículo além de levar à análise de suas implicações sociais, dá significado aos conceitos apresentados, aos valores discutidos e às habilidades necessárias para um trabalho rigoroso e produtivo. (Krasilchik e Marandino 2004, p. 43)

Depois de dedicar metade do livro ao problema da alfabetização científica no país e apontar os agentes mais diretamente responsáveis por essa tarefa, os autores apresentam sete sugestões de atividades com as quais a Escola pode cumprir relativamente bem a sua parte. Cada uma possui tema, objetivos e metodologias diferentes. Como advertem os autores, essas atividades são apenas sugestões que devem variar considerando a diversidade social, cultural e potencial educacional da unidade escolar.

A atividade proposta que pretendo comentar tem como tema “Organismos geneticamente modificados – quem controla?” As relações do tema com a ciência, a tecnologia e a sociedade são evidentes. Os conhecimentos e as técnicas da engenharia genética em contraposição com a qualidade de vida das pessoas provocam em todo mundo discussões que tentam encontrar a forma de regulamentar o uso de organismos geneticamente modificados. Argumentos a favor e contra o desenvolvimento da pesquisa são levantados e diversos setores da sociedade são convocados para o debate. É olhando para esse cenário que a atividade é planejada. Passo agora à explicação da atividade usando o próprio texto do livro.

A modalidade didática escolhida e que pode servir para aperfeiçoar a capacidade de focalizar questões, considerando diferentes facetas, e apresentando conhecimentos e opiniões fruto de reflexões empenhadas no tema é uma simulação do debate que realmente deve ocorrer na sociedade.

Os objetivos perseguidos pela atividade são: conceituar organismos geneticamente modificados – transgênicos; identificar os atores que devem participar do debate sobre o seu uso; analisar argumentos a favor e contra o cultivo e uso de transgênicos; analisar argumentos a favor e contra a pesquisa sobre organismos geneticamente modificados e discutir aspectos éticos relacionados à pesquisa científica. Sob outro ponto de vista, pode-se afirmar que também são objetivos da atividade o desenvolvimento da capacidade de expressar juízos de valor, justificar as decisões tomadas, diferenciar decisões pessoais de decisões coletivas e públicas, saber ouvir e reconhecer a diversidade de opiniões em uma sociedade pluralista, numa palavra, desenvolver a capacidade crítica do aluno.

Primeiro os alunos são convidados a pesquisar sobre o tema: a atividade compreende, no início, leitura de textos, principalmente de jornais e revistas, sobre a discussão relativa ao uso de transgênicos. Os recortes lidos são colecionados e servirão de base para a argumentação e o professor fica encarregado de prover textos adequados para leitura.

Num segundo momento, o professor distribui cartões de personagens importantes no debate, compondo com os alunos o cenário internacional da discussão.

·          Cientista 1 – Defende a necessidade e a liberdade total da pesquisa.

·          Cientista 2 – Argumenta a favor da responsabilidade social do pesquisador.

·          Consumidor – Quer saber as possibilidades e os riscos potenciais do uso de transgênicos.

·          Representantes de instituições que defendem os consumidores – Exigem avaliações rigorosas dos transgênicos antes da liberação para o consumo.

·          Representantes de órgãos e entidades de registro e fiscalização – Explicam como é o procedimento para autorização e licenciamento, fiscalização e acompanhamento dos projetos de pesquisa.

·          Representantes de comissões internas de segurança – Agem junto às instituições, explicando como mantêm informados os trabalhos sobre as questões relacionadas à saúde e segurança.

·          Empresários e industriais – Interessados na comercialização dos transgênicos.

·          Agricultores – Interessados em usar transgênicos para aumentar a qualidade/quantidade e lucratividade do produto.

·          Políticos – Querem opinar sobre o uso de transgênicos e seus efeitos econômicos, sociais e políticos.

·          Ambientalistas – Membros de grupos que defendem a manutenção e restauração de condições ambientais adequadas.

·          Jornalistas – Devem informar à sociedade os riscos, os benefícios e as incertezas sobre os transgênicos.

·          Representantes de instituições internacionais (como a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação – FAO – e a Organização Mundial de Saúde – OMS) – Explicam como se dá sua atuação de biosegurança no âmbito internacional.

Por fim, o debate:

Deverá enfocar o papel da ciência e sua relação com a qualidade de vida e como deve a sociedade se organizar para não fazer uma análise ingênua e simplista da questão, dando aos consumidores o direito de estarem bem informados. Espera-se que haja discussão em que os alunos argumentem de acordo com sua personagem, mesmo que não concordem com o papel da mesma na comunidade (Krasilchik e Marandino 2004, p. 56).

A meu ver, este tipo de atividade deveria ser uma constante no ensino de Ciências. Não se trata de uma “receita” para se conseguir formar cidadãos críticos, autônomos e participativos, mas um exemplo, entre tantos outros, do que se pode fazer nesse sentido. O confronto de visões e opiniões proposto nesta atividade é acompanhado pela identificação de valores éticos, políticos e sociais subjacentes às questões científicas conceituais em jogo. E isso faz desse tipo de atividade um terreno fértil de disponibilidade e de criatividade para se colocar em xeque as opções adotadas pela ciência e pela tecnologia no mundo moderno. Ou seja, determinar e discutir os valores que definem os rumos da ciência e da tecnologia constitui a base para o desenvolvimento do espírito crítico dos alunos.

Por fim, resta fazermos algumas breves considerações sobre o conceito de atividade de Leontiev no cenário escolar com a finalidade de situarmos a proposta de atividade acima descrita no quadro conceitual do autor. Como já foi dito no início, não se trata de expor os vários elementos que compõem a teoria de Leontiev, nem de apresentar um profundo comentário entre aquela teoria e a atividade aqui proposta, mas apenas reconhecer que o conceito de atividade de Leontiev pode ser extremamente útil na elaboração de atividades dentro do ensino de Ciências. 

Para o autor russo, uma atividade de aprendizagem se contrapõe a uma simples tarefa escolar que, por não ser uma atividade, pouco contribui para a aprendizagem. A diferença entre ambas está na relação que se estabelece entre os objetivos aos quais uma atividade está ordenada e os motivos que estimulam o sujeito a participar dela. Um exemplo simples pode ser a leitura de um livro: a ação de ler o livro tem como objetivo a aquisição do seu conteúdo, mas o motivo de quem está lendo pode ser simplesmente fazer um exame na escola. Neste caso, aquela leitura não passa de uma simples tarefa escolar. Só se pode falar de atividade quando o objetivo da ação coincide com o motivo de quem a realiza. A leitura do livro é uma atividade quando o motivo do leitor é também a aquisição do seu conteúdo.  E como o motivo sempre nasce de uma necessidade, o que motiva os sujeitos são suas necessidades. A conclusão, portanto, é esta: se as ações de aprendizagem são dirigidas por motivos – por necessidades dos alunos e professores – e, além disso, coincidem com os objetivos das próprias ações planejadas, neste caso, estamos diante de verdadeira atividade de aprendizagem.

Penso que tais condições são precisamente as que ocorrem na sugestão de atividade com os transgênicos. Há, de fato, uma necessidade em todos os estudantes, pelo menos na condição de consumidores, de conhecer as possibilidades e os riscos potenciais do uso dos transgênicos. Além disso, há também a necessidade de desenvolver a capacidade de expressar juízos de valor, de justificar posições assumidas ou decisões tomadas, de saber ouvir e reconhecer a diversidade de opiniões em uma sociedade pluralista, numa palavra, de desenvolver a capacidade crítica. Cabe ao professor despertar tais necessidades, a fim de estimular motivos pessoais que darão significado às ações de todos na obtenção do resultado da atividade.

Para terminar, fica de pé uma necessidade urgente apontada por diversos pesquisadores, qual seja, a superação de uma visão simplista do ensino de Ciências segundo a qual, o professor só precisa ter um bom conhecimento da matéria, alguma habilidade com as práticas de ensino e uma pincelada de conhecimentos psicopedagógicos para desempenhar relativamente bem o papel de professor.

Penso que os cursos de formação de professores de ciências deveriam se empenhar em preparar profissionais capazes de saber programar atividades de aprendizagem que despertem uma visão interdisciplinar da ciência, uma certa familiaridade com o contexto entre valores e atividades científicas como a idéia de neutralidade da ciência (Lacey, 1998), a tese de que a ciência é hoje uma “mercadoria” (Oliveira, 2005), o mito do desenvolvimento como sinônimo de progresso econômico e científico-tecnológico que faz da ciência instrumento hegemônico e privilegiado de conhecimento (Duarte, 2005), a “indústria da saúde” que inventa doenças ou reforça cada vez mais a defesa da chamada “proteção intelectual”, as patentes sobre remédios (Berlan, 2005), a superação das limitações políticas da sociedade das tecnociências [3] (Testart) e tantas outras formas da ciência intervir e determinar a sociedade moderna. Todos estes são aspectos que deveriam fazer parte habitual de um ensino de Ciências comprometido com a formação de cidadãos críticos.       

Referências Bibliográficas

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BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ciências Naturais (1º e 2º ciclos). Vol. 4 / Secretaria de Educação Fundamental. 2ª ed. Rio de Janeiro: MEC/SEF, DP&A, 2000.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Introdução (1º e 2º ciclos). Vol. 1 / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997.

DUARTE, L.M.G. “Por uma imaginação socioambiental”. In Rev. Reportagem, n.68, maio de 2005, pp. 48-49.

KRASILCHIK, M. e MARANDINO, M. Ensino de ciências e cidadania. São Paulo: Moderna, 2004.

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LEONTIEV, A.N. “Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil” In VIGOTSKY, L.S. (et.al.) Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1988.

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TESTART, Jacques. “Genética e controle cidadão”. In O Espírito de Porto Alegre. LOUREIRO, I., LEITE, J.C. e CEVASCO, M.E. (orgs)– São Paulo: Paz e Terra, 2002.

__________ “Um caminho para a democracia”. In Rev. Reportagem, n. 68, maio de 2005, pp. 49-50.



[1] Na prática, as dificuldades encontradas pela escola para a realização de tais ideais são tão grandes, que não é sem fundamentos que se diz: “na prática a teoria é outra”. A precariedade vivida pelos professores, a falta de condições de trabalho, a falta de ação dos órgãos responsáveis por mudar essa situação, entre tantos outros fatores, produz um relativo descrédito na transformação real da escola. 

[2] Muitas das idéias do autor comentadas aqui foram encontradas em ANCONI, E. A filosofia do ensino de John Passmore. In: Anais do 3º Simpósio de Pesquisa da FEUSP. São Paulo, maio de 1996, p. 127-132.

[3] Jacques Testart é diretor de pesquisas no Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica na França. Testart vem propondo uma receita para superar as limitações políticas da sociedade das tecnociências conhecida pelo nome de Conferências de Cidadãos. Trata-se de uma forma de mobilização popular que combina, por um lado, uma formação prévia de cidadãos comuns que se dedicam a estudar os avanços tecnociêntíficos modernos e, por outro, uma intervenção ativa através de perguntas e um posicionamento coletivo no qual os cidadãos deliberam e opinam sobre assuntos complexos relacionados com a Ciência, a Tecnologia e a Sociedade. A forma de debate que se trava no interior das Conferências de Cidadãos assemelha-se muito à atividade educativa interdisciplinar proposta neste trabalho. “A conferência de cidadãos, para Testart, é a aplicação prática, em meio confinado, da utopia de uma educação exaustiva e generalizada”. Para se obter maior esclarecimento sobre as Conferências de Cidadãos, consultar Testart (2002) ou Testart (2005).